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A busca por um sonho e a descoberta do futebol semiprofissional na Itália

Em busca do sonho de criança de jogar futebol profissionalmente, um belo dia Hugo Mendes de Oliveira embarcou em uma aventura pela Bota. Bisneto de imigrantes italianos, teve toda sua árvore genealógica montada para uma comemoração em família, a qual reuniu todos os descendentes das famílias De Pieri e Marcon, que se fixaram na região de Gravatal, em Santa Catarina. Com os dados em mãos, descobriu que existia a possibilidade de requerer a cidadania italiana. O jovem ainda não sabia, mas aquela festa com seus entes queridos seria o prefácio de sua história nas divisões inferiores do futebol da Itália. O epílogo você lê agora: eu sou Hugo.

Sempre fui apaixonado por futebol. Lógico, meu brinquedo favorito era a bola. Sem grandes chances de se tornar um atleta profissional no Brasil, poucos dias após completar 18 anos rumei à Itália, em busca de realizar meus sonhos.

Retornemos àquela reunião de família, onde essa viagem começou. Após o longo processo de pesquisa e montagem da árvore genealógica, alguns familiares se interessaram em requerer a cidadania italiana, e assim o fizeram. Deram início aos procedimentos para a obtenção do passaporte: certidões e mais certidões, inúmeros documentos e uma viagem para o Belpaese. Duas tias foram as primeiras a embarcar, seguidas por minha mãe e minha avó. Com um casal de amigos residente na cidade de Placência – mais conhecida aqui no site por causa do Piacenza, time que disputou a Serie A nos anos 1990 e 2000 – tudo ficou mais fácil. Com o suporte na Emília-Romanha, elas pegaram o avião e foram em busca de sua dupla cidadania.

Depois de duas passagens pela Itália, meus familiares retornaram com os documentos em mãos. O jovem Hugo, que tinha apenas 17 anos na época, recebeu sua certidão de cidadania. Minha mãe retornava também com algumas amizades e planos para sua prole. Ficara próxima de um ex-árbitro de futebol italiano casado com uma brasileira, de quem partiu o convite e uma promessa de auxílio para que eu pudesse tentar a sorte no futebol na outra margem do Oceano Atlântico.

Embarquei para a Itália em janeiro de 2011. Menos de 48 horas depois que cheguei em Placência, surgiu a primeira oportunidade: sem perder tempo, no dia 30, fiz meu primeiro treinamento no pequeno FCD San Giuseppe Calcio, sob comando do mister Patrizio Bonafè, um treinador e ex-jogador de futebol. Após uma semana de treinos, na condição de “centrocampista brasiliano“, fui bastante elogiado por Bonafè e acabei indicado para testes no time da categoria Juniores Nazionali do Fiorenzuola, clube da mesma região.

Após três semanas de treinamentos, fui convidado a assinar com o clube. O tesseramento era dado como certo no clube e na rodada seguinte do campeonato de juniores o time viajaria a Rimini. Poderia ser a minha estreia. Até o técnico do time principal e o presidente do Fiorenzuola já estavam prontos para acompanhar a partida. Porém, tudo mudou quando fui “ler as letras pequenas”.

Na marca da cal: passagem pela Itália fez Hugo ter que tomar decisões importantes em série (Acervo pessoal)

Antes de assinar o contrato, resolvi me informar como funcionava o tesseramento – ou seja, a formalização do meu vínculo com o clube e a inscrição do contrato junto à Federação Italiana de Gioco a Calcio, a FIGC. O grande problema é que o primeiro contrato dos atletas semiprofissionais tem certas cláusulas que valem até seus 25 anos. O clube comanda suas carreiras, pagando se desejasse, podendo trocar ou vender os jogadores, sem oferecer estabilidade aos mesmos. Uma tentativa de acordo foi iniciada. O treinador Edoardo Fischetti tentou fazer com que eu ficasse, porém nada feito. Resolvi buscar outras oportunidades.

Quem no começo havia prometido ajudar (e até certo ponto ajudou), acabou me deixando na mão depois de um tempo. Sem clube, já em final de temporada, tive sorte e recebi o convite de um amigo do casal de brasileiros com quem eu morava. A proposta seria treinar no Corte Calcio, de Cortemaggiore, cidadezinha da província de Placência. Na época, a equipe jogava a Seconda Categoria e estava em vias de título e promoção à Prima Categoria, a sétima divisão do futebol italiano.

