Nos últimos dois meses, o Quattro Tratti está trazendo aos leitores a série “Pequenos milagres”, na qual contamos sobre as façanhas de equipes pequenas em suas participações na elite. Desta vez, falaremos de um dos times mais tradicionais e charmosos do futebol italiano, que acumula 37 participações na Serie A e, em diferentes ocasiões, conseguiu chegar longe: o Vicenza. Os biancorossi nunca foram campeões, mas conquistaram um segundo lugar no fim dos anos 1970.
O Vicenza é a agremiação futebolística mais antiga da região do Vêneto, com fundação em 1902 – um ano antes do Hellas Verona, seu maior rival. Nos primeiros anos de sua existência, os vicentinos jogaram as divisões inferiores da Itália e estrearam na primeira divisão em 1910. Quando o campeonato foi reformulado e começou a ser disputado em pontos corridos, em 1929, o Vicenza já havia voltado para a segunda divisão, de forma que participaria pela primeira vez da fase moderna da Serie A apenas em 1942.
Até 1953 o Vicenza ainda não havia feito muito na história do futebol italiano. Entre os maiores destaques dos biancorossi até aquele momento estavam a quinta colocação na Serie A 1946-47 e a revelação de alguns jogadores importantes para a época, como os meias Osvaldo Fattori e Alfonso Santagiuliana, além do atacante Romeo Menti, peça importante do Grande Torino. Após falecer junto com o time multicampeão no Desastre de Superga, Menti foi homenageado com o nome do estádio da cidade vêneta, que seria palco de sucessos nas décadas seguintes.
Lanerossi: 20 anos consecutivos na Serie A
Em 1953, o Vicenza, conhecido como ACIVI (por causa de seu primeiro nome, Associazione Calcio in Vicenza), foi comprado por uma grande indústria têxtil de Schio, cidade da região: a Lanerossi. A fábrica de lãs do empresário Alessandro Rossi adquiriu e rebatizou o clube, que começou a ser conhecido pelo nome de Lanerossi Vicenza e pelo R em formato de uma linha, desenhado em azul sobre a camisa listrada em branco e vermelho ou em dourado na bandeira do clube.
O regulamento do Campeonato Italiano só passou a permitir patrocínio nos uniformes dos clubes a partir da década de 1980, de forma que a iniciativa dos lanerossi acabou sendo pioneira. A fusão entre clubes e empresas existiram outras vezes na Itália – casos de Juventus Cisitalia, Torino Fiat e Talmone Torino –, mas somente o Vicenza “driblou” a lei, colocando a marca da financiadora entre os símbolos do clube e até mesmo na camisa. A existência do Lanerossi Vicenza foi uma das mais duradouras experiências de financiamento empresarial de um time do futebol italiano.
Os investimentos da Lanerossi no Vicenza o levaram à elite de forma quase instantânea: o time foi adquirido em 1953 e em 1955 garantiu o acesso. Daí em diante, os biancorossi conseguiram se manter na Serie A por 20 temporadas consecutivas na Serie A, período em que começou a ser apelidada de “La nobile provinciale” e “Provinciale di lusso” – nobre provinciana e provinciana de luxo, nas respectivas traduções para o português.
Em um primeiro momento na elite, o Vicenza se destacou por realizar campanhas sólidas e por revelar jogadores, como o goleiro Franco Luison, os meio-campistas Giorgio De Marchi e Luigi Menti (sobrinho de Romeo), além do atacante Sergio Campana. Os berici também tiveram em seu elenco e valorizaram jogadores como o defensor Mario David, o volante Giorgio Puia e o atacante Oscar Damiani, que chegaram a jogar na seleção italiana. Porém, um dos italianos que a torcida biancorossa mais amou neste período foi o zagueiro Giulio Savoini, que defendeu o clube de 1953 a 1966, atingindo a marca de 317 jogos – ninguém o superou até hoje. O líbero também foi auxiliar do time em seu ápice, na década de 1970, treinador em duas ocasiões, e teve a camisa 3, que utilizava, aposentada.
Um Vicenza com tempero brasileiro
As duas décadas dos lanerossi na Serie A fazem parte de um período conhecido pelos torcedores como “Il ventennio”. Nestes 20 anos, os técnicos mais representativos foram Manlio Scopigno (campeão italiano com o Cagliari) e Ettore Puricelli (vencedor com o Milan), mas a participação de dois jogadores brasileiros é que foi fundamental: em momentos diferentes, Luís Vinício e Chinesinho foram os diferenciais de um elenco dedicado, mas pouco brilhante.
