Nos últimos meses, publicamos diversos artigos sobre a saúde financeira do futebol italiano. Neles, abordamos não só as divisões nacionais, mas também fomos a fundo na análise econômica dos clubes, buscando debater alguns casos em suas particularidades, que podem servir de exemplo – tanto pelo lado bom quanto ruim. O Torino, tema do presente texto, se insere no primeiro desses modelos.
O clube é amplamente conhecido na cultura esportiva mundial por causa do Grande Torino e da tragédia de Superga. No acidente, ocorrido em 1949, o avião que levava uma das melhores equipes da história do futebol colidiu com uma igreja e todos os jogadores foram a óbito. Depois disso, o Toro viveu alguns outros bons momentos, como o título italiano de 1976 e a final da Copa Uefa de 1992, mas jamais conseguiu repetir as glórias da década de 1940.
Em 1995, a equipe granata foi rebaixada e entrou em forte crise, que lhe impediu de se firmar novamente na primeira divisão durante uma década. A conjuntura negativa culminou na falência do clube, em 2005. Os motivos, definitivamente, não foram inéditos: gastos estratosféricos, dívidas com o fisco e gestão temerária colocaram o time em situação quase irreversível. Como 15 anos atrás as regras da FIGC eram mais relaxadas, caso a mudança na organização societária fosse demonstrada, a equipe poderia se inscrever na temporada seguinte sem amargar rebaixamentos como punição – o que acabou de acontecer com o Palermo, por exemplo.
Foi aí que entrou em ação Urbano Cairo, um bilionário do setor editorial e de comunicações, dono do Canal 7 e ex-assistente de Silvio Berlusconi. O milanês assumiu a presidência do time e da nova sociedade controladora do Torino, com o objetivo de não só levar o time de volta para a Serie A, mas também devolver a grandeza para a equipe granata.
Os primeiros anos foram de uma gestão ainda antiquada, focada no curto-prazo e em fazer o Toro ascender à elite. Mesmo que o plano tenha dado certo e o time grená tenha conseguido a promoção no primeiro ano após o “renascimento”, não existia um projeto bem feito para as temporadas posteriores. Contratações caras, como Álvaro Recoba e David Di Michele, além da constante troca de técnicos, deixaram o time suscetível a outro rebaixamento, o que aconteceu apenas três anos depois do retorno à primeira divisão.
Depois de mais uma queda – a primeira desde a presidência de Cairo –, a administração resolveu mudar de direção e apostou num projeto mais duradouro, que desse frutos e que também não fosse altamente dependente do poder financeiro do bilionário. Se um time fica totalmente vinculado ao seu mecenas e este se encontra em um tipo de negócio suscetível às volatilidades do mercado, uma crise econômica poderia não só destruir o empresário como também todas as sociedades que ele participa, times de futebol incluídos. Com as crises econômicas do final da década, a desvinculação do patrimônio do clube ao do presidente foi um dos primeiros movimentos importantes do Toro para um retorno à Serie A de maneira sustentável.
Depois de um início decepcionante na segunda divisão, em 2009, Cairo resolveu fazer outra mudança, que acabaria sendo uma das mais importantes decisões da história recente de seu clube. Após o Natal daquele ano, efetuou a contratação de um jovem dirigente para o cargo de diretor de futebol: Gianluca Petrachi, que acabara de ter uma bela passagem neste cargo no Pisa, levando o time da Serie C para os play-offs de ascensão para a Serie A.
O jovem diretor não começou bem sua passagem por Turim e não conseguiu êxito na promoção para a primeira divisão nem em 2009-10, quando os granata perderam nos play-offs, nem em 2010-11, quando o time amargou um decepcionante oitavo lugar. A grande diferença entre Petrachi e seus antecessores foi a confiança depositada por Cairo em seu projeto, que era duradouro e tinha tudo para colher frutos, se feito com competência. O presidente confiou no executivo porque sabia que o trabalho tinha consistência e fundamentação.
Unindo um bom trabalho de olheiros e divisões de base, o projeto funcionava aos moldes de casos de sucesso em outros países europeus. Ao Torino faltava apenas o técnico para liderar o plantel e começar a organizar as contratações mirando já em uma identidade de jogo, e não apenas num apanhado de bons e promissores jogadores.
No início da temporada de 2011-2012, o time que já tinha Angelo Ogbonna, prata da casa, e Rolando Bianchi, ganha como reforços Kamil Glik e Simone Verdi e um técnico novo, que hoje, para alguns, é “aquele que não deve ser nomeado”. Gian Piero Ventura, que na época ainda não era esta figura infame dos tempos atuais, assumiu o time granata e foi uma das principais peças para o projeto de Petrachi – o que o credenciou para o cargo na seleção italiana.
Em 2012, o objetivo de voltar à primeira divisão finalmente foi atingido e, depois da chegada de Alessio Cerci e Matteo Darmian, o Torino melhorou. Com um 16º lugar, a equipe conseguiu se manter na Serie A sem precisar gastar quantias absurdas e sem perder jogadores importantes do núcleo montado por Ventura.
