Jogadores Técnicos

Eraldo Monzeglio, o bicampeão mundial esquecido pelos estreitos laços com o fascismo

Há um risco inerente à radical tomada de um lado na discussão política. Aquele que apoia cegamente uma ideologia carrega consigo o peso de seus erros e se cobre com todo o ônus que ela, eventualmente, traga a uma sociedade. Aconteceu com os adeptos de primeira hora do fascismo e os apoiadores do regime até a sua queda. Essas pessoas foram coniventes com diversas atrocidades e, ainda que não tenham participado diretamente de atos criminosos, foram ostracizadas – elas próprias ou o seu legado – pela sociedade contemporânea. Tal situação ocorreu com Eraldo Monzeglio, jogador bicampeão mundial pela Itália.

Nascido em uma pequena cidade em Piemonte, norte da Itália, Eraldo começou a jogar nas divisões de base do Casale, time de sua província. Na época, a formação nerostellata jogava a primeira divisão e havia sido campeã nacional poucas temporadas antes. Em 1923, aos 17 anos, Monzeglio subiu para os profissionais e começou a jogar como defensor, chamando atenção de olheiros de todo o país.

Em 1926, o time piemontês teve problemas financeiros e cedeu o jogador para o Bologna, que era um dos melhores times italianos naquela época. Monzeglio viajou para a Emília-Romanha e se tornou companheiro de equipe de grandes nomes, como o atacante Angelo Schiavio. O comandante daquela formação imponente, lembrada até hoje, era Hermann Felsner.

Com o título em 1929, o esquadrão bolonhês ganhou ainda mais fama nacional e internacional. Como consequência, no ano seguinte o piemontês começou a ser convocado por Vittorio Pozzo, técnico da seleção italiana, mesmo não tendo um porte físico para sua posição. Com apenas 1,72m e 67 quilos, tinha uma grande desvantagem em relação aos atacantes, mas conseguia compensá-la em seu senso de posicionamento, desarmes e bolas longas ao ataque. Era um perfeito defensor lateral tanto para o “método” de Pozzo quanto para o WM em que atuava no seu clube.

Numa folga da seleção italiana na Copa de 1934, Monzeglio brinca perigosamente na garupa de uma moto (Fifa)

Monzeglio foi convocado para a Copa do Mundo de 1934 e jogou quatro das cinco partidas da Itália no torneio, garantindo a solidez defensiva necessária para o primeiro título mundial dos azzurri. Um ano depois, o lateral se transferiu para a Roma, clube em que teve menos sucesso do que no Bologna. Pelos rossoblù, além de campeão italiano, venceu duas Copas Mitropa – competição internacional que é considerada  como uma das precursoras da Liga dos Campeões. Com a camisa giallorossa, Eraldo obteve apenas o vice-campeonato nacional em 1936.

Enquanto defendia a Roma, Monzeglio continuou sendo convocado para a seleção nacional. Mesmo envelhecido, o defensor acabou participando também da Copa de 1938, na qual disputou apenas o jogo de estreia, que também viria a ser o seu último com a camisa azul Savóia. Eraldo é um dos quatro italianos que conseguiram ser bicampeões mundiais – os outros são Guido Masetti, Giovanni Ferrari e Giuseppe Meazza.

No fim da temporada seguinte, Monzeglio se aposentou do futebol como jogador profissional, com mais de 400 jogos disputados e cinco tentos. O zagueiro tinha 33 anos e alguma lenha para queimar, mas tinha outros planos naquele momento. Ideias que haviam motivado sua transferência para a Roma.

A troca do Bologna pela Roma não foi um mero acordo esportivo: o intuito de Monzeglio era estreitar ainda mais seus laços com Benito Mussolini. A amizade com o Duce era pública e começou em 1934, quando o zagueiro se tornou o professor de tênis e o preparador físico da família do ditador. Isso colocou um grande ponto de interrogação em sua trajetória: Eraldo, o defensor franzino, fora convocado para dois Mundiais pela sua capacidade técnica ou porque era amigo de Mussolini? Perguntas do mundo do futebol que jamais iremos saber a resposta.

Eraldo compareceu ao funeral do Grande Torino ao lado de Vittorio Pozzo, seu mentor (RCS)

A afinidade de Monzeglio com os ideais pretensamente patrióticos do fascismo era tão grande que o ex-jogador decidiu ser voluntário na II Guerra Mundial. O ex-defensor foi oficial na malfadada campanha italiana na Rússia, que terminou com o exército fascista praticamente dizimado – entre os cerca de 300 mil soldados enviados, 75 mil morreram e 40 mil se feriram gravemente ou acabaram congelados. A clamorosa derrota na frente oriental fez com que o rei Vittorio Emanuele III rompesse com Mussolini e o destituísse, para que fosse assinado um armistício com os Aliados.

O Duce foi preso, mas acabou resgatado por uma missão alemã um mês e meio depois. A Itália estava sob o domínio dos nazistas em todo o norte, a partir de Roma, e Mussolini ficou a cargo de tocar o estado-fantoche, batizado de República de Salò, pois sua sede ficava na homônima cidadezinha na província de Brescia. Segundo o Corriere della Sera, um dos principais jornais italianos, Monzeglio acompanhou o ditador também nessa etapa, após retornar à Itália.

