Nos idos dos anos 1930, a palavra “apartheid” começava a ser utilizada na África do Sul, embora a segregação racial existisse desde o início da colonização britânica no país. A população sul-africana era constituída majoritariamente por não brancos, mas era a minoria de ascendência europeia que ocupava as posições mais importantes da sociedade, como nos âmbitos político e esportivo. Eddie Firmani foi um desses privilegiados: branco e neto de um imigrante italiano, teve oportunidades no futebol ainda na juventude, e, também na adolescência, rumou para a Inglaterra, onde deu início a sua promissora carreira como jogador.
Na transição entre as décadas de 1940 e 1950, o Charlton, de Londres, costumava pescar talentos na África do Sul. Foi numa dessas incursões dos Addicks ao continente africano que Firmani e o seu amigo Stuart Leary, ambos naturais da Cidade do Cabo, foram descobertos. Assim, aos 17 anos, os atacantes trocaram o pequeno Clyde pela capital da Grã-Bretanha, onde encontrariam compatriotas como John Hewie e Sid O’Linn. Todos eram filhos de britânicos.
Inicialmente, Firmani ganharia míseras 7 libras esterlinas por semana. Ao lado de Leary, Eddie fez sucesso instantâneo no ataque dos Addicks, que disputavam a primeira divisão inglesa e brigavam para permanecer na categoria. Em cinco anos no Charlton, o sul-africano de origem italiana contribuiu para um ótimo quinto lugar na temporada 1952-53, chegou a marcar cinco gols numa só partida, em 1954, contra o Aston Villa, e ainda foi o vice-artilheiro do campeonato nacional em 1954-55, com 26 tentos.
Contudo, apesar do status de estrela e a admiração inigualável da torcida, o salário recebido pelo sul-africano não o contentava. Na realidade do futebol inglês da época, mesmo sendo o principal jogador da equipe, o máximo que Firmani poderia ganhar eram 15 libras esterlinas, semanalmente, durante toda temporada; no verão, o valor seria reduzido para 13.
Mesmo que o Charlton tentasse segurar o atacante, as propostas que chegavam de clubes estrangeiros, no verão de 1955, superavam de forma discrepante a quantia recebida por ele na Inglaterra. Um encontro num hotel de Londres com Gigi Peronace – agente italiano responsável por grandes transferências de atletas britânicos para o Belpaese nas décadas de 1950 e 1960 – deixou tudo resolvido. Eddie ganharia, além do salário pago pela agremiação que o comprasse, um carro, uma casa e um bônus para o caso de ser convocado para a seleção italiana.
A melhor proposta daquela janela de transferências partiu de Giuseppe Ravano, filho de Alberto Ravano, presidente da Sampdoria: 35 mil libras esterlinas seriam pagas ao Charlton, num valor recorde para o futebol britânico da época. Firmani ganharia o equivalente a 5 mil libras ao longo de dois anos – mais de três vezes o que recebia em Londres, o que tornava a oferta irrecusável. Dessa forma, o sul-africano chegou a Gênova ainda no verão de 1955.
Os anos italianos
Adaptar-se a uma novíssima cultura não seria tarefa fácil, e a ascendência italiana do avô, um emigrante que saíra da Riviera Lígure para viver na África do Sul, não foi de grande auxílio. Aliás, houve uma grande dificuldade para se traçar a linhagem de Firmani, pois não havia documentos que confirmassem a origem italiana – a maior parte deles foi destruída na II Guerra Mundial. Nos primeiros meses, Eddie sequer conseguia chutar a gol; além disso, o rígido e extremamente físico regime de treinos, comum no país à época, deixaria o atacante assustado. A longo prazo, nada disso, porém, impediria o seu brilhantismo à frente da baliza.
Em outubro de 1955, marcou seu primeiro gol, contra a Lazio. No final do primeiro turno da Serie A 1955-56, o veloz e habilidoso centroavante já contava com nove tentos, impulsionada pela incrível façanha realizada contra a Pro Patria: Firmani anotou quatro vezes na goleada da Sampdoria por 7 a 0. Ao final daquele campeonato, o centroavante contabilizou 17 bolas nas redes. Com a chegada da estrela Ernst Ocwirk na temporada seguinte, a artilharia foi dividida, e Eddie somou 12, assim como o austríaco.
O fenomenal desempenho levou Firmani a ser convocado para a seleção italiana, em 1956. Na estreia, um amistoso contra a Suíça, marcou um golaço com um chute de fora da área. Entretanto, via-se nas arquibancadas cartazes que continham frases como “fuori gli oriundi” – ou seja, alguns torcedores exigiam que a Squadra Azzurra não convocasse jogadores de descendência itálica que não tivessem nascido no país. No fim das contas, o oriundo fez três partidas pela Nazionale, que não se classificou para a Copa do Mundo de 1958, e anotou dois gols.
