A prática do casamento arranjado já foi muito comum nas mais diversas sociedades deste mundo e ainda persiste entre alguns povos. Através desse costume, noivos que não mantinham qualquer laço sentimental consumavam o matrimônio, arrumado geralmente por seus pais, por motivações políticas ou financeiras. Em julho de 2018, com o aval do casamenteiro Jorge Mendes, Cristiano Ronaldo e a Juventus de Andrea Agnelli selaram uma união de tais características. Autenticado pela letra fria da lei, o vínculo entre as partes sempre foi gélido e, três anos depois, foi encerrado sem qualquer cerimônia.
Até o verão de 2018, a única relação que a Juventus tinha com Ronaldo, novo reforço do Manchester United, era a desenvolvida através da Síndrome de Estocolmo. Pelo Real Madrid, o atacante português tinha marcado 10 gols em jogos de Champions League contra a Velha Senhora e havia sido o carrasco da decisão de Cardiff, com uma doppietta no 4 a 1 de 2017. No ano seguinte, nas quartas de final, a crueldade de Cristiano se expressou com três tentos nas partidas, sendo um aos 98, na volta, e – antes – uma inesquecível pintura em Turim. Pela bicicleta, CR7 foi ovacionado pelos bianconeri em pleno Allianz Stadium.
A acachapante derrota no País de Gales colocou uma pulga atrás da orelha de Agnelli: o seu projeto de reconstrução da Juventus, elogiado e vencedor em nível nacional, tinha limites em âmbito europeu? A queda nas quartas, um ano depois, fez os parasitas se multiplicarem nos lóbulos do dirigente. Enquanto o bianconero pensava em como atender a sua nova obsessão, Ronaldo rompia com Florentino Pérez e considerava, pela primeira vez, encerrar o seu ciclo em Madrid – após nove temporadas, quatro taças da Liga dos Campeões, quatro Bolas de Ouro, a chegada ao posto de maior artilheiro merengue, com 450 gols, e mais uma penca de feitos.
Havia uma espécie de conjunção astral que atraía os campos magnéticos de Juventus e Ronaldo. A convergência entre os interesses da diretoria do clube e os do jogador fizeram com que a negociação fosse concluída em cerca de uma semana. Única equipe a apresentar uma oferta formal, a Juve fechou com CR7 por 100 milhões de euros e outros 12 de bônus: aos 33 anos, ele se tornava o atleta mais caro adquirido por uma agremiação da Serie A e, também, o mais bem pago da história do campeonato, com um salário líquido anual de 31 mi de euros. O casamento estava arranjado.
O problema é que, definitivamente, Juventus e Ronaldo não foram feitos um para o outro.
Um matrimônio de aparências: do cartório ao divórcio
Foram raros os momentos em que a união entre o jogador e o clube não esbarraram numa crise conjugal velada, na qual os dois lados tiveram suas responsabilidades. O pecado original foi cometido pela Juventus, que abriu mão de seu projeto e, ao investir pesadamente em Ronaldo, apostou todas as fichas num retorno imediato ou em curto prazo, devido à idade do craque. Ao optar por esse caminho, a agremiação topou fazer um experimento custoso, em todos os sentidos. Esta tentativa exigia um planejamento específico, mas Agnelli e Fabio Paratici falharam em desenhá-lo e executá-lo.
A Juventus se endividou ao contratar Ronaldo: em balanço, toda a operação, somando salários e impostos, comprometia 357 milhões de euros do orçamento bianconero. Quando não obteve os resultados esperados, temporada após temporada, intensificou uma prática que iniciou em 2018, quando fechou sem custos com Emre Can, oferecendo-lhe um polpudo soldo (5 milhões anuais).
A ideia da diretoria seria buscar agente livres que passaram por outros gigantes e que poderiam compor uma espinha dorsal experiente e respeitosa, em suporte a Cristiano – numa tentativa de emular o que fizera com Khedira, em 2015. O que se economizaria em taxas para a aquisição dessas peças poderia ser compensada em salários e luvas: foi assim que Ramsey e Rabiot assinaram contratos de 7 milhões anuais com a Velha Senhora.
Manobras contábeis para se adequar ao Fair Play Financeiro também foram efetuadas, como nas vendas de João Cancelo ao Manchester City e de Pjanic ao Barcelona – em troca, chegaram Danilo e Arthur. Em alguma medida, todas essas contratações, que pesam no orçamento bianconero, são contestadas pela torcida.
Como se não bastasse fazer tais movimentos de mercado, que acabaram anulando o aumento de receita proporcionado por novos contratos de TV, patrocínios e pelo marketing gerado a partir da visibilidade de Ronaldo, a Juventus ainda levou a cabo mudanças radicais para tentar potencializar o português ou corrigir rotas. Massimiliano Allegri, Maurizio Sarri e Andrea Pirlo têm muito pouco em comum e o desarranjo que a equipe de Turim mostrou em campo nos últimos dois anos provou que as escolhas foram equivocadas.
E Ronaldo fez a sua parte? Bem, não há dúvidas de que, pela quantidade de conquistas, recordes e demais feitos, o craque elevou muito o sarrafo para si mesmo. A passagem de CR7 pelo Piemonte pode ser resumida a uma porção de gols, certo isolamento e críticas a elementos específicos de suas atuações.
Tal qual em outro clubes, Cristiano acumulou marcas expressivas. Autor de 101 tentos em 134 partidas, El Comandante se tornou o décimo principal goleador da história da Juventus na Serie A, com 81, e nas competições Uefa, com 14. O atacante também é o jogador que mais vezes balançou as redes pela Juve num único ano (37 em 2019-20) e foi o artilheiro do Italiano, com 29 gols em 2020-21.
Ronaldo também balançou as redes em 11 rodadas seguidas da Serie A, igualando feito de Batistuta e Quagliarella; se tornou o segundo jogador a anotar pelo menos 50 tentos em três dos cinco maiores campeonatos europeus, repetindo Dzeko; e se sagrou artilheiro dos torneios nacionais de Inglaterra, Espanha e Itália – feito inédito no futebol mundial. O português ainda está na história por ter precisado do menor número de partidas (61) para alcançar 50 gols no Italiano. Parte disso se deve ao seu invejável preparo físico: em três temporadas, o atleta veterano não perdeu um compromisso sequer por lesão que precisasse de terapia no J Medical.
Com 28, 37 e 36 gols, respectivamente, Ronaldo foi o artilheiro da Juventus nas três temporadas em que lá esteve. O português acabou sendo eleito como o melhor jogador da Serie A pela liga, em 2019 e pela AIC, a Associação Italiana de Futebolistas, em 2019 e 2020, mas todas estas decisões foram questionáveis: Ilicic e Gómez, da Atalanta, e Immobile, da Lazio, por exemplo, tiveram desempenho superior ao de CR7.
Mesmo quando foi artilheiro da Serie A, Cristiano teve números inflados por marcações múltiplas contra rivais muito inferiores à Juventus. Em 2020-21, 19 dos seus 29 gols foram feitos contra adversários da metade inferior da tabela, nos quais a Velha Senhora poderia ter tropeçado se o português não tivesse balançado as redes. Somente seis de seus tentos saíram contra times classificados a torneios europeus e apenas um contra uma equipe qualificada à Champions League – a Inter, que já era campeã quando o Derby d’Italia aconteceu.
O problema é que Ronaldo não compensou a ausência de redes balançadas nos grandes duelos nacionais com assistências ou atuações impactantes em sua derradeira temporada – nos dois primeiros anos, teve um bom desempenho nesse tipo de confronto. O craque foi uma vítima complacente da desorganização juventina e desenvolveu o hábito de ficar alheio ao que acontecia em campo. Também virou chacota por sua insistência em bater faltas, ainda que o seu aproveitamento fosse muito baixo. Cristiano marcaria o seu único gol num tiro livre pela Juve apenas na 42ª cobrança. No total, ele finalizou 71 vezes a partir de infrações e carimbou a barreira em 48 tentativas. De resto, acertou a trave numa ocasião, mandou oito bolas para fora e parou em 13 defesas dos arqueiros.
Em solo continental, por sua vez, Ronaldo foi, sem dúvidas, o principal jogador da Juventus em 2018-19 e 2019-20. Afinal, anotou todos os gols da Velha Senhora no mata-mata e, na primeira temporada, carregou a equipe até as quartas de final com uma tripletta que virou e decidiu o confronto com o Atlético de Madrid. Em 2020-21, porém, Cristiano foi o pior em campo nas partidas que culminaram na eliminação dos bianconeri contra o Porto. Apagadíssimo no duelo, ainda foi algoz num lance recheado de simbolismo: abriu a barreira e contribuiu fortemente para o tento, em cobrança de falta, de Sérgio Oliveira.
A ausência de sintonia entre Ronaldo e os companheiros de Juventus em campo derivava do pequeno esforço do craque para se inserir na cultura italiana – e retroalimentava a sua notável insatisfação. Assim como não manifestou muito interesse em tentar se adaptar à forma como o time jogava, principalmente na gestão de Sarri, com quem teve atritos, Cristiano sequer experimentou se empenhar para aprender fundamentos básicos do vernáculo local.
