Na década de 2010, a vitória no Derby Della Madonnina se distanciou do tira-teima pelo scudetto e se limitou a uma disputa trivial de superioridade em Milão. A duras penas, Milan e Inter atravessaram o período de ostracismo, arrumaram a casa e, dezoito anos depois, voltaram a protagonizar um clássico no mata-mata da Champions League. A história do “euroderby” teve início na semifinal de 2002-03, com vantagem rossonera.
Assombrada pelo título da Serie A entregue de bandeja para a Juventus, em 2002, a Inter virou a chave na janela de verão daquela temporada. Ronaldo deixou a Beneamata rumo ao Real Madrid, pelo valor de 45 milhões de euros. Clarence Seedorf, por sua vez, assinou com o Milan, e Adriano foi cedido ao Parma. Com a grana embolsada, Massimo Moratti abriu os cofres e contratou Fabio Cannavaro, Matías Almeyda e Hernán Crespo, que comporia a dupla de ataque com Christian Vieri.
Do outro lado de Milão, os rossoneri almejavam uma temporada mais exitosa do que a anterior – sem títulos, apesar da boa campanha na Copa Uefa, onde foram eliminados nas semifinais pelo Borussia Dortmund; a Inter, por sua vez, perdeu para o Feyenoord na mesma fase. Com a permanência de Carlo Ancelotti no comando técnico, Silvio Berlusconi gastou alguns milhões para atingir os seus objetivos e dar uma resposta taxativa à torcida. Seedorf, Alessandro Nesta, Rivaldo, Dida e Jon Dahl Tomasson maximizaram o potencial de um time sedento por conquistas.
Rota para as semifinais
Com sete vitórias em oito jogos, a Inter teve uma largada implacável na Serie A. Um mês antes, porém, já jogou a vida na Champions League, em agosto, na fase qualificatória. No caminho, o Sporting de Cristiano Ronaldo, Ricardo Quaresma e Mário Jardel, que segurou a barra no empate sem gols em Lisboa, mas não foi páreo para a força nerazzurra em San Siro. Álvaro Recoba e Luigi Di Biagio abriram 2 a 0 no primeiro tempo, resultado que assegurou a vaga dos italianos na fase de grupos.
O Milan precisou superar um adversário mais modesto na etapa eliminatória – o que não significou, necessariamente, uma tarefa simples. Após vencerem o Slovan Liberec na Itália pelo placar mínimo, os rossoneri tinham a vantagem do empate na Chéquia. Filippo Inzaghi abriu o placar e praticamente encaminhou a classificação. Mas a reação checa veio e, depois da igualdade, aos 46, os mandantes tomaram a frente, aos 88. Sem tempo para mais, o critério do gol qualificado salvou o Diavolo, que se juntou a Roma, Juventus e Inter entre os times da Serie A na competição.
A Inter foi sorteada para dividir o Grupo D com Ajax, Lyon e Rosenborg. Após um tropeço na visita aos noruegueses, os nerazzurri fizeram valer o favoritismo nas rodadas seguintes. A Beneamata arrancou seis pontos do Ajax e avançou à segunda fase de grupos em primeiro lugar, apesar de ter somado apenas um ponto nos embates com o Lyon.
Ao lado de Lens, Deportivo La Coruña e Bayern de Munique no Grupo G, os rossoneri voltaram a ser sorteados com adversários inferiores no papel. Mais eficiente, o Diavolo evitou complicações e se classificou antecipadamente, após vencer nos quatro primeiros jogos. Só não foi melhor por conta dos reveses contra os franceses e os espanhóis, mas a liderança da chave teve o mesmo dono do início ao fim.
O primeiro Derby Della Madonnina da temporada aconteceu quatro dias antes da sequência da Champions League. A Inter estava um ponto à frente do Milan, mas ambos estavam no retrovisor da Juventus e o vencedor poderia assumir a liderança com uma combinação de resultados. Mandantes no San Siro, os milanistas venceram com gol de Serginho e se tornaram os novos líderes da Serie A. Era uma prévia da maratona de clássicos decisivos que estava por vir.