Vinício foi o primeiro a fechar com os berici, em 1962. O atacante formado no Botafogo já havia se consagrado com a camisa do Napoli, mas foi com a camisa biancorossa que viveu seu auge. Ele foi contratado em 1962, quando já tinha 30 anos, e ficou no clube até 1966 – tendo uma segunda passagem entre 1967 e 1968.
Nos primeiros quatro anos no Vêneto, o brasileiro anotou 61 gols, contribuindo bastante para que o Vicenza alcançasse a 6ª posição em duas ocasiões e a 7ª em uma. Em 1965-66, o brasileiro foi o goleador do campeonato, com 25 tentos, e acabou negociado com a Grande Inter. A marca do “mítico” Luís Vinício só seria alcançada novamente na Itália 26 anos depois, quando Marco van Basten foi o artilheiro da temporada 1991-92.
Assim que Vinício se aposentou, em 1968, o Lanerossi Vicenza apostou em outro experiente brasileiro para substitui-lo. Chinesinho, de 33 anos, contava com um currículo extenso: seis temporadas na Itália, títulos por Internacional, Palmeiras e Juventus, além de 17 jogos pela Seleção.
O gaúcho jogava mais recuado, como regista, e teve resultados menos expressivos do que os de Vinício e companhia, nos anos anteriores à sua chegada. Mesmo assim, não deixou o Vicenza cair e virou ídolo dos torcedores – e de um deles em especial: um pequeno Roberto Baggio frequentava o Romeo Menti com seu pai e aprendeu a gostar do esporte assistindo o brasileiro jogar. Anos depois, no início da década de 1980, o garoto se tornaria profissional exatamente com a camisa dos lanerossi.
Após a saída de Chinesinho, em 1972, os vicentinos caíram de produção. O time quase foi relegado em 1972-73, mas quando o rebaixamento já era dado como certo, o Vicenza venceu o confronto direto contra a Atalanta graças a um gol contra nerazzurro. Os lanerossi permaneceram na Serie A por mais duas temporadas, até 1975, quando completavam exatos 20 anos na elite.
O auge: com tricampeão mundial, os lanerossi brigariam pelo scudetto
Após a queda, o Vicenza teve um ano negativo na segundona e brigou para não encarar a Serie C. Em 1976, tudo mudou e os primeiros pilares do time dos sonhos foram construídos: o presidente Giuseppe Farina – que tinha apenas 2% das ações, mas o controle administrativo vicentino desde 1968 – contratou o técnico Giovan Battista Fabbri, campeão da Serie C com o Piacenza em 1975. Também chegou ao Vêneto o atacante Paolo Rossi, revelação da Juventus: foi com a camisa alvirrubra que a carreira de Rossi começou a mudar – e foi ele quem ajudou a construir parte da história dos berici.
O técnico Gibì Fabbri praticava um futebol com influências do Totaalvoetbal holandês, considerado bastante avançado para os padrões táticos italianos à época. Os laterais eram bastante ofensivos e praticavam ultrapassagens com os alas. Ao mesmo passo, meias e defensores trocavam rapidamente de funções, confundindo os adversários. O treinador também gostava de usar um atacante fixo na área e apostou em Rossi: o jogador, que era um atacante pelos flancos, foi transformado por Fabbri em centroavante. A capacidade de observação do treinador fez com que Rossi viesse a se tornar um dos principais goleadores do futebol italiano e que a relação da dupla fosse excepcional.
Já na primeira temporada de Fabbri e Rossi em Vicenza, a equipe conquistou o título da Serie B, em uma temporada bem equilibrada. Pablito foi o artilheiro, com 21 tentos anotados, e a equipe ainda teve como destaques o goleiro Ernesto Galli, o lateral esquerdo Luciano Marangon, os defensores Giuseppe Lelj e Giorgio Carrera e os meias Renato Faloppa e Roberto Filippi. Todos os citados formariam a base do time que impressionaria a Itália na elite e passaria a ser conhecido como “Real Vicenza”.
O início na Serie A 1977-78 não foi dos melhores, e o Vicenza somou duas derrotas e três empates nas cinco primeiras partidas. Apenas a partir de um 4 a 2 sobre a Atalanta (jogo em que estreou o regista Mario Guidetti, peça importante do time, autor de dois gols) é que os lanerossi começaram a mostrar seu estilo, com futebol ofensivo e pouco preocupado com a defesa – especialmente para os padrões italianos.
