A Itália estremeceu na primavera de 2006, quando foi revelado um esquema de manipulação de resultados de partidas envolvendo alguns dos principais times da Serie A. Era o escândalo Calciopoli, que serviu como verdadeiro divisor de águas no esporte da Bota. Na temporada seguinte, em outubro do mesmo ano, o Milan, que foi um dos punido por participação de diretores, e a Inter, que herdou o scudetto de 2005-06, disputaram o primeiro dérbi depois das investigações. O encontro de estrelas foi inflamado pelo desfecho das investigações e resultou no Derby Della Madonnina com o maior número de gols marcados desde 1965.
Terceira colocada em 2005-06, a Inter foi alçada à liderança e declarada campeã após o rebaixamento da Juventus e a sanção sofrida pelo Milan, penalizado com a perda de 30 pontos. Muito por conta da influência de Silvio Berlusconi nos bastidores, o Diavolo escapou de uma punição mais severa, em que não teria o direito de jogar a Champions League de 2006-07 e perderia 15 pontos na Serie A daquela temporada.
O Milan acabou sentenciado a começar o campeonato com 8 pontos negativos, além de largar na fase preliminar do torneio continental. Manter a vaga na Liga dos Campeões foi condição sine qua non para que os efeitos econômicos do Calciopoli fossem menores para o time rossonero do que para as outras grandes envolvidas no escândalo – Fiorentina, Lazio e, principalmente, Juventus. O Diavolo perdeu Andriy Shevchenko, é verdade, mas o ucraniano pedira para deixar a Itália e tentar uma experiência no endinheirado Chelsea, que tinha José Mourinho no comando. Sheva se transferiu para a Inglaterra por 42 milhões de euros, cifra astronômica à época.
As outras saídas importantes daquele Milan foram de veteranos – Jaap Stam, Rui Costa e Amoroso. Ainda assim, foi mantida a base vencedora do título europeu em 2003 e do scudetto de 2004, além de vice-campeã da Champions League, em 2005. O elenco, pouco modificado, foi reforçado de forma modesta naquele verão: chegaram Daniele Bonera, Giuseppe Favalli, Cristian Brocchi, Yoann Gourcuff e Ricardo Oliveira.
Já a Inter, devido às punições de Milan, Lazio e Fiorentina, e sem a Juventus no páreo, despontava como a principal candidata para levar o scudetto, tendo a Roma, a qual vencera num elétrico 4 a 3 pela Supercopa Italiana, como maior rival. As contratações de Patrick Vieira e Zlatan Ibrahimovic por parte da Beneamata simbolizavam uma nova era no futebol italiano: francês e sueco não permaneceram na Juve e rumaram a Milão para jogarem a Serie A trajados de azul e preto.
A gestão de Massimo Moratti não bebeu apenas da fonte rival e também teve olhar apurado no mercado. O Chelsea liberou Hernán Crespo, com passagem no arquirrival rossonero, para ter sua segunda experiência na Inter por empréstimo. Fabio Grosso, do Palermo, e Maicon, do Monaco, chegaram para reforçar os lados do campo, enquanto Olivier Dacourt e Mariano González encorpavam o banco de reservas. O elenco estava mais forte, apesar da aposentadoria de Sinisa Mihajlovic e das importantes saídas de Favalli, Zé Maria, Cristiano Zanetti, David Pizarro, Juan Sebastián Verón e Obafemi Martins.
Enquanto os nerazzurri se destacaram logo no início da Serie A, os milanistas enfrentavam as consequências do Calciopoli, iniciando a temporada em desvantagem. Com quatro vitórias, três empates e uma derrota, o Milan teve um começo razoável no certame, mas ainda estava muito atrás da Inter devido aos pontos que haviam sido retirados como parte da sanção. Às vésperas do dérbi, na 9ª rodada do campeonato, os rossoneri ocupavam a 14ª posição. Somando cinco triunfos e três igualdades, os invictos interistas tinham 14 pontos a mais do que os rivais e dividiam a liderança com o Palermo.
Em meio a uma seca de gols dos atacantes, o lateral-esquerdo Marek Jankulovski era o artilheiro do Milan, com dois tentos anotados. O checo, inclusive, havia sido o herói da vitória em cima do Chievo, que interrompeu a sequência de três empates seguidos dos rossoneri. Preocupado pela improdutividade ofensiva, o técnico Carlo Ancelotti adotou o 4-3-2-1 e isolou Filippo Inzaghi na frente. A explosão de Kaká e a qualidade de passe de Andrea Pirlo e Clarence Seedorf eram outras armas do time.
Roberto Mancini, por outro lado, comandava o segundo melhor ataque da Serie A. Embalada por Crespo e Ibrahimovic, a Inter somava 16 bolas na rede, mostrando-se letal no último terço do campo. Dejan Stankovic, vivendo uma das melhores fases da carreira, iluminava a equipe na criação e ainda anotava seus gols – tinha três àquela altura. Quando chegou o momento do confronto direto no Derby della Madonnina, a pesada artilharia nerazzurra marcaria presença.
Num San Siro tomado por 78 mil pessoas, com mando do Milan, os jogadores cumpriram a expectativa de um jogo parelho e faltoso logo nos primeiros minutos. Rigoroso durante toda a partida, Stefano Farina distribuiu amarelo logo no início, para Gennaro Gattuso e Vieira, por mão na bola. Mais agressiva no ataque, a Beneamata teve sua postura premiada aos 17.
