Sei que a Calciopédia é um lugar de análises sérias, pensadas, com informações o tempo todo. Sei que nos meus tempos de ESPN FC eu tentei ser mais analista, embora com uns momentos de clubismo registrados ali (afinal, a intenção era essa).
Mas me permitam dessa vez ser quase totalmente clubista. Escrever menos ainda com o cérebro e mais com o coração. O capitão e o homem que dedicou sua vida ao Napoli pelo início e os 11 anos de auge de sua carreira merece isso.
A partida contra o Zürich na Europa League foi a primeira de um novo período. Se não é estranho ver Insigne como capitão, é estranho como torcedor do Napoli não ver um moicano dentro de campo ou mesmo no banco, o que já era um pouco mais frequente no modelo de rotações de Ancelotti.
A era Hamsík acabou no Napoli. Uma parte de nós se acaba também. Muitos com certeza que leem isso ou que falam da ida dele pros chineses do Dalian Yifang, onde jogará com os ex-colchoneros Ferreira Carrasco e Gaitán, têm essa percepção.
Com a confirmação da saída de Hamsík para o Dalian, foram 4231 dias do eslovaco vestindo a camisa 17 do Napoli. Um período que se estende de sua chegada, em 16 de julho de 2007, até a saída, em 14 de fevereiro de 2019 – como bem calculado pelo perfil @SSCNapoliStat no Twitter.
4231. O símbolo de alguns dos esquemas de sucesso em que jogou. O esquema em que atuou nas duas Coppa Italia que levantou como capitão do Napoli, em 2011-12 e 2013-14. O esquema símbolo da era Benítez, talvez o técnico menos benquisto por ele.
3-5-2 de Mazzarri. 4-3-3, seja o mal sucedido de Donadoni ou o sucesso absoluto da era Sarri. 4-4-2, seja o da era Reja, ou o da era Ancelotti, que revolucionou até mesmo seu jeito de jogar. Hamsík foi a definição de um camaleão tático do Napoli. Onde quer que jogasse, atuava bem. Seja meio-campista ofensivo ou mesmo ajeitando o sistema de criação azzurro.
Ele foi um dos principais nomes do renascimento partenopeo. Já se moldava craque desde o primeiro jogo, no qual anotou seu primeiro gol – contra a Sampdoria em 2007. Se moldou craque com Lavezzi e treinado por Reja, se confirmou como craque aos olhos do mundo com a chegada de Cavani e as orientações de Mazzarri.
Ao lado de Lavezzi, fez maravilhas na temporada 2010-11. Os dois classificaram novamente o Napoli para uma Champions League, com o terceiro lugar na Serie A. Nesse período, Marek sempre foi protagonista e uma das estrelas do time. Na bola e na liderança.
E a cada ano que passava, o protagonismo parecia aumentar. Os gols decisivos ficaram frequentes. Gols como o da classificação diante do Villarreal, na Champions League de 2011-12. Gols em clássicos, na Serie A ou simplesmente na maior rival, a Juventus, numa final que tirou o time de uma fila de 22 anos sem títulos.
Em todos esses anos numa crescente. Uma carreira tão grande quanto o seu moicano. Em 11 temporadas vestindo azul, foram 121 gols, que lhe tornaram o maior artilheiro do Napoli. Marek Hamsík também é o jogador que mais entrou em campo com a camisa azzurra: 520 jogos.
Era frequente a pergunta em transmissões internacionais, como se o Napoli não fosse um clube que mantém seus jogadores, sobre “o que Hamsík ainda faz no Napoli?”, “como ainda não tiraram Hamsík dali?”. Durante a Euro 2016, o técnico eslovaco Jan Kozák fez essa pergunta publicamente em entrevista coletiva.