Em 1957-58, Eddie teve mais uma temporada prolífica pela Sampdoria: marcou 23 gols e foi vice-artilheiro da Serie A, atrás apenas do juventino John Charles. Nos dois (bons) primeiros anos pela equipe blucerchiata, Firmani já havia sido importante para a conquista da 6ª e da 5ª posições no campeonato; respectivamente – na época de sua exibição mais fabulosa, a Samp teve desempenho inferior e foi 12ª colocada. O desempenho fenomenal do sul-africano, que anotara 52 tentos em 83 aparições pelos dorianos, lhe renderia uma importante transferência.
No verão de 1958, o atacante de 25 anos foi negociado com a Inter, que cedeu o zagueiro Guido Vincenzi para o time genovês. Na Ligúria, Firmani se destacava mesmo com atacantes “comuns” ao seu lado, enquanto na equipe nerazzura ele viveria seu zênite. Na sua primeira temporada pela Beneamata, Eddie tinha o dever de substituir o ídolo Benito Lorenzi e não decepcionou: marcou 20 gols em 30 partidas de Serie A. Na soma com os tentos do feroz argentino Antonio Angelillo, que colocou incríveis 33 bolas na rede, tivemos 53 assinaturas da dupla.
A Inter teve um bom desempenho no campeonato nacional, que concluiu na terceira posição. Na Coppa Italia, os nerazzurri chegaram à final, mas perderam para a Juventus de Charles, Omar Sívori e Giampiero Boniperti. E, claro, Eddie brilhou no torneio: com oito gols anotados em seis partidas, foi o artilheiro da competição. Contra o Mantova, na primeira fase, Firmani marcou cinco deles.
O sucesso em Milão logo rendeu um apelido para o sul-africano de origem italiana: para a torcida, ele era “Il Tacchino freddo” ou “Il Tacchino d’Oro”. Ou seja, “o peru frio” ou “o peru de ouro”. Primeiro, Firmani foi comparado à ave pelo jeito que corria, com o corpo inclinado para frente e com os braços flexionados como se fossem asas. A frieza se devia à fleuma demonstrada quando marcava seus muitos gols – motivo pelo qual ganhou o epíteto dourado.
Os dois anos seguintes, aliás, foram igualmente prolíficos para Firmani, que foi o artilheiro da Inter em ambas as ocasiões. Eddie marcou 18 gols na temporada 1959-60, não muito positiva para os nerazzurri, e, na seguinte, com a chegada do lendário Helenio Herrera, 23. A relação com o intempestivo técnico franco-argentino, aliás, se tornou intolerável: além de exigir do sul-africano um comportamento tático diferente do qual ele estava acostumado, o rígido treinador também interferia na sua vida privada. O mesmo acontecia com Angelillo. Rompidos com o comandante, ambos saíram de Milão em 1961. Depois de 69 tentos em 102 aparições pela Beneamata, Edwin retornaria a Gênova, mas para vestir uma camisa diferente.
Firmani optou por representar o Genoa, que disputaria a Serie B em 1961-62 e almejava retornar à elite após o terceiro rebaixamento de sua história, ocorrido duas temporadas antes. Aos 29 anos, Eddie foi importantíssimo para o triunfo da equipe na categoria, com 17 gols marcados. Os rossoblù também faturaram a Copa dos Alpes.
Na época seguinte, Eddie entrou para a história do Derby della Lanterna ao se tornar o segundo jogador em toda a história a marcar tanto pela Sampdoria quanto pelo Genoa – somente três foram capazes do feito até hoje. Em 1963, após uma boa Serie A e oito gols pelos grifoni, que garantiram, com alguma dificuldade, a salvezza, Firmani e a sua família deixaram as terras italianas. Ao todo, o atacante disputou 161 partidas e anotar 108 vezes na máxima divisão da Velha Bota. O sul-africano é, até hoje, o único atleta a guardar mais de 100 tentos no Campeonato Italiano e no Inglês.
A autobiografia de Firmani
A vida na África do Sul, onde nasceu, as aventuras na Inglaterra e na Itália, além dos detalhes da transferência milionária que o levou à Sampdoria foram detalhados em primeira pessoa por Firmani em sua autobiografia. O livro, intitulado “Football With the Millionaires”, foi escrito durante a sua estadia no Belpaese e publicado em 1960, quando atuava pela Inter. Em suas páginas, oferece uma interessante síntese de como era o mundo do futebol nas décadas de 1950 e 1960, e mostra como o dinheiro era escasso na época.
