Quase sempre lembrado por ter feito parte do inesquecível Barcelona de Pep Guardiola, o malinês Seydou Keita foi um dos grandes jogadores africanos nas últimas duas décadas. O meio-campista tem trajetória vencedora na Europa e, na reta final da carreira, quando muitos davam-no como acabado, desempenhou um belo futebol vestindo a camisa da Roma nos dois anos em que viveu na Cidade Eterna.
Prazer, Seydou
O nome Keita significa “bênção”, e é o mesmo sobrenome do herói Sundiata, um dos alicerces do Império do Mali e unificador dos reinos da África Ocidental pertencentes ao povo mandingo. Por lá, quem possui esse nome é considerado descendente de Sundiata.
Seydou nasceu na cidade de Bamako, capital do Mali, e cresceu, ao lado de 12 irmãos, em uma família muçulmana com tradição no futebol. Ele é primo de Mohamed Sissoko, que defendeu vários clubes e foi campeão da Liga dos Campeões em 2005, pelo Liverpool, e seu tio, Salif Keita, foi o principal jogador do país entre as décadas de 1960 e 1970, chegando a faturar o prêmio de melhor do continente africano. Salif é o fundador da Jeunesse Sportive Centre Salif Keita (JS CSK), uma escolinha focada em desenvolver jovens talentos, onde Seydou foi jogar quando tinha 15 anos.
Em 1997, aos 17 anos, após ter sido observado por diferentes olheiros, foi para a França atuar nas categorias de base do Marseille, clube pelo qual se profissionalizou duas temporadas mais tarde. Alguns meses antes do princípio da época 1999-2000, foi eleito como o melhor jogador do Mundial sub-20, ficando à frente de nomes como Ronaldinho, Frank Lampard e Xavi. Mali ficou com o terceiro lugar depois de perder para a Espanha, que se sagraria campeã, na semifinal. Keita, que já estreara pela seleção principal, acabaria por tornar-se um símbolo geracional das águias: é o recordista em partidas disputadas (102) e gols (25) pela equipe nacional, além de ter participado sete vezes da Copa Africana de Nações.
Pelo Marseille, quase não teve chances: atuou principalmente com o time B, na terceira divisão, mas ainda assim conseguiu experimentar o sabor especial de estrear na Liga dos Campeões, no dia 14 de setembro de 1999, em vitória por 2 a 0 sobre o Sturm Graz, da Áustria. O volante ainda seria titular em outras duas ocasiões, contra Dinamo Zagreb, da Croácia, em triunfo por 2 a 1, e num empate sem gols diante do Feyenoord, da Holanda.
Ao término da temporada, Abel Braga, então treinador do clube francês, decidiu emprestá-lo ao Lorient, da segunda divisão, a fim de fazê-lo adquirir mais experiência. Keita atuou nas 38 rodadas e ajudou a equipe a subir à elite. Um ano depois, disputou a Copa Africana de Nações pela primeira vez e ajudou Mali a faturar a quarta posição, desfalcando o time durante um período. O Lorient acabou rebaixado no campeonato nacional, mas foi bem nos mata-matas: foi campeão da Copa da França (1 a 0 sobre o Bastia) e vice da Copa da Liga (levou 3 a 0 do Bordeaux).
A boa fase o levou ao Lens, vice-campeão francês um ano antes de sua chegada. Atuando em uma função mais defensiva, se estabeleceu como um dos principais nomes do elenco e foi adquirido em definitivo pelo clube em que passaria as próximas quatro temporadas e receberia a braçadeira de capitão. Em cinco épocas, disputou 210 partidas e teve o seu ápice em 2006-07, quando foi eleito o segundo melhor jogador da Ligue 1, atrás de Florent Malouda, do Lyon. Depois disso, entrou no radar do Sevilla e se mudou para a Espanha.
Na única temporada pelo clube da Andaluzia, Keita marcou seu nome atuando em alto nível. Presente em 31 das 38 partidas do time em La Liga, além de ter atuado em nove confrontos da Champions League, apresentou uma nova característica em seu jogo: os chutes de média e longa distâncias. Cada vez melhor, foi anunciado no verão de 2008 pelo Barcelona como o primeiro reforço da gestão de Guardiola, que havia acabado de assumir a vaga deixada por Frank Rijkaard.
Se iniciava o auge da carreira do meio-campista, que, após passar uma década na França, se estabeleceria na Espanha por cinco anos. Aos poucos, Seydou foi se adaptando à nova filosofia até se tornar um nome de confiança de Guardiola e conquistar tudo e mais um pouco nas quatro temporadas em que permaneceu na Catalunha: destaque para um tricampeonato espanhol consecutivo, dois títulos da Copa do Rei e duas taças da Liga dos Campeões. Era uma espécie de 12º jogador, que supria as eventuais ausências de Sergio Busquets e Yaya Touré e, eventualmente, foi escalado como ponta esquerda. Foi quem mais vezes atuou pelo Barça em 2010-11, com 56 aparições.
Keita era um jogador que preferia deixar a vaidade de lado para priorizar o bem coletivo. Um episódio que ilustra bem isso foi na decisão da Liga dos Campeões de 2009, quando Guardiola pediu para que ele atuasse improvisado na lateral esquerda (Éric Abidal estava suspenso), mas por não se sentir confortável na posição, o malinês preferiu ficar no banco – Sylvinho foi o titular, e Seydou entrou na segunda etapa, na vaga de Thierry Henry.
