Conquistar títulos em Wembley, um dos palcos mais importantes da história do futebol, é para poucas equipes e seleções. Para qualquer esquadra que não seja inglesa, então, é feito mais raro ainda. A Itália conseguiu, na Euro 2020, e outros times do país, como Milan e Parma, também foram capazes em torneios continentais – os rossoneri, em 1963, e os crociati, três décadas depois. Curiosamente, a Cremonese integra, juntamente a Brescia e Genoa, a seleta lista de italianos campeões no estádio londrino.
A inesquecível festa da Cremonese em Wembley aconteceu em 1993, pela extinta Copa Anglo-Italiana. A competição foi idealizada por Gigi Peronace, empresário de jogadores que nasceu na Itália e morou por muito tempo na Inglaterra, e envolvia clubes dos dois países. O torneio foi realizado 19 vezes, entre 1970 e 1996.
A Copa Anglo-Italiana surgiu para possibilitar que o Swindon Town, vencedor da Copa da Liga Inglesa, pudesse fazer partidas contra times de outros países da Europa. Na época, a equipe da terceira divisão não encontrou uma brecha no regulamento da Copa das Feiras para disputá-la: os campeões do torneio tinham o direito de participar da competição continental, mas desde que fossem integrantes da elite nacional. Foi aí que Peronace idealizou o certame.
Durante toda a sua existência, a Copa Anglo-Italiana se notabilizou por dar espaço a times de fora do primeiro escalão do futebol italiano e do inglês. Na temporada 1992-93, o torneio voltou a ser realizado com equipes profissionais, após duas décadas no semiprofissionalismo, mas manteve este foco: foram convidados a participar oito clubes da Serie B (os quatro que caíram da elite da Velha Bota e os quatro melhores que não conseguiram o acesso no ano anterior) e oito da segunda divisão inglesa, que passaram por uma fase preliminar.
Cremonese, Ascoli, Bari, Cosenza, Pisa, Reggiana, Cesena e Lucchese – esta última em substituição ao Verona, que recusou o convite – foram as representantes italianas na edição de 1992-93 da Copa Anglo-Italiana. Pelo lado inglês, participaram Brentford, Portsmouth, Birmingham, Newcastle, Derby County, Tranmere, West Ham e Bristol City. Os times foram divididos em dois grupos de oito, sendo quatro por país, e disputaram quatro jogos, apenas de ida, contra os adversários da outra nação. Ou seja, equipes da mesma pátria não se enfrentavam.
O melhor italiano e o melhor inglês de cada chave avançaram para a disputa das semifinais, fase em que equipes do mesmo país deveriam se enfrentar. No Grupo A avançaram o Brentford, líder com 100% de aproveitamento, e o Bari, que foi apenas o quarto colocado, com duas vitórias e duas derrotas. No B, se classificaram os dois times de melhor aproveitamento: Cremonese, com três triunfos e um empate, e Derby County, que perdeu para a Cremo em seus próprios domínios e venceu os outros duelos.
Nas semifinais, disputadas em ida e volta, a Cremonese não tomou conhecimento do Bari: venceu por 4 a 1 no Giovanni Zini e empatou por 2 a 2 no San Nicola. O seu adversário na final seria o já conhecido Derby County, que fez 4 a 3 no Brentford fora de casa e, mesmo perdendo por 2 a 1 no Baseball Ground, avançou por conta do gol qualificado. No dia 27 de março de 1993, as equipes voltariam a se encontrar na Inglaterra, mas dessa vez em Wembley.
Na época da decisão da Copa Anglo-Italiana, a população de Cremona era de cerca de 74 mil habitantes, segundo o Istat, o Instituto Nacional de Estatística da Itália. Ou seja, a comuna caberia inteirinha em Wembley, que comportava 82 mil presentes em 1993. Apesar de os moradores da “cidade do Torrazzo” darem apoio total à Cremonese, apenas algo em torno de 1.000 torcedores grigiorossi viajaram para acompanharem a final em Londres. Muito mais numerosos, os apoiadores do Derby County, reforçados por simpatizantes locais, foram quase 40 mil.
Aquele time da Cremonese havia perdido, após o rebaixamento para a Serie B, o goleiro Michelangelo Rampulla, o lateral-esquerdo Giuseppe Favalli e o volante Dario Marcolin – o primeiro para a Juventus e os outros dois para a Lazio. Também tinha dado adeus ao zagueiro Felice Garzilli e ao atacante Alviero Chiorri, ícones da agremiação, que se aposentaram. Apesar disso, o competente técnico Luigi Simoni pode contar com uma base casca grossa, que saberia aguentar o clima hostil de Wembley.
Gigi Simoni tinha à sua disposição os defensores Luigi Gualco, Mario Montorfano e Corrado Verdelli, os meias Marco Giandebiaggi e Riccardo Maspero, e os atacantes Matjaz Florjancic e Gustavo Dezotti – este último, vice-campeão mundial com a Argentina, em 1990. O goleiro Luigi Turci, o zagueiro Francesco Colonnese e o centroavante Andrea Tentoni foram reforços jovens e que se agregaram bem ao time titular ao longo da temporada, tal qual o veterano meia Eligio Nicolini. Sem dúvida alguma, o plantel da Cremo era muito mais forte do que o do Derby County, e dava para dizer que, na bola, a equipe italiana seria favorita.