O esquema 1-3-5-1 de Gibì Fabbri começou a dar resultados a partir de então, e o Lanerossi Vicenza engatou uma sequência de onze jogos de invencibilidade, entrando na briga pelo scudetto. O nono jogo desta série foi o confronto direto contra a Juventus, que também tinha 18 pontos à altura da 15ª rodada, que fechava o primeiro turno. A partida, disputada no Romeo Menti, acabou empatada em 0 a 0, e registrou o recorde de público do estádio, que recebeu 31.023 pessoas naquele 22 de janeiro de 1978.
Ao longo do campeonato, o Vicenza não conseguiu competir com uma Juventus fortíssima, treinada por Giovanni Trapattoni e com fortíssima defesa (Dino Zoff, Claudio Gentile, Gaetano Scirea e Antonio Cabrini) e bom ataque (Roberto Bettega e Roberto Boninsegna). Mesmo assim, os berici fizeram uma campanha belíssima, com importantes vitórias sobre Roma, Lazio, Napoli e Fiorentina, e terminaram a temporada com o melhor ataque, com 50 gols marcados – 24 deles por Rossi. Pablito foi o artilheiro do campenato, com oito gols à frente de Giuseppe Savoldi, do Napoli.
O atacante já ganhara convocações para a seleção de Enzo Bearzot e representaria a Itália na Copa de 1978. Na competição, em que a Squadra Azzurra foi quarta colocada, Rossi marcou três gols e foi um dos melhores jogadores do torneio. As grandes atuações do atacante toscano fizeram com que ele fosse considerado uma das peças preferidas do técnico e lhe garantissem uma vaga até mesmo na Copa de 1982, na qual Rossi foi o grande responsável pelo tri italiano. Pablito, inclusive, foi o único jogador do Vicenza a disputar um Mundial pela Itália.
Após o vice e a Copa de 1978, os berici enfrentaram uma dura realidade e começaram a entrar em derrocada. A origem do retrocesso dos lanerossi foi financeira e envolveu o seu maior ídolo: para assegurar a permanência de Rossi, cujo passe era 50% de propriedade da Juventus, o presidente Farina desembolsou um valor absurdo para a época (quase 3 bilhões de liras), fazendo do atacante o jogador mais caro do mundo. Nem mesmo a tentativa de cobrir o rombo com a venda de carnês de sócio-torcedor salvou as contas dos biancorossi, que perderam estabilidade.
Para piorar, o tiro saiu pela culatra. Pablito Rossi teve seu desempenho comprometido por uma lesão no joelho, sofrida na eliminação na Copa Uefa diante do Dukla Praga, e seus 15 gols não conseguiram salvar o Lanerossi Vicenza do rebaixamento em 1978-79. O time decepcionou e só conseguiu cinco vitórias – uma no returno –, além de 14 empates, passando de um incrível vice-campeonato ao rebaixamento. Nem mesmo o prêmio Seminatore d’Oro, dado a Gibì Fabbri (eleito melhor treinador do ano) valeram como prêmio de consolação.
O último título e o ocaso
Após a queda, o Vicenza começou a se desfazer. Fabbri deixou o cargo e Rossi ficou na Serie A, emprestado ao Perugia e depois vendido de volta para a Juve. Ícones do time, com Guidetti, Cerilli, Galli, Faloppa, Filippi, Lelj e Carrera também não permaneceram. Com as dívidas, os berici também não conseguiram montar um elenco competitivo para a Serie B e, após um surpreendente 5º lugar na segundona de 1979-80, o time caiu para a Serie C1 no ano seguinte. Com o novo rebaixamento, Giuseppe Farina deixou a presidência sem tapar o buraco no cofre biancorosso.
No início da década de 1980, o Vicenza até ensaiou uma reação, com a conquista da Coppa Italia da Serie C e a revelação de Roberto Baggio. Porém, foram anos de perdas: o Divino Codino, que só atuou pelos berici na terceira divisão (ajudando no acesso para a Serie B em 1985), foi vendido para a Fiorentina e o clube deixou de contar com a patrocinadora Lanerossi em definitivo. O logotipo e o nome da fábrica permaneceram ligados ao Vicenza até 1988-89 – mesmo depois, inclusive, os vicentinos mantiveram o apelido na boca do povo –, mas a empresa não contribuía economicamente desde o início da década.