A Inter teve falta na intermediária e Stankovic se preparou para a jogada de bola aérea. Com perfeição, o sérvio levantou a pelota na cabeça de Crespo, que conseguiu se antecipar a Jankulovski e estufou a rede rossonera. A equipe nerazzurra ampliou a vantagem poucos minutos depois, com um belo chute de Deki, de fora da área. Mesmo cercado por vários jogadores badalados, Il Drago ratificava o quão decisivo era capaz de ser naquele momento de sua carreira.
Apesar de algumas jogadas perigosas de Kaká, o Milan não conseguiu converter as chances em gols e, perdendo duelos para uma trinca de meias formada por Vieira, Dacourt (substituindo o lesionado Esteban Cambiasso) e Javier Zanetti, seguiu atrás no placar. A melhor oportunidade dos rossoneri na etapa inicial saiu de um forte chute do camisa 22, mas Julio Cesar efetuou linda defesa, mandando a bola para escanteio. Já nos acréscimos, foi a vez de o goleiro brasileiro do outro lado brilhar: Ibrahimovic soltou um petardo em cobrança de falta, mas Dida espalmou para longe.
Completamente insatisfeito com o que viu no gramado de San Siro, Ancelotti fez as três trocas possíveis no intervalo e voltou a campo com Paolo Maldini, Alberto Gilardino e Ricardo Oliveira nos lugares de Jankulovski, Inzaghi e Massimo Ambrosini, respectivamente. Ou seja, Carletto abandonou o esquema com apenas um atacante e colocou o time mais para frente, espelhando o 4-3-1-2 da Inter.
Entretanto, antes mesmo de a ousadia feita pelo treinador dar qualquer sinal de que funcionaria, o Milan sofreu um novo baque aos 47 minutos. O Diavolo estava lançado ao ataque, mas perdeu a posse da bola e a Inter puxou um contragolpe muito veloz, com Stankovic e Ibrahimovic. Após tabela, o sueco deu uma cavadinha para se livrar do carrinho de Kakha Kaladze e fuzilou Dida, que não teve chance de defender o forte chute do camisa 8 nerazzurro. O lado azul e preto do estádio Giuseppe Meazza estava em êxtase.
Mais pressionado, o Milan ensaiou uma reação. Primeiro, Seedorf quase marcou por cobertura. No lance seguinte, o holandês aproveitou a sobra de uma tabela entre Kaká e Gilardino para arrematar de fora da área e contar com um desvio em Marco Materazzi no meio do caminho, que acabou surpreendendo e encobrindo Julio Cesar.
O Diavolo chegou a balançar as redes outra vez aos 57 minutos, após cabeceio de Gilardino, mas o atacante estava em posição de impedimento. Um duro golpe, visto que a frustração só aumentou quando, aos 68, Luís Figo – que tomara o lugar do amarelado Dacourt, fazendo Stankovic recuar em campo – levantou na área e Materazzi marcou para a Inter, com testada fulminante. A comemoração foi inconsequente, ao melhor estilo Matrix: o zagueiro tirou a camisa e recebeu o segundo cartão amarelo. Um convite para os rossoneri tomarem as rédeas do jogo.
Aos 76 minutos, Gilardino aproveitou cruzamento de Cafu e, se antecipando a Iván Córdoba, cabeceou bonito e deixou a sua assinatura pela primeira vez na temporada. A partir daí, o jogo se tornou ainda mais tenso, com o Milan buscando o empate e a Inter tentando segurar a vitória.
Seedorf teve duas oportunidades claras, mas Julio Cesar impediu em uma delas, após ter pego o primeiro chute de Cafu, e o holandês cabeceou para fora, na outra. Nos acréscimos, Kaká encurtou a vantagem ao encobrir o compatriota depois de pegar a sobra de um cruzamento, instaurando o drama nos minutos finais. Os brasileiros quase foram os heróis de um empate histórico, mas a cabeçada de Ricardo Oliveira passou rente à trave. A Inter resistiu à blitz e garantiu a vitória em um embate de nove amarelados e um expulso.
No reencontro, em março, a Inter fez a dobradinha e disparou na liderança – com 13 pontos acima da Roma. A enorme vantagem resultou no título antecipado, obtido na 33ª rodada, após doppietta de Materazzi num 2 a 1 sobre o Siena, e no segundo dos cinco scudetti consecutivos que os nerazzurri faturariam. Em paralelo, a Beneamata foi vice da Coppa Italia e caiu para o Valencia, nas oitavas da Champions League. Na competição continental, aliás, o Milan brilhou e, liderado por Kaká, eleito melhor do mundo, deu o troco no Liverpool. Seria o sétimo troféu europeu do Diavolo.
Milan 3-4 Inter
Milan: Dida; Cafu, Nesta, Kaladze, Jankulovski (Maldini); Gattuso, Pirlo, Ambrosini (Ricardo Oliveira); Kaká, Seedorf; Inzaghi (Gilardino). Técnico: Carlo Ancelotti.
Inter: Júlio César; Maicon, Materazzi, Córdoba, Grosso (Burdisso); Vieira, Dacourt (Figo), Zanetti; Stankovic; Crespo, Ibrahimovic (Samuel). Técnico: Roberto Mancini.
Gols: Seedorf (50’), Gilardino (76’) e Kaká (90+1’); Crespo (17’); Stankovic (22’), Ibrahimovic (47’) e Materazzi (68’)
Árbitro: Stefano Farina (Itália)
Local e data: estádio Giuseppe Meazza, Milão (Itália), em 28 de outubro de 2006