Muito antes de sequer sonhar em disputar uma Euro, a seleção da Finlândia foi uma das mais frágeis de seu continente. Essa condição durou até o início dos anos 1990, quando a geração liderada por Jari Litmanen começou a alavancar os bufo-reais. Um dos integrantes dessa turma foi Mika Aaltonen, que fracassou no futebol italiano e teve uma carreira profissional das mais curiosas, principalmente pela repentina mudança de trajetória.
Nascido em Turku, em 1965, Aaltonen começou sua carreira em 1982, quando vestia a camisa do Turun Palloseura, conhecido pelo acrônimo TPS. O time de sua cidade tinha história e era considerado como uma força do futebol finlandês, no qual disputava a primeira divisão. Contudo, não tinha um desempenho internacional acachapante, com títulos ou grandes campanhas – que poderiam lançar o meia-atacante ao cenário europeu.
Isso mudou no outono de 1987. Na primeira fase da Copa Uefa, o TPS eliminou o Admira Wacker, time austríaco que era bem cotado para chegar às etapas finais do torneio, com dois gols de Aaltonen na partida derradeira. O resultado já era expressivo para os finlandeses, que enfrentariam a poderosa Inter de Giovanni Trapattoni nas oitavas de final.
Na metade do primeiro tempo do jogo de ida, em San Siro, Aaltonen acertou um foguete indefensável, num chute de 30 metros de distância: a bola foi no ângulo de Walter Zenga, que nada pode fazer. Para qualquer time, sair com este resultado da Itália seria excelente, mas significava muito mais para uma equipe que nem era a melhor da modestíssima Finlândia.
Porém, a Inter reagiu e não protagonizou um vexame: fez 2 a 0 na Escandinávia e eliminou o TPS, que já se dava por satisfeito de sua campanha. Afinal, nas 12 partidas internacionais anteriormente jogadas, o Turun acumulara 11 derrotas e uma vitória por 1 a 0 sobre o pequeno Sliema Wanderers, de Malta. Ao mesmo tempo, Aaltonen vivia o seu divisor de águas. Com o nome cravado na história de sua cidade e do futebol nacional, viu o destino lhe reservar muito mais.
O presidente da Inter, Ernesto Pellegrini, se empolgou de tal forma com o jovem finlandês que lhe reconheceu imediatamente como um fenômeno, e comprou seu passe após a eliminatória, num período que coincidia com o fim do campeonato nacional do país nórdico e a janela de transferências de outono na Itália. Na época ainda existiam limitações de números de estrangeiros na Serie A e a Beneamata já tinha Daniel Passarella e Enzo Scifo no elenco, de modo que não havia espaço para Aaltonen no plantel.
Para amadurecer e tentar encontrar um futebol que lhe possibilitasse atuar no altíssimo nível que da Serie A daquela época, Mika foi emprestado de imediato ao Bellinzona, da primeira divisão suíça. Por lá, atuou com frequência e, com três gols, ajudou o time do cantão italiano de Ticino a permanecer na elite helvética. Aaltonen recebeu as primeiras chances na seleção da Finlândia em fevereiro de 1988 e retornou à Inter no verão. O meia disputou um amistoso contra a União Soviética e foi emprestado novamente, dessa vez para o Bologna. Com isso, se tornou o primeiro finlandês inscrