A Virtus Verona é uma daquelas equipes que têm particularidades que extrapolam o seu contexto. Embora seja a menor das agremiações de sua cidade, atrás de Verona e Chievo, a pequena Virtus – que nunca foi além da terceirona – é o orgulho do bairro operário de Santa Croce e segue num caminho oposto ao da maior parte dos times do Vêneto. Sob o comando de Luigi Fresco desde 1982, os rossoblù integram e agregam as histórias e as experiências das pessoas que, ao longo dos anos, fizeram ou fazem parte da comunidade.
Fundado em 1921 por um grupo de entusiastas do futebol do distrito de Borgo Venezia, em Verona, o clube centenário passou quase toda a sua existência nas ligas provinciais e regionais amadoras antes de chegar à Serie D, em 2006. Sinibaldo Nocini, presidente entre 1961 e 1981, promoveu a ascensão da agremiação em seu bairro e Fresco, seu sucessor, comandou o percurso de ascensão virtussino.
Em 1982, a Virtus Verona estava na última categoria regional, equivalente à décima divisão na cadeia do futebol italiano. Em quase uma década, atingiu a sétima; em 2000, alcançou a sexta e, em 2006, venceu a Coppa Italia de Amadores do Vêneto. Finalmente, em 2013, pode estrear entre os profissionais. A chegada da Virtus ao quarto nível fez com que a cidade de Verona conquistasse algo raro na Bota: três clubes atuando em competições profissionais.
Os rossoblù acabaram rebaixados de imediato e disputaram a quarta divisão por quatro temporadas, até vencerem a categoria e retornarem para a Serie C, em 2018. Um feito incrível para uma pequena equipe de bairro, e que não teria acontecido sem Fresco. Gigi, além de presidente, é o técnico da Virtus Verona desde o início da década de 1980.
A figura de Luigi Fresco
Conhecido como o “Ferguson da Itália”, Gigi é um acumulador de grandes feitos. Até o presente momento, soma 39 anos consecutivos à frente do time – e, ainda por cima, desempenhando a dupla função de técnico e presidente. Fresco deixa para trás nomes como os de Sir Alex Ferguson, Arsène Wenger e Guy Roux em termos de longevidade numa mesma equipe. Na Velha Bota, é o recordista.
A sua trajetória começou na primavera de 1982, quando foi chamado para liderar a equipe principal – para não sair mais. Gigi era torcedor da Virtus Verona desde criança e iniciou sua participação na política interna em 1979, quando, com apenas 18 anos, foi eleito diretor rossoblù. Meses depois, se tornou responsável pelo setor juvenil. E em 1982, ainda dirigindo as categorias menores, passou ao comando do time adulto. Embora não tenha evitado o rebaixamento naquela temporada, foi mantido no cargo. O resto é história.
Além da dupla função no clube, Gigi é licenciado em pedagogia e tem uma tese sobre a antropologia dos ciganos. O técnico-presidente relatou que o compromisso com a Virtus é incomparável a qualquer outra coisa, embora continue a trabalhar na área da educação: Fresco é diretor administrativo de uma escola secundária localizada em Lavagno, uma comuna a leste da cidade de Verona, reforçando o seu vínculo – e, por consequência, o da agremiação – com o contexto local.
A este propósito, aliás, a Virtus Verona serve bem ao bairro de Santa Croce, uma das seis frações de Borgo Venezia. Através de esforços comandados por Fresco, o clube se mantém atento aos problemas sociais desde que, na década de 1980, ajudou a recuperar e ressocializar dependentes e ex-traficantes de heroína num período em que a droga era bastante consumida na cidade.
Nos anos seguintes, a Virtus também acolheu em seu centro esportivo e alimentou cerca de 50 famílias de refugiados da Albânia e da Bósnia e Herzegovina, que se instalaram no distrito de Borgo Venezia, bastante povoado por imigrantes. Até hoje, incentivado pela prefeitura de Verona, o time integra, observa e até contrata atletas em exílio – como o goleiro Sheikh Sibi, da seleção de Gâmbia. Gigi transformou o clube em uma área de lazer na parte da cidade de menor apelo turístico da região.
Com sua postura de líder comunitário, o treinador costuma caminhar rumo ao Mario Gavagnin, CT e estádio da Virtus Verona, antes de cada jogo. Um percurso que técnicos mais badalados poderiam fazer a bordo de seus carros particulares ou nos luxuosos ônibus dos clubes, Gigi resolve com alguns passos.
Há mais de 40 anos, Fresco desenvolve uma estratégia de gestão em que a hierarquia e suas formalidades ficam de lado. O clima de intimidade que predomina no clube leva todos a chamá-lo simplesmente de “Gigi”, inclusive os jogadores: é raro que seja tratado como “senhor” ou “presidente”. Segundo ele, a dupla função não pesa e, se um dia atrapalhasse, o problema seria de fácil solução. “Basta demitir o técnico”, relatou, em tom irônico, em uma entrevista à revista Contrasti.