O forte do Derby County era o trabalho do técnico Arthur Cox, que ocupava o cargo desde 1984. O time alvinegro tinha como destaques o meia galês Mark Pembridge, que passaria por Benfica, Everton e Fulham, e os atacantes Paul Kitson, Tommy Johnson e Marco Gabbiadini (este, um autêntico anglo-italiano), que haviam defendido seleções de base da Inglaterra. O zagueiro Craig Short, principal contratação dos Rams para a temporada, ficou de fora da final.
A grande diferença técnica entre os elencos se fez notar rapidamente. Aos 11 minutos, a Cremonese abriu o placar e emudeceu o Wembley: Florjancic cobrou escanteio, Gualco não alcançou a bola e o capitão Verdelli, bem colocado, se antecipou ao goleiro Martin Taylor para cabecear no cantinho. Apesar disso, o Derby County reagiu rapidamente, com um contra-ataque veloz, aos 24. No desenrolar da jogada, Kitson levantou na área e Gabbiadini testou com precisão, empatando a peleja.
A equipe grigiorossa não sentiu o gol de empate e continuou a pressionar bastante pelo lado direito, por onde Florjancic e Giandebiaggi castigavam Simon Coleman e Shane Nicholson. No fim do primeiro tempo, o meia italiano entrou na área e foi calçado por Michael Forsyth, que cometeu pênalti claro. O especialista Nicolini foi para a cobrança, mas viu o seu chute forte ser desviado para escanteio por Taylor. Antes do intervalo, o ponta esloveno da Cremonese teve mais uma chance clara após recuo errado dos Rams, mas foi fominha: ao invés de rolar para Tentoni, que estava em melhor posição, arrematou em cima do arqueiro rival.
As oportunidades desperdiçadas não fizeram a equipe de Simoni esmorecer. Pelo contrário: a Cremonese identificou as fraquezas do Derby County e continuou a explorá-las, criando um verdadeiro carnaval no flanco direito de seu ataque. Numa das primeiras jogadas da etapa complementar, justamente por aquele lado, os grigiorossi marcaram o segundo gol. Nicolini lançou Tentoni, que ganhou de Forsyth na corrida e terminou derrubado ao tentar driblar Taylor. Maspero foi para a cobrança do pênalti e não deu chances para o arqueiro, que pulou no canto certo, mas não alcançou.
A vantagem no placar deu gás extra para a Cremonese, que passou a empilhar chances. Maspero encontrou um lançamento perfeito para Florjancic, que corria nas costas da defesa, e o esloveno voltou a ser extremamente egoísta. O atacante estava cara a cara com o goleiro Taylor, juntamente a Giandebiaggi, mas preferiu tentar a cavadinha e não rolou para o colega, que tinha a baliza desguarnecida à sua frente. O chute foi para fora e, pouco depois, o individualista foi substituído por Dezotti.
O terceiro gol da Cremo foi sair apenas aos 83 minutos, pouco depois de Nicolini acertar a trave. O Derby County se lançou ao ataque, em busca do empate, mas não se deu conta da qualidade que a equipe da Lombardia tinha para trabalhar com passes longos. E foi assim que, após retomada de bola, Verdelli encontrou Tentoni num contragolpe. O bomber recebeu, avançou com a pelota e finalizou no cantinho, fazendo com que os violini repetissem o placar que construíram contra os Rams na fase de grupos.
Nas arquibancadas, a diminuta torcida grigiorossa estava ensandecida: somente três dias antes de desfilar em Wembley, a Cremonese havia comemorado 90 anos de existência. A celebração, agora, teria direito até a taça europeia se dirigindo à sala de troféus da agremiação. No clima de festa, Simoni ainda promoveu uma homenagem: sacou Tentoni para colocar em campo o beque Montorfano, bandeira da equipe, que estreara profissionalmente na Copa Anglo-Italiana de 1977.
A história estava escrita. A gestão do presidente Domenico Luzzara, que começara em 1967, tinha feito a Cremonese acumular participações na Serie A, após um jejum de quase 55 anos, e chegava ao ápice com uma conquista internacional, que valorizava um grupo formado por ótimos jogadores e comandado por um técnico que, pouco depois, treinaria Ronaldo na Inter. Para os grigiorossi, o título da Copa Anglo-Italiana seria apenas o prelúdio de uma época dourada: a Cremo passaria três temporadas consecutivas na primeira divisão, entre 1993 a 1996, e estabeleceria o seu maior período de permanência na elite.
Derby County 1-3 Cremonese
Derby County: Taylor; Patterson, Forsyth, Coleman, Nicholson; Coulooze, Micklewhite, Pembridge; Johnson (Simpson), Gabbiadini, Kitson. Técnico: Arthur Cox.
Cremonese: Turci; Colonnese, Verdelli, Gualco; Cristiani, Giandebiaggi, Maspero, Nicolini, Pedroni; Florjancic (Dezotti), Tentoni (Montorfano). Técnico: Luigi Simoni.
Gols: Gabbiadini (23′); Verdelli (11’), Maspero (50’) e Tentoni (83’)
Árbitro: Joaquín Urío Velázquez (Espanha)
Local e data: estádio Wembley, Londres (Inglaterra), em 27 de março de 1993