A Champions League se afunilou e o nível aumentou na segunda fase de grupos. A Inter disputou duas vagas com Barcelona, Newcastle e Bayer Leverkusen, enquanto o Milan teve pela frente Borussia Dortmund, Lokomotiv Moscou e Real Madrid. Os rossoneri repetiram o excelente começo da etapa anterior, com quatro vitórias em quatro partidas, e asseguraram a classificação no topo da chave. O rival também teve uma largada positiva, mas a contusão de Crespo, artilheiro nerazzurro com nove gols em oito jogos, minou a efetividade ofensiva da equipe de Héctor Cúper. Sem furar a defesa do Barcelona, os interistas seguiram às quartas na vice-liderança.
O cruzamento da Inter no mata-mata proporcionou o reencontro de Cúper e Valencia, time em que o técnico argentino foi vice-campeão continental em 2000-01 e 2001-02. Em um duelo parelho e marcado por expulsões dos dois lados, Vieri fez o único gol da partida e garantiu a vantagem mínima para a Espanha. O italiano estava inspirado e também abriu o placar no Mestalla. Apesar do impacto negativo, o Valencia reagiu de forma imediata, com Pablo Aimar. Antes favorável aos nerazzurri, a conjuntura virou do avesso após Vieri ser expulso. A diferença de dois gols diminuiu após Rubén Baraja colocar os che à frente no marcador. Faltava um, mas a Beneamata segurou a vantagem do gol qualificado até o apito final e se manteve viva no torneio.
Após sair derrotado duas vezes na fase de grupos para a Inter, o Ajax tornou a encarar um adversário da Itália nas quartas de final. O compromisso de caráter eliminatório contra o Milan ocorreu primeiro em Amsterdã e não saiu do zero. Antes do jogo da volta, houve o segundo Derby della Madonnina na Serie A, com 76 mil pessoas lotando o San Siro. O gol da vitória rossonera, anotado por Inzaghi, não só sustentou a invencibilidade frente aos nerazzurri – que se prolongou em mais oito embates – como também igualou a pontuação dos rivais e fez o Diavolo assumir a vice-liderança pelo critério do saldo de gols.
Em compensação à escassez da ida, o jogo de volta contra o Ajax entregou cinco gols e uma classificação dramática para o Diavolo. O placar de 2 a 2 beneficiava os Godenzonen, que tinham um pé e meio nas semis – fase em que a Beneamata havia garantido seu lugar um dia antes –, mas Tomasson, ex-Feyenoord, frustrou os planos do seu antigo rival holandês nos acréscimos. O inédito encontro entre Milan e Inter em uma Champions League se tornou realidade.
Pré-jogo
Diferentemente de hoje, as filas para comprar ingressos na época eram presenciais, e não virtuais. Eram outros tempos. “Os torcedores mais antigos lembram bem o quanto aquele evento paralisou toda a Milão por seis dias, sem esquecer as vicissitudes que era preciso passar para comprar um único ingresso”, relata o portal Pianeta Milan. “Só havia um caminho e não havia alternativas: era preciso ficar de plantão na bilheteria autorizada para venda”, informa.
Em entrevista à Sky Sport, o ex-zagueiro Alessandro Costacurta falou sobre o turbilhão de emoções do elenco rossonero antes dos jogos. “Nos meus 22 anos de carreira, bem nesse período eu não consegui dormir. Mas não era só comigo. Para [Andriy] Shevchenko e Seedorf, esse foi o pior período de suas carreiras”, disse. O ex-atacante ucraniano corrobora. “A cidade estava tremendo. Antes da partida, vimos muitos torcedores quando chegamos ao estádio. O ar estava um pouco pesado dentro de San Siro. Mas, quando você entra em campo, esquece imediatamente tudo e a tensão desaparece”.