Em uma passagem da obra, Firmani brinca com o valor insuficiente do salário o qual ganhava na Inglaterra. No trecho referido, Edwin vai às compras com sua esposa, Pat, achando que iriam gastar aproximadamente 1 libra por dia com refeição. Na sequência, há uma tabela em que as despesas da família são colocadas em oposição à sua renda com o esporte – cerca de 70 libras mensais. Mesmo sendo um dos principais jogadores da Europa naquele tempo, o sul-africano tinha um salário equiparável ao de um trabalhador comum. Um outro universo, se comparado com a realidade do século XXI.
Aposentadoria e a carreira como treinador
Firmani retornou ao Charlton em 1963, para a disputa da segunda divisão inglesa. Ficou pouco mais de dois anos no time e rumou para o Southend United, que disputava a terceirona. Em 1968, pendurou as chuteiras na terceira passagem pelos Addicks, se firmando na lista dos 10 maiores artilheiros da agremiação. Após a aposentadoria, continuou sendo funcionário do clube e ocupou o cargo de treinador por três anos, antes de partir para os Estados Unidos.
Nas terras ianques, pode-se dizer que o problema de Firmani com o dinheiro estaria resolvido. Isso porque, para treinar o Tampa Bay Rowdies, o sul-africano ganharia mais de 22 mil dólares por ano. Com o time recém-fundado, venceu a liga norte-americana de 1975. A passagem não durou muito, pois, em 1977, uma proposta irrecusável chegaria: era do New York Cosmos, clube patrocinado pela Warner e casa de jogadores como Pelé, Carlos Alberto Torres, Giorgio Chinaglia e Franz Beckenbauer.
Com um salário de 100 mil dólares anuais e o privilégio de treinar craques incomparáveis, Firmani alcançava a glória. Ele resume o sentimento numa entrevista concedida ao The Guardian. “Nós tínhamos as estrelas. Qualquer técnico do mundo gostaria de ter o privilégio de treinar este time. Vários desses jogadores poderiam ainda estar atuando nas principais ligas, em qualquer lugar do mundo, se você soubesse como usá-los”, afirmou.
Firmani levou os craques à conquista da NASL, a liga norte-americana, em 1977 – título obtido após um 2 a 1 do Cosmos na final contra o Seattle Sounders. O sul-africano também esteve presente na despedida de Pelé, realizado no Giants Stadium. Na já citada entrevista ao jornal inglês, aliás, ele comentou como era treinar o Rei. “Foi fácil treinar Pelé. Ele foi o melhor jogador que já jogou o jogo. [Diego] Maradona nem chega perto. […] Eu o enfrentei uma vez, num amistoso da Inter contra o Santos. E 20 anos depois, eu o treinava”, relembrou.
Pelé se aposentou, mas Firmani ficou no Cosmos até 1979, e conquistou mais um título da NASL. Precisou sair do time após ter conflitos com Chinaglia, “O Poderoso Chefão”, que reportou a crise com Steve Ross, dono da Warner. Entre 1979 e 1996, Eddie comandou equipes da América do Norte (EUA e Canadá) e do Oriente Médio (Omã e Kuwait). Inclusive, quando o Kuwait foi invadido pelo Iraque, o treinador chegou a ser preso e só foi libertado após três meses de negociações com os soldados de Saddam Hussein.
Hoje, Eddie Firmani vive com a família na Inglaterra, longe do mundo futebolístico. Afinal, mais cedo ou mais tarde chegaria a hora de dizer basta às aventuras.
Edwin “Eddie” Ronald Firmani
Nascimento: 7 de agosto de 1933, em Cidade do Cabo, África do Sul
Posição: atacante
Clubes como jogador: Charlton (1950-55, 1963-65 e 1967-68), Sampdoria (1955-58), Inter (1958-61), Genoa (1961-63), Southend United (1965-67) e Tampa Bay Rowdies (1975)
Títulos como jogador: Serie B (1962) e Copa dos Alpes (1962)
Clubes como treinador: Charlton (1967-70), Tampa Bay Rowdies (1975-77), New York Cosmos (1977-79 e 1984), Philadelphia Fury (1980), Montréal Manic (1981-82), Inter Montréal (1983), Kazma (1985-90), Al-Talaba (1990), Montréal Supra (1991), Sur (1992-93), Montréal Impact (1993) e New York/New Jersey MetroStars (1996)
Títulos como treinador: NASL (1975, 1977 e 1978)
Seleção italiana: 3 jogos e 2 gols