Não que CR7 sofra por dificuldades linguísticas. Além de ser um homem inteligente, tem o português (que, assim como o italiano, tem raízes no latim) como idioma materno e é fluente em espanhol e inglês. Incapaz de proferir uma fase completa na língua de Dante, protagonizou episódios esdrúxulos em suas poucas tentativas. A última delas ocorreu na carta de despedida endereçada aos juventinos, quando seu estafe, falando em seu nome, errou na grafia de “grazie” e “tifosi” – duas palavras elementares no vocabulário de um boleiro. O jogador não se corrigiu.
A torcida, aliás, nunca conseguiu ter uma verdadeira ligação com Cristiano – e os estádios terem ficado fechados ao grande público por um ano e meio certamente não ajudou nisso. Na Itália, ídolos costumam receber apelidos específicos dos torcedores do seu time e, claro, serem homenageados por cânticos criados pelos ultras. Ronaldo não teve tratamento especial. Aliás, em seu triênio no Piemonte, o único vínculo que estabeleceu foi com o terceiro goleiro Carlo Pinsoglio, que costumava ser o único jogador da Juventus convidado para festas na casa do atacante.
Se imaginava que, com o retorno de Allegri, Cristiano e a Juventus pudessem ter um rendimento maior. No entanto, Max deu indícios de que o seu novo projeto não giraria em torno de Ronaldo: afirmou que o português não cobraria todas as faltas, revezando com Dybala a depender do posicionamento, e o colocou no banco na rodada inaugural da Serie A. Foi um recado: se o coletivo da Juve funcionasse melhor, CR7 passaria menos tempo em campo.
Naquele momento, o craque decidiu, definitivamente, deixar a Itália. A cinco dias do fim da janela de transferências. Mesmo diante de um curto prazo para que um substituto de alto nível pudesse ser encontrado e de diversas oportunidades de mercado já perdidas, Allegri e Agnelli não fizeram força para evitar a saída de Ronaldo. A liberação, aliás, foi imediata. De forma blasé, os torcedores também não protestaram ou sequer imploraram às partes para que o divórcio não se concretizasse, porque Cristiano não virou um ídolo da massa. Para a maioria dos juventinos, o craque foi só mais um e o fato de ele ter rumado ao Manchester United sem se despedir beirou a insignificância.
No fim das contas, o resultado dessa combinação de fatores fez com que Ronaldo deixasse uma Juventus enfraquecida em relação ao momento de sua chegada. No triênio pré-CR7, a Velha Senhora faturou três scudetti, três vezes a Coppa Italia e foi finalista da Champions League. Com El Comandante, venceu a Serie A em duas ocasiões, ganhou a última copa nacional e sequer alcançou as semifinais europeias. Pior: a equipe foi eliminada por Ajax, Lyon e Porto, clubes de investimento bem inferior, e ainda amargou as duas quedas mais recentes muito precocemente, na fase de oitavas de final. O grande objetivo da família Agnelli, portanto, ficou mais distante no período em que o craque fez parte do elenco alvinegro.
Há quem aposte que a Juventus crescerá sem Ronaldo, principalmente do ponto de vista coletivo – afinal, além de centralizar o jogo, o português era sempre o procurado pelos colegas para resolver. A histórica derrota para o Empoli, em Turim, no dia seguinte à transferência de Cristiano, não foi um bom sinal para os defensores desse argumento. Por outro lado, num ambiente que conhece bem e no qual é amado, CR7 poderá ter um final de carreira mais condizente com o que produziu antes de se mudar para a Itália: sem questionamentos, deixará de ser um estranho no ninho e tornará a unanimidade.
BELISSIMO texto! Resumiu bem meu sentimento como junventino, em relação a saída dele: bleh!
Texto bem enviesado, com foco exagerado no suposto “fracasso” dele por lá, citando até episódios insignificantes e irrelevantes como a questão do vocabulário. Ele basicamente adiou o declínio da Juventus em alguns anos, quase carregando um time fraquíssimo pra semi em 2020 e pras quartas no ano seguinte basicamente sozinho. Salvou o scudetto de 2020-21. Sem ele a crise na Juve dentro de campo teria começado bem antes, embora o rombo financeiro com certeza seria menor.
Como disse o Mourinho, compraram uma arma nuclear e não souberam usar. Ramsey ter sido contratado como solução pro meio campo daquele time já era um sinal de que não faziam ideia do que estavam fazendo. Erro também do Ronaldo em achar que a Juve era a melhor opção e que estavam perto de ganhar uma UCL, sendo que claramente já estavam em queda.
Mas é inegavelmente hilário ver a situação da Juventus dois anos depois. Ruim com ele, pior sem ele.
Excelente!! Compartilho da mesma ideia, sendo que agora pode e deve ser questionado se ele realmente foi o culpado de um time sem organização fora e ambição dentro de campo, sempre buscando encontrar um caminho por meio de um futebol sem graça.