Convite aceito. Iniciei os treinamentos e a busca por novas oportunidades, mas nem tudo eram flores. Um amigo, além de me receber em sua casa, estava quase fechando testes para mim com um time da Serie A, até sofrer um acidente automobilístico grave. Em meio à sua recuperação, os contatos foram perdidos, e a tentativa de ajuda teve de ser abortada por motivos de força maior. Um olheiro da Serie C chegou a aparecer e buscar uma aproximação, mas não conseguimos fazer nem mesmo testes. E assim, com o início da temporada 2011-12, recebi o convite de assinar com o pequeno Corte Calcio, em acordo válido por um ano.

Entre as categorias do futebol italiano, apenas as quatro primeiras são consideradas profissionais. Depois da Serie D temos Eccellenza (quinta divisão), Promozione (sexta), Prima Categoria (sétima), Seconda Categoria (oitava) e Terza Categoria (nona). O Corte de fato havia conseguido o acesso para o sétimo nível do esporte local e seria lá que eu daria meus primeiros passos em partidas oficiais.

Também encontrei um ex-companheiro de Fiorenzuola, que costumava questionar o que eu fazia ali. Simples: pretendia me manter em forma e fazer novos testes. Após alguns meses, porém, fiz poucas partidas – uma delas na Coppa Italia da categoria, na qual fui considerado o melhor em campo.

Eu não podia esconder, no final das contas: estava descontente. Tentei ainda um teste no ACD Libertaspes, clube da cidade de Piacenza, contudo sofri uma lesão muscular no final de dezembro e fiquei fora dos gramados por poucos mais de um mês. Descontente e lesionado: assim começava o fim. Não adiantou ter recebido apelido de Piccolo Principe (Pequeno Príncipe), porque a verdade é que não engrenei. No fim de janeiro de 2012, pedi desligamento do clube e desisti do futebol, depois de um ano na labuta em solo italiano. Retornei ao Brasil em março de 2012 e, desde então, só bati uma bolinha entre amigos e em campeonatos amadores locais, em Santa Catarina.

Hugo, ao centro, passeia com amigos nos tempos em que defendia o Corte (Acervo pessoal)

Além dos aprendizados de vida, descobri várias coisas que talvez não sejam muito difundidas no Brasil. Por exemplo, nas categorias menores da Itália, as partidas não têm bandeirinhas e demais auxiliares: o árbitro vai ao campo de jogo sem assistentes da federação. Quebram o galho na função um integrante de cada comissão técnica envolvida na partida; um de cada lado, com a bandeirinha em mãos, apenas auxiliando o árbitro em relação à saída de bola pelas linhas laterais.

A maioria dos clubes treina à noite, já que os atletas trabalham durante o dia, em sua maioria – os profissionais, bem sabemos, treinam de dia. Os treinamentos não acontecem todas as noites, a propósito. É sabido que as divisões são regionalizadas e ligadas à FIGC, mas você imagina quanto ganha um jogador semiprofissional na Velha Bota? Pois bem: a maior parte dos atletas ganha de 100 a 300 euros por mês, embora um ou outro receba salários um pouco superiores.

Pensamos que o Brasil é o país do futebol, mas podem ter certeza que a Itália respira muito futebol também. São inúmeros clubes espalhados por todo o território italiano que oferecem uma mínima estrutura e disputam os campeonatos. O próprio Corte tinha sede, um campo de treino e um campo de jogo. Claro, havia intempéries, também. Como os gelados treinamentos noturnos, nos quais muitas vezes a neblina não deixava que nós pudéssemos sequer ver as traves quando nos encontrávamos no meio do campo – cujo gramado, aliás, muitas vezes estava congelado.

Até hoje, às vezes me passa pela cabeça: e se tivesse assinado com o Fiorenzuola? Mas se tem algo que o futebol nos ensina é que o “se” não conta.

O ano que passei na Itália foi mesmo de muito aprendizado. Fui de uma repentina ascensão a uma lenta queda num giro de 12 meses. Estabeleci o convívio com diferentes culturas, companheiros de diferentes países e até jogadores que já haviam experimentado a crème de la crème do futebol. Por exemplo, Marco Cavana, que iniciou no Piacenza Calcio e jogou por três anos nas seleções de base italianas; Moussa Diarra, que jogou na Sampdoria; ou Marcelo De Marchi, que começou no Marília, em São Paulo. Fora os outros, que acumularam experiência nas categorias amadoras.

Quando assistimos pela televisão e ficamos encantados com o glamour e o charme da Serie A, é até difícil parar para imaginar quantas agremiações estão espalhadas pela Bota. Ou mesmo pensar quantos jovens ainda sonham com a elite. O fato é que existe um outro mundo no futebol italiano, muito longe dos refletores do San Siro, do Olímpico, do Allianz Stadium ou do San Paolo. Uma realidade mais humilde, sem estardalhaço, porém minimamente organizada e sob a tutela da FIGC.

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