O confronto durou muito mais do que 180 minutos. Em carta publicada no site do clube, Javier Zanetti relembrou alguns dos momentos em sua longa passagem pela Beneamata. Ele descreveu os dias tensos que antecederam as partidas. “Na noite do dérbi pela Champions League de 2003, contra o Milan, cheguei em casa com Paula e ela estava angustiada. Foram duas semanas de tensão indescritível. Em Appiano Gentile, em Milão, entre as pessoas na rua, com amigos, em todos os lugares: a única coisa em minha mente eram esses dois jogos”.
O jogo de ida
Ancelotti baseou a estratégia do primeiro jogo, marcado para 7 de maio, na ordem dos mandos de campo – e o Milan seria o mandante na ida. O objetivo, segundo o próprio explicou anos depois, era não sofrer gols para a Inter não obter vantagem no critério do gol qualificado. Na cerimônia de entrada das equipes, o semblante dos jogadores deixava claro que não se tratava mais apenas de futebol. A atmosfera densa do San Siro podia ser sentida pelos telespectadores espalhados pelo mundo.
O clima belicoso nas arquibancadas acabou por contaminar o jogo, que se tornou bastante disputado e faltoso, com várias entradas duras e discussões acaloradas. Cauteloso, Cúper buscou evitar uma derrota a todo custo. Os interistas bloquearam com sucesso os contra-ataques do Milan, mas as poucas chegadas na área adversária se restringiam às bolas paradas. Sem o controle de bola de Andrea Pirlo, indisponível por lesão, o meio de campo formado por Seedorf, Gennaro Gattuso e Cristian Brocchi não contribuiu ofensivamente. Em contrapartida, as investidas da Inter foram praticamente inexistentes.
Curiosamente, Berlusconi estava descontente com o time recuado e, no intervalo, foi ao vestiário para exigir mais dedicação no ataque, além da entrada de Serginho. O brasileiro entrou, mas Ancelotti permaneceu fiel ao plano de jogo. Noventa minutos de poucos chutes a gol. O placar zerado adiou o veredito para a última instância, sete dias depois, no mesmo local – dessa vez com mando dos nerazzurri e, o mais importante, gol qualificado a favor dos rossoneri.
O jogo de volta
No dérbi de Milão mais importante da história até então, 85 mil pessoas lotaram o San Siro em 13 de maio. Ancelotti teve Pirlo à disposição e o colocou imediatamente na vaga de Brocchi. O camisa 21 tinha a função de armar, Seedorf flutuava entre o ataque e a defesa, e Gattuso fazia o trabalho sujo mais atrás. Sem Dida, o antigo titular Christian Abbiati teve de ser acionado. Cúper, por sua vez, deslocou Javier Zanetti para a lateral direita, o xará italiano Cristiano Zanetti assumiu o meio-campo e Francesco Coco deu lugar a Sérgio Conceição no lado esquerdo. Bobo Vieri, lesionado, era a ausência mais sentida na relação nerazzurra. Recoba começou entre os titulares.
A proposta de Ancelotti se revelou em pouco tempo de partida: chutar na primeira oportunidade. Shevchenko entendeu a mensagem e, aos 2 minutos, efetuou o arremate inaugural do jogo, mas o pé direito exagerou na força. Pirlo repetiu a tentativa aos 8, sem sucesso. Mesmo sem grandes chances, o Milan foi mais incisivo para castigar uma eventual distração do adversário no início. Aos 13, a Inter respondeu em conclusão de Crespo, mas o argentino não pegou em cheio e Abbiati segurou firme.