A construção desse ambiente remonta à época em que o treinador e dirigente organizava encontros para que jogadores e membros da comissão técnica saboreassem risotos preparados por sua mãe e mais algumas senhoras. Segundo Gigi, essa é uma boa forma de aumentar o entrosamento do grupo e, por isso, a tradição é mantida: a “família” virtussina se une para jantar todas as quintas-feiras. Esse clima familiar não mudou nem mesmo depois que, em 2003, a Vecomp, empresa produtora de softwares, fez um acordo de patrocínio com os rossoblù em troca da incorporação de sua marca ao nome oficial da agremiação – transformada, então, em Virtusvecomp Verona.
Ao longo dos anos, Fresco também promoveu viagens comemorativas com os grupos vitoriosos da Virtus. Em 1991, para celebrar o acesso à Promozione, sétimo nível do futebol italiano de então, os rossoblù foram até Paris. De lá para cá, Gigi e elencos da equipe de Verona já viajaram para Califórnia, México, Cuba, Brasil e algumas capitais europeias, como Praga, da Chéquia.
Uma das próximas viagens no horizonte de Fresco é o acesso à Serie B – ainda que ele já esteja satisfeito com a terceirona. Caso a promoção aconteça, é provável que Gigi tenha de abrir mão de um costume: não apresentar a lista de relacionados para os jogos. Segundo o técnico, isso não faz sentido, pois todos aqueles disponíveis fisicamente no dia devem se sentir convocados. Esta escolha bastante particular de sua parte já foi assimilada pelos jogadores e pela torcida, acostumadas às suas maneiras.
Homem de uma banda só, Gigi consegue tocar os compassos da música chamada Virtus Verona sem grandes equívocos. Um comandante como ele, em sua dupla função por quatro décadas, já seria – por si só – uma espécie de manifesto de resistência ao imediatismo ao superficial. É ainda mais forte pelo fato de Fresco pregar por um futebol diferente, mais humano, genuíno e caseiro.
No fim das contas, Gigi é “apenas” uma peça fundamental de toda uma estrutura de cuidados com a comunidade de Borgo Venezia. Como o futebol é um esporte que envolve diversas relações sociais, as torcidas da Virtus Verona usam o nome e espaço do clube para se manifestarem sobre mazelas que afetam diretamente, sobretudo, as minorias – acompanhando vários dos ideais difundidos por Fresco.
As torcidas
A Virtus Verona, como vimos, é muito ligada ao seu contexto local e, por isso, as organizadas do time ficam concentradas nos arredores de Borgo Venezia. Não são tantos torcedores, até porque o estádio Mario Gavagnin-Sinibaldo Nocini tem capacidade de apenas 1,5 mil lugares, mas os virtussinos costumam ser fiéis aos ideais pregados por aqueles que ditam os rumos do pequeno clube.
A primeira forma de organização vinda das arquibancadas data de 2006. Neste ano, um grupo de torcedores se reuniu para formar a Virtus Fans, que perdurou até 2015, quando se dissolveu para dar lugar a outros coletivos. Após essa primeira experiência, surgiram torcidas como Lost Boys, Virtus Verona Rude Firm 1921 e Virtus Death Brigade: atualmente, apenas a Rude Firm está ativa, tendo incorporado integrantes das demais facções. Curiosamente, a cena rossoblù ainda é movimentada por duas bandas de ska e street punk – Ashpipe e Los Fastidios.
Toda a história das organizadas faz a Virtus ser uma mosca branca no cenário do Vêneto. A região é um reduto da direita e Verona é tida como a capital italiana deste espectro político, de modo que a torcida do Hellas é declaradamente “destra” e conta com um número bastante considerável de facções ultranacionalistas e nazifascistas. Os virtussini vão pelo lado oposto ao pensamento dominante da cidade: são, majoritariamente, de esquerda e têm uma postura ativista.
A tifoseria da Virtus Verona se posiciona como antifascista, antirracista, anti-homofobia e tem contribuído bastante com as iniciativas do clube para a inclusão de estrangeiros – principalmente refugiados – na comunidade veronesa. Contrariando os mais radicais apoiadores do Hellas, que desejam ver os imigrantes bem longe da Itália, os organizados virtussini têm conseguido inseri-los de tal forma que foram capazes de angariar mais torcedores. Hoje, uma boa parte dos apoiadores rossoblù são negros e de origem africana. Isso mostra o quanto a agremiação serve também para discutir problemas que afetam a sociedade nos níveis local e global.
Por sua orientação político-ideológica, a Rude Firm participa de uma extensa rede de coletivos e grupos que lutam por um futebol mais justo e inclusivo para todos os torcedores e torcedoras. Os rossoblù têm um gemellaggio – ou seja, uma uma relação de amizade – com as organizadas de clubes italianos, como Livorno e Ternana, e de outros países da Europa, como St. Pauli e Babelsberg (Alemanha), Marseille (França), Rayo Vallecano (Espanha), Celtic (Escócia) e Wrexham (País de Gales).
Sempre preocupados com os problemas sociais, a Virtus, Gigi Fresco e a torcida rossoblù representam um bolsão de resistência dentro de um esporte que, cada vez mais, engole times menores e reduz seus significados. Mas, em Borgo Venezia, zona leste de Verona, há um clube que alimenta a fé de um futebol autêntico, que se apoia numa comunidade que busca manter suas origens e tradições vivas, mas sempre se atualizando para que todos possam desfrutar da história e do feitos dos virtussini.