No ano seguinte, uma temporada para lavar a alma, depois de um árduo período: o Toro fez sua melhor campanha desde 1992, terminou a Serie A em sétimo lugar e alcançou a Liga Europa. Darmian integrou a seleção do campeonato, Cerci e o recém-chegado Ciro Immobile formaram a dupla de ataque com mais gols no Italiano (juntamente a Carlitos Tevez e Fernando Llorente) e Petrachi foi eleito o melhor diretor de futebol do país.
Em 2014-15, depois da venda da bem-sucedida dupla de ataque para Atlético de Madrid e Borussia Dortmund, respectivamente, Petrachi e Ventura reorganizaram o setor com as contratações dos veteranos Fabio Quagliarella, Amauri e Maxi López. Opções não tão glamourosas, mas com certeza dentro da realidade do time piemontês, que ainda estava em processo de restauração e não poderia se dar ao luxo de sair dos eixos do ponto de vista financeiro – embora, pela participação em uma competição europeia, a tentação fosse grande.
O Torino terminou a Serie A em nono lugar e caiu nas oitavas da Liga Europa. Foi o último ano de bons resultados de Ventura, que viu seu time cair de rendimento na temporada seguinte, não só pela venda de Darmian ao Manchester United, mas também por falta de inovação no sistema de jogo, que precisava ser mudado. Após cinco anos de Turim, Gian Piero rumou à seleção e encerrou grande passagem – desde Luigi Radice, nos anos 1980, o Torino não teve um mesmo treinador no cargo por tanto tempo.
Em substituição a Ventura, em 2016-17 Cairo e Petrachi fecharam com Sinisa Mihajlovic e mudaram radicalmente o perfil do elenco, tornando-o muito semelhante ao atual. Além de Andrea Belotti e Daniele Baselli, comprados no ano anterior, por 12 milhões de euros no total, Joe Hart, Iago Falque e Adem Ljalic reforçaram o plantel que finalizou a temporada em nono lugar. Petrachi ainda ganhou novamente o prêmio de melhor diretor de futebol da Bota.
No ano sucessivo, com as chegadas de Cristian Ansaldi, Nicholas Nkoulou e Salvatore Sirigu, o Torino parecia rumo a uma melhora – que não ocorreu. O time não estava rendendo e, em uma atitude bem incomum no clube nos últimos anos, Sinisa foi demitido para dar espaço a Walter Mazzarri, na 20ª rodada da Serie A 2017-18. Desde então, o time vem numa trajetória crescente: 9º e 7º lugares no campeonato, uma vaga nos playoffs da Liga Europa e uma eliminação precoce por conta de um sorteio azarado, que lhe reservou logo de cara o Wolverhampton.
A trajetória descrita acima mostra como, nesta última década, o Toro deu aula de como um time deve ser gerenciado, em vários aspectos. Se reservou a trocar treinadores o mínimo possível, além de sempre levar em conta a identidade do esquadrão. Ventura e Mazzarri são treinadores que têm características semelhantes, como a utilização do esquema 3-5-2 e um futebol mais reativo e compacto. A breve passagem de Mihajlovic também não destoou dos conceitos trabalhados pelo Torino, já que o sérvio também preza por um futebol físico e agressivo, e teve bom desempenho ao potencializar jovens atletas.
Em se tratando de janela de transferências, a atuação de Petrachi foi tão boa que o Torino recebeu, em 2017, um prêmio chamado “campeão italiano do Fair Play Financeiro”, reconhecimento devido ao grandioso trabalho da diretoria em montar times competitivos e, ao mesmo tempo, gerar um superávit entre compra e venda de jogadores. Nesta mesma temporada, Glik, Nikola Maksimovic e Bruno Peres foram vendidos por um total de 57,5 milhões de euros, sendo que haviam sido adquiridos alguns anos antes por uma soma de 7 milhões de euros. O clube obteve incríveis 50 milhões de euros de lucro com apenas três jogadores.
No verão europeu de 2019, o clube teve de driblar um obstáculo. Petrachi encerrou um ciclo de 10 anos em Turim, quando anunciou sua saída para a Roma, para ocupar o lugar que já foi de Monchi. Quem lhe substituiu foi Massimo Bava, antigamente responsável pelas divisões de base, o que mostra que o projeto continua com as mesmas premissas. É realmente encorajador ver um plano seguir firme e de forma duradoura em meio a um conjunto de times irresponsáveis – grandes ou pequenos –, que ainda acreditam em um modelo antiquado, com gastos desenfreados e pouco trabalho em divisões de base e jogadores jovens.
Hoje, o Torino não muda de acordo com as necessidades do momento. Existe um projeto de médio prazo e vários elementos sustentam esta estrutura. O compromisso vai do presidente ao auxiliar do time infantil, passando pelos departamentos financeiro, técnico e físico: todos trabalham em simbiose para dar o máximo de resultado possível para um time que tem recursos limitados e, ainda assim, à sombra da gigante Juventus, se restabeleceu como uma força do futebol italiano.