Em meados dos anos 1990, o Vicenza voltou a aparecer nacionalmente. Em 1994, os biancorossi contrataram o técnico Francesco Guidolin, cujo início de carreira tinha como principal feito o acesso do Ravenna para a Serie B. Logo na primeira temporada, o treinador conseguiu levar os vênetos de volta para a elite depois de 16 anos de ausência, e até 1998, quando deixou o cargo, deu novas esperanças aos berici.
Nas três temporadas em que comandou o Vicenza na elite, Guidolin ajudou um time modesto a ficar em boas colocações na Serie A – 9º e 8º lugares – e a conquistar um título da Coppa Italia e as semifinais da Recopa Uefa. A equipe, para se ter uma ideia do feito, tinha como maiores destaques os zagueiros Gustavo Méndez e Giovanni Lopez, o lateral direito Luigi Sartor, o meio-campista Domenico Di Carlo e o atacante Marcelo Otero – no último ano, chegaram o atacante Pasquale Luiso e os jovens Francesco Coco e Massimo Ambrosini, emprestados pelo Milan.
A conquista da Coppa Italia em 1997 é, até hoje, o título mais expressivo de toda a história do Vicenza, em mais de 110 anos de existência. Na campanha, os biancorossi eliminaram Milan e Bologna e precisaram virar sobre o Napoli para ficarem com o título. A taça deu aos lanerossi o direito de participarem da Recopa, competição em que eliminaram Legia Varsóvia, Shakhtar Donetsk e Roda JC antes de caírem nas semifinais diante do Chelsea de Gianfranco Zola e Gianluca Vialli.
Depois da saída de Guidolin, em 1998, o Vicenza ainda disputou a Serie A mais duas vezes, em 1998-99 e 2000-01, com dois rebaixamentos – entre as duas participações, venceu a segundona, em 2000. Desde então, os lanerossi disputaram 14 edições da Serie B, quase sempre na parte de baixo da tabela (foram rebaixados três vezes e repescados em duas ocasiões). O time jogou a terceira divisão uma vez e quase voltou à Serie A em 2015, ano em que foi eliminado nos play-offs de acesso. Neste período de baixa do clube, os maiores ídolos foram os atacantes Stefan Schwoch (italiano de origem polonesa) e Massimo Margiotta (venezuelano de origem italiana).
A volta aos anos de bonança ainda é uma busca do Vicenza, mesmo com tantos problemas financeiros, em meio à tradição. No entanto, um clube como este pode buscar forças e verbas onde existe de onde parte um amor incondicional.
Hoje, os berici tentam se reerguer com um plano que prevê a participação de seus torcedores: em 2012, um grupo de figuras ligadas ao Vicenza decidiu lançar um projeto para que o clube tivesse participação popular. A cooperativa, chamada Nobile Provinciale, é apoiada pela prefeitura da cidade e juntou mais de 400 torcedores interessados em serem acionistas dos lanerossi, entre os quais o técnico Fabbri, e os ex-jogadores Marangon, Rossi, Carrera e Lelj. O primeiro de muitos passos para um amanhã melhor.
Ficha técnica: Vicenza
Cidade: Vicenza (Vêneto)
Estádio: Romeo Menti
Fundação: 1902
Apelidos: Biancorossi, Lanerossi, Lane, La nobile provinciale, Berici
As temporadas (apenas séries A e B): 37 na Serie A e 37 na B
Os brasileiros: Alemão, Américo Murolo, Angelo Sormani, Bruno Siciliano, China (José Ricardo da Silva), Chinesinho, Daniel Bessa, Diego Oliveira, Fabiano, Felipe Chalegre, Jeda, Rodrigo Possebon, Luís Vinício e Marco Aurélio.
Time histórico: Ernesto Galli; Giulio Savoini, Gianfranco Volpato, Giovanni Lopez, Luciano Marangon; Renato Faloppa, Domenico Di Carlo; Chinesinho (Romeo Menti), Roberto Baggio (Stefan Schwoch), Luís Vinício; Paolo Rossi. Técnico: Giovan Battista Fabbri.
Tutti buono il sitio! Muito grato pela reportagem com o Vicenza e seu magnífico Paolo Rossi. Curtindo este canal a partir de agosto/2020, sou fã da Squadra Azzurra. Parabéns a todos!