A todas essas questões, o capitão napolitano sempre ignorou. Sempre declarou ser feliz em Nápoles, cidade em que fez família e tem tatuada, com o escudo do clube, na pele. Uma cidade que tem uma região que parece ter sido criada em sua homenagem: Marechiaro, paradisíaco balneário em Posillipo, logo sofreu uma corruptela e se transformou em Marekiaro, apelido dado ao eslovaco que foi eternizado pelos torcedores. Sempre recusou propostas para sair e sempre teve vontade de vencer mais pelo Napoli. Não à toa é ídolo da torcida. Mas para atingir esse status todos esses anos, foi preciso dizer não a muitas ofertas.
Para explicar essa longevidade, é bom fazer uma volta ao início da década, que mostram algumas propostas recusadas pelo jogador pra permanecer no Napoli. Propostas que foram rejeitadas mesmo em momentos nos quais seus grandes companheiros, Cavani e Lavezzi, deixavam o clube rumo ao PSG, ou mais tarde, quando Higuaín “traía” o Napoli para ir à Juventus.
Voltemos a 2010-11, época em que Hamsík era o craque do time napolitano e tinha Mino Raiola como seu empresário. O Napoli tinha uma proposta do Milan na mesa: dinheiro e mais Alexandre Pato por Marek. A negociação já foi barrada pelo próprio jogador. Houve uma tentativa de negociação com a Inter. Ele negou. Foi também especulado em Real Madrid, Manchester City e vários outros. Preferiu ficar para a Champions.
Durante a temporada, Mino queria forçar uma venda. Houve assédio claro novamente da Internazionale e também do Manchester United. A última possibilidade de transferência até poderia balançar mais o coração do eslovaco, pois o United era um de seus “times de infância” ao lado do Barcelona e do Slovan Bratislava. Ele negou.
Mino, preparando o terreno pra uma tentativa de venda, já disse às vésperas de um jogo contra o Bayern pela Champions, em 2011, que o ambiente napolitano não era muito bom, o que o próprio Hamsík desmentiu. Ali, os dois começaram a romper, e a relação de jogador e empresário terminou definitivamente em 2012.
Em meio a todo o fim da história, Raiola dizia publicamente que Hamsík deveria sair do Napoli para se tornar grande no futebol. Não era comum para o empresário ter de lidar com um jogador com a personalidade de Marek. Não à toa, entre seus agenciados, não há qualquer atleta que seja ou tenha sido uma “bandeira” em qualquer clube.
O maior exemplo da escolha de vida que Hamsík fez é que somente um outro jogador deu um “pé na bunda” de Mino Raiola. O grande ídolo de Marek e, ironicamente, da odiada rival napolitana, a Juventus: Pavel Nedved, que recusou uma grande oferta do Chelsea para ficar na Juve em tempos de Serie B.
Lealdade que o próprio Nedved, como vice-presidente da Juventus, reconheceu em 2015, quando os bianconeri fizeram propostas a Hamsík, e o capitão negou. O checo lamentou e disse que “se Hamsík tivesse ido para a Juventus, viraria Bola de Ouro, mas sua carreira é fantástica mesmo assim”. Embora Nedved esteja aumentando a história, tendo em vista que o próprio ex-diretor esportivo juventino, Giuseppe Marotta, dissera que o Napoli também recusou a proposta – e uma “contraoferta” de 50 milhões mais os jovens Rugani e Sturaro. isso mostra o quanto a lealdade de um jogador incomoda muita gente. Principalmente empresários.
Mino Raiola já provou que nunca aceitou muito bem essa situação. Já lamentou publicamente que “Hamsík poderia ser um jogador de 60, 70 milhões, agora eu nem sei quanto ele vale”. Foi prontamente respondido por Marek: “ele tem o seu pensamento, eu tenho o meu. Estou contente aqui”, declarou.
Hamsík é um jogador que é respeitado na bola e respeitado fora de campo. Um dos maiores exemplos foi visto em meio ao imbróglio da renovação de contrato entre Donnarumma e o Milan, em 2017. A Curva Sud, a maior organizada de um dos maiores rivais napolitanos, o citou como exemplo do que Donnarumma deveria fazer na ocasião.
Grande parte do público mais recente da Serie A ou daquele que começou a acompanhar o futebol italiano no final dos anos 1990, teve seu primeiro contato com o Napoli com Hamsík em campo. Ao menos com um Napoli digno de sua história – afinal, não dá pra dizer que o time do início do século, que era ioiô no campeonato, honrava as glórias dos azzurri. Para essas pessoas, é quase impossível ver o Napoli sem Hamsík: suas figuras são indissociáveis.
Sua longevidade é tão grande que até mesmo os mais experientes precisar se esforçar muito pra lembrar de um Napoli sem Marek. E normalmente vão lembrar de outros ídolos. Certamente haverá discussões como se o eslovaco está somente abaixo de Maradona na categoria de lendas do clube – o que lhe caracterizaria o maior ídolo “humano” da história napolitana.
Nós, como torcedores do Napoli, sentimos algo semelhante no futebol mundial ao que sentiram os torcedores da Juventus com o adeus de Del Piero, ou mesmo os do Liverpool com a despedida de Gerrard. Não é uma aposentadoria, como aconteceu com Totti. É um sentimento de que ele não estará mais perto. Principalmente indo para o futebol chinês.
Tendo em vista que o futebol praticado fora da Europa é quase como a Sibéria aos olhos do resto do mundo, fica um sentimento de aposentadoria antecipada, visto que Marek tem quase 32 anos – completa em julho. Possivelmente, será seu último grande contrato como jogador de futebol. Como terá 35 anos quando o vínculo termina, o sentimento de aposentadoria aos olhos de quem o viu de perto é maior ainda.
É bem verdade que aos poucos, especialmente a partir da temporada 2017–18, a queda de produção foi evidente e os gols foram surgindo com menos frequência do que em outros períodos. Especialmente no segundo ano com Sarri, com quem foi mais artilheiro: na temporada 2016-17, fez 15 gols. O número de assistências também foi reduzido, embora a classe ainda estivesse ali. Marek sentiu muito a perda do scudetto, e já poderia ter ido embora para a China em junho.
Por ser o Napoli, e pela chegada de Ancelotti, Hamsík resolveu ficar por mais uma temporada. Carlo ainda lhe deu uma boa sobrevida jogando como uma espécie de regista, em seu 4–4–2, armando sempre as jogadas de trás e começando os ataques do time. A função reaproveitava seu lado físico e marcador, embora lhe tirasse o prazer de marcar gols: em 2018-19, marcou só um, contra o Estrela Vermelha, na Champions League. Acabou sendo seu último.
Por outro lado, a perda de espaço era evidente, na medida em que Ancelotti foi descobrindo posições para outros jogadores. Desde o recuo de Callejón e Verdi ao lado direito no 4–4–2, das presenças de Ruiz, Zielinski, Diawara e Allan e até de um possível recuo de Insigne, se necessário, a presença de Hamsík não parecia tão fundamental. Somado a isso, os problemas físicos apresentados pelo eslovaco na reta final de 2018 também comprometeram suas chances.
A menor influência dentro de campo pode ter sido uma das razões do Napoli tê-lo liberado tão facilmente para o Dalian Yifang quando viu a proposta. Talvez fosse parte das ideias de renovação futura do presidente Aurelio De Laurentiis e de Ancelotti. Ou mesmo em relação a uma “retribuição” a tudo o que ele se sacrificou pelo clube ao longo dos anos.
Baseado no que foi o primeiro jogo sem Hamsík, a vida sem ele não foi tão dura. Mas sempre será complicado nos próximos jogos olhar para o campo, par o banco, e não vê-lo mais. Justo ele que sempre foi o fio de esperança em momentos difíceis, graças à sua magia e capacidade de resolver partidas complicadas das mais diversas formas.
Agora não teremos mais um jogo em que ele aparece do nada, bate para o gol e resolve para o Napoli. Um duelo em que ele acha alguém pela esquerda ou pela direita e desbloqueia uma jogada que dá em gol. Ou um passe milimétrico que encontra qualquer um dos atacantes.
Roberto “Pampa” Sosa, Emanuele Calaiò, Marcelo Zalayeta, Ezequiel Lavezzi, Germán Denis, Fabio Quagliarella, Edinson Cavani, Goran Pandev, Lorenzo Insigne, Gonzalo Higuaín, José María Callejón, Duván Zapata, Manolo Gabbiadini, Dries Mertens, Arkadiusz Milik. Esses atacantes (de lado ou propriamente centroavantes) tiveram períodos de titularidade ou só entravam com os jogos em curso, mas sempre tabelavam com Marek. Recebiam bolas e as passavam ao eslovaco. Fizeram seu nome junto com o capitão (alguns fizeram questão de apagar, mas…). E fizeram o nome dele também.
Por ironia do destino, uma linda história de amor se encerrou nos campos justamente no Dia de São Valentim – ou Dia dos Namorados, na maior parte do mundo. Se foi o último dos moicanos em Nápoles. Ainda que existam ídolos como Hamsík no elenco, dificilmente serão tão simbólicos quanto ele.
Marek é, acima de tudo, o símbolo de um Napoli que saiu do inferno das divisões inferiores e voltou a frequentar o céu de brigas e conquistas de títulos. De um homem que abriu mão de muita coisa pra ser inesquecível em uma camisa. Uma paixão. Um clube.
Não é normal, nunca foi e nunca será jogadores ficarem por tanto tempo nos mesmos clubes. É por isso que Hamsík é tão grande no Napoli. É tão respeitado e exaltado inclusive pelos rivais. Não é à toa que a torcida do Milan, para cobrar postura de uma jovem estrela, o usou como exemplo de lealdade a um clube, como exemplo de um jogador que respeita as cores que representa. Tudo isso em tempos nos quais jogadores parecem ignorá-las.
A quantia de 5,5 milhões de euros foi o que o Napoli pagou para ter Hamsík, em 2007. O valor, que era alto para a época, acabou se mostrando uma verdadeira bagatela. Afinal, Marek só deu lucro para o Napoli em termos de bola jogada e conquistas. Financeiramente, também, já que os valores da negociação com os chineses rondam a casa dos 20 milhões de euros.
Por ter ficado tanto tempo em Nápoles, talvez Hamsík tenha perdido algum dinheiro – que, certamente, irá recuperar jogando na China – ou a chance de, hipoteticamente, ganhar mais títulos. No entanto, levantou taças pelo Napoli, o que é “melhor do que vencer em qualquer outro lugar do mundo”, segundo o próprio.
Ganhou títulos e quebrou recordes atrás de recordes. Quebrou os já citados recordes de Bruscolotti (de partidas disputadas) e de um certo Maradona (maior artilheiro do clube), foi capitão e levantou taças. E fará todos sentirem uma saudade danada.
Ainda não inventaram nenhuma palavra melhor do que saudade pra falar sobre o vazio que alguém faz nas nossas vidas. E saudade define o que os torcedores do Napoli viverão sentindo a partir desses dias de fevereiro, quando o assunto for Marek Hamsík.
Marek, você virou saudade. Vira saudade no amante do futebol, que se quiser vê-lo vai ter que se desdobrar atrás de transmissões aleatórias da Superliga chinesa. Vira saudade no torcedor do Napoli. Vira saudade para sempre. Virou história.
De minha parte, Grazie, Cap17ano.
“Tenho tudo que eu sempre precisei em Nápoles e na Itália. O futebol é importante para mim, e poder jogar pelo Napoli por dez anos tem sido uma das maiores honras da minha vida. Mas a razão pela qual eu fiquei tanto tempo é mais do que futebol. Em Nápoles, eu sou parte de uma comunidade — uma família — que tem um lugar muito especial dentro do meu coração. Preciso ter mais do que um salário e taças. Eu preciso sentir algo na minha alma. Nápoles me deu isso, e eu sou eternamente grato. Obrigado”.
Marek Hamsík ao “The Players’ Tribune”