“Eraldo Monzeglio permaneceu com os Mussolini até o último dia. Monzeglio morava na Villa Feltrinelli [residência do ditador em Gargnano, às margens do Lago de Garda] e comia à mesa com Rachele [esposa de Benito]. Mussolini não ia almoçar, geralmente comia em seu escritório na Villa Orsoline, duzentos metros adiante. Rachele o enviava a Verona para buscar óleo e manteiga contrabandeados. O famoso lateral havia se tornado o faz-tudo da família”, informava um artigo escrito no jornal, em meados dos anos 1990.

Após o final do regime e a execução do ditador, Eraldo se dedicou à carreira de técnico – bastante modesta, se a compararmos ao seu período dentro das quatro linhas. Seu passado como colaborador de Mussolini não o atrapalhou nessa empreitada – ainda que, anos depois, seu legado fosse questionado. Monzeglio iniciou seu período na linha lateral treinando o Como, em 1946, e depois a Pro Sesto, por mais dois anos. Ambos os times disputavam a Serie B e terminaram as temporadas sob o comando do bicampeão mundial em posições no meio da tabela.

No Napoli, Monzeglio posa ao lado do atacante Hasse Jeppson (Soccer Nostalgia)

Em 1949, Eraldo iniciou seu trabalho mais duradouro fora das quatro linhas: ficou à frente do Napoli por sete anos. O piemontês tirou os campanos da Serie B e os colocou na briga por títulos, chegando a deixar os azzurri entre os seis melhores da Serie A em cinco anos seguidos, até entregar o cargo, em 1956 – na última campanha, os partenopei lutaram para não cair. Até os dias de hoje, nenhum treinador ficou tantos anos consecutivos no comando do Napoli.

Depois de uma bem-sucedida passagem aos pés do Vesúvio, Eraldo aceitou treinar o Monza, na Serie B, e uma temporada depois assinou com a Sampdoria. Durante três anos em Gênova, surpreendeu a Itália ao levar a equipe à quinta posição da Serie A, em 1959, e à quarta, em 1961 – pelo bom trabalho, ganhou o prêmio Seminatore d’Oro, dado ao melhor técnico do país.

Em 1962, retornou ao Napoli como diretor técnico para garantir que o jovem Bruno Pesaola pudesse exercer o comando da equipe – na Itália, treinadores sem licença só podem atuar caso outro seja, no papel, o responsável pelo time. Depois do rebaixamento azzurro, ficou alguns meses parado, mas o destino lhe reservou a realização de seu sonho de criança: treinar a Juventus.

O brasileiro Paulo Amaral foi demitido após a quarta rodada da Serie A 1963-64 e Monzeglio o substituiu. Contudo, o piemontês durou 20 rodadas no cargo e também acabou exonerado – a Velha Senhora terminaria a temporada na quinta colocação no campeonato. Após breves passagens por Chiasso, da Suíça, e Lecco, Eraldo aposentou-se em 1973.

O argentino Omar Sívori, o brasileiro Dino da Costa e o técnico Monzeglio, na Juve (L’Unità)

Monzeglio faleceu no início da década de 1980, em Turim, aos 75 anos, e foi enterrado na província onde nasceu, ao lado de Umberto Caligaris. Ex-zagueiro da Juventus, Caligaris também foi ídolo do Casale e foi o responsável por descobrir o futebol de Eraldo, quando este ainda era adolescente. Ademais, os dois foram companheiros na zaga nerostellata por três anos. Em 2013, Monzeglio também recebeu a honra de entrar para o Hall da Fama do Futebol Italiano. Foi o primeiro reconhecimento que o piemontês recebeu desde sua morte.

Sem sombra de dúvida, os livros de história são implacáveis e não costumam perdoar amizades pessoais com ditadores ou laços estreitos com governantes autoritários. Eraldo ganhou duas Copas do Mundo, mas sempre será lembrado como o defensor que trocava declarações amigáveis com Mussolini, trocou de time para ficar mais perto dele e, inclusive, serviu à sua família.

Serve de conselho para alguns jogadores atualmente, tanto no Brasil quanto na Itália, que acham uma boa ideia colaborarem e se colocarem ao lado de certos políticos com tendências antidemocráticas. Hoje, na cabeça deles, pode até parecer um bom negócio, mas historicamente, eles sempre estarão do lado errado. E isso ofuscará até a glória máxima de um título mundial.

Eraldo Monzeglio
Nascimento: 5 de junho de 1906, em Vignale Monferrato, Itália
Morte: 3 de novembro de 1981, em Turim, Itália
Posição: zagueiro e lateral-direito
Clubes como jogador: Casale (1923-26), Bologna (1926-35) e Roma (1935-39)
Títulos como jogador: Campeonato Italiano (1929), Copa Internacional (1930 e 1935), Copa Mitropa (1932 e 1934) e Copa do Mundo (1934 e 1938)
Clubes como técnico: Como (1946-47), Pro Sesto (1947-49), Napoli (1949-56 e 1962-63), Monza (1956-57), Sampdoria (1958-62), Juventus (1963-64), Chiasso (1966 e 1973) e Lecco (1967)
Títulos como técnico: Serie B (1950)
Seleção italiana: 35 jogos

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