O duelo entre Shevchenko e Francesco Toldo recomeçou aos 23, após lançamento de Paolo Maldini. O ucraniano ajustou a postura e arriscou o gol de placa, mas a bola passou longe da meta. Intenso e faltoso, o andamento do jogo foi travado pelo nervosismo das equipes – ambas cientes de que faltava pouco para serem finalistas europeias. A segundos do fim do primeiro tempo, Shevchenko venceu Iván Córdoba no pé de ferro dentro da área e, mesmo caído, conseguiu empurrar a bola para o fundo do barbante. A partir de então, o empate não bastava para a Inter e só mais dois gols salvariam a Beneamata.
Na segunda etapa, Recoba e Di Biagio deram lugar a Obafemi Martins e Stéphane Dalmat. Apesar das acrobacias do nigeriano assustarem, os nerazzurri não causavam perigo para Abbiati. Os minutos passavam e Manchester, palco da final, se aproximava de Ancelotti e companhia. Na arquibancada, a torcida rossonera já cantava como se a vitória fosse certa. Porém, a Inter ressurgiu aos 83. Em disputa no alto, Maldini dormiu no ponto, a bola tocou nas costas de Martins e, sem perder tempo, o atacante apertou o passo e deixou tudo igual, na saída de Abbiati.
Apesar de controlar a partida quase toda, o Milan se viu ameaçado nos sete minutos mais tensos de todos os dérbis de Milão. Três minutos após o gol de Martins, o cronômetro pareceu congelar em San Siro: pressionado por Mohamed Kallon, Kakha Kaladze cortou mal o passe de Emre Belozoglu. O jovem serra-leonês teve assim a oportunidade de levar a Inter à final, frente a frente com Abbiati. Em uma intervenção considerada a mais importante da sua carreira, o arqueiro usou a canela para rebater o arremate e pôs a bola para escanteio. “Abbiati ganhou um contrato vitalício com aquela defesa”, brincou o diretor Adriano Galliani.
Na sequência, em levantamento de Sérgio Conceição, Córdoba cabeceou forte e sem marcação. Bem posicionado, Abbiati desviou para escanteio outra vez. Os dois minutos de acréscimo estouraram e o francês Gilles Vessière apitou. Os rossoneri corriam pelo campo tomados por uma loucura coletiva, enquanto as lágrimas escorriam nos rostos dos interistas, que acumulavam mais uma cicatriz depois do scudetto perdido.
Na noite seguinte, a Juve, em sua semifinal, foi impecável contra o Real Madrid para chegar à decisão, no Old Trafford. Na primeira e única final totalmente italiana na história da Liga dos Campeões, os milanistas levaram a melhor e deram início à era de ouro de Ancelotti no banco rossonero.
Milan 0-0 Inter
Milan: Dida; Costacurta, Nesta, Maldini, Kaladze; Seedorf, Gattuso (Redondo), Brocchi (Serginho); Rui Costa; Shevchenko (Rivaldo), Inzaghi. Técnico: Carlo Ancelotti.
Inter: Toldo; Córdoba, Cannavaro, Materazzi, Coco (Pasquale); Emre, Di Biagio, J.Zanetti; Sérgio Conceição (Guly), Recoba (Kallon), Crespo. Técnico: Héctor Cúper.
Árbitro: Valentin Ivanov (Rússia)
Local e data: estádio Giuseppe Meazza, Milão (Itália), em 7 de maio de 2003
Inter 1-1 Milan
Inter: Toldo; Córdoba, Cannavaro, Materazzi; J. Zanetti, C. Zanetti, Di Biagio (Dalmat), Emre, Sérgio Conceição; Crespo (Kallon), Recoba (Martins). Técnico: Héctor Cúper.
Milan: Abbiati; Costacurta, Nesta, Maldini, Kaladze; Gattuso, Pirlo (Brocchi), Seedorf; Rui Costa (Ambrosini); Shevchenko, Inzaghi (Serginho). Técnico: Carlo Ancelotti.
Gols: Martins (83′); Shevchenko (45+1′)
Árbitro: Gilles Vessière (França)
Local e data: estádio Giuseppe Meazza, Milão (Itália), em 13 de maio de 2003