Em 2012, aos 32 anos, foi um dentre tantos que embarcaram rumo à opulência do futebol chinês e fechou com o Dalian Aerbin. Acabou permanecendo uma temporada e meia por lá, em um contrato inicialmente firmado com a duração de quatro épocas. Em janeiro de 2014, Keita regressou à Espanha e defendeu o Valencia durante a segunda metade de 2013-14.
Il Professore
Então surgiram clubes interessados. Com uma oferta do Liverpool em mãos, Keita se animou com a possibilidade de atuar na Itália quando a Roma, treinada por Rudi Garcia, entrou na parada. Com todos os termos acertados, um contrato válido por uma temporada foi firmado com os giallorossi a poucos dias do início da Copa do Mundo de 2014, realizada no Brasil.
A princípio, a contratação do meio-campista não foi vista com bons olhos devido ao bom desempenho recente da trinca Daniele De Rossi, Miralem Pjanic e Kevin Strootman, dando a entender que a aquisição de mais um nome para o setor não fosse assim tão necessária. Mas o maliano, que chegava com as credenciais de ter sido um dos atletas mais elogiados por Guardiola, acabou preenchendo lacunas deixadas desde a saída de Rodrigo Taddei, em termos táticos e comportamentais. Com a sua mentalidade vencedora, Seydou ainda assumiu uma função de liderança – chegou até a utilizar a braçadeira de capitão em algumas partidas.
A estreia pela nova equipe foi na rodada inaugural da Serie A, em vitória por 2 a 0 sobre a Fiorentina, e o primeiro gol marcado aconteceu na 11ª rodada, em duelo contra o Torino (3 a 0). Ele tornaria a balançar as redes na 25ª jornada, garantindo o empate em 1 a 1 contra a Juventus. A Roma fez uma bela campanha e foi vice-campeã italiana (somou 70 pontos e teve apenas seis derrotas), mas a Velha Senhora foi praticamente irretocável e levou o scudetto com folga – fez 87. Keita foi um dos destaques da temporada romanista e atuou em 26 vezes partidas, anotando dois tentos.
Na Liga dos Campeões, o azar de cair em um grupo com Bayern e Manchester City resultou em eliminação precoce. Por ter ficado na terceira colocação, a Roma foi jogar a Europa League, mas foi eliminada nas oitavas de final pela Fiorentina – Keita marcou o gol do empate em 1 a 1 no jogo de ida. A Viola, aliás, seria uma espécie de carrasco giallorosso naquele ano e eliminou a Loba também na Coppa Italia.
Em alta, Keita renovou o contrato por mais uma época. Ele executava um jogo aparentemente simples, mas que, no fundo, era repleto de refinamento. Assertivo nos passes, encontrava a melhor direção para a bola e sabia o momento exato de inverter as jogadas quando determinada zona do campo estivesse relativamente congestionada. Ter se adaptado ao futebol italiano na reta final da carreira, somado ao elevado QI futebolístico, rapidamente fez com que ele conquistasse o carinho dos torcedores, que apelidaram-no de “Il Professore”.
Garcia deixou o comando técnico em janeiro de 2016 e deu lugar a Luciano Spalletti. Àquela altura da temporada 2015-16, o time ocupava a quinta posição na Serie A e estava classificado para o mata-mata da Liga dos Campeões. No campeonato nacional, a Roma teve desempenho superior ao do ano anterior em números (somou 80 pontos), mas ficou no terceiro lugar, atrás do Napoli (82) e da novamente campeã Juventus (91). Keita foi utilizado 20 vezes e anotou um gol, em um sonoro 5 a 0 aplicado em cima do Palermo, pela 26ª rodada. Nas outras competições, os giallorossi obtiveram resultados para serem esquecidos: eliminação para o Real Madrid nas oitavas de final do torneio continental (4 a 0 no placar agregado), e adeus à Coppa Italia na mesma fase, em disputa de pênaltis contra o Spezia, que levou a melhor.
A passagem de Keita na Roma foi encerrada em meados de 2016, quando o meio-campista, com 36 anos, se transferiu para o Al-Jaish, do Catar. Passado uma temporada no Oriente Médio, anunciou a aposentadoria do futebol, colocando ponto final à sua vitoriosa carreira. Mesmo tendo parado, Seydou continua sendo lembrado como uma perfeita combinação entre força física, qualidade técnica e disciplina tática, que o tornava capaz de fazer de tudo um pouco na intermediária.
Seydou Ahmed Keita
Nascimento: 16 de janeiro de 1980, em Bamako, Mali
Posição: meio-campista
Clubes: Marseille (1997-2000), Lorient (2000-02), Lens (2002-07), Sevilla (2007-08), Barcelona (2008-12) Dalian Aerbin (2012-14), Valencia (2014), Roma (2014-16) e Al-Jaish (2016-17)
Títulos: Copa da França (2002), Copa Intertoto (2005), Supercopa da Espanha (2007, 2009, 2010 e 2011), La Liga (2009, 2010 e 2011), Copa do Rei (2009 e 2012), Liga dos Campeões (2009 e 2011), Supercopa Uefa (2009 e 2011), Mundial de Clubes (2009 e 2011)
Seleção maliana: 102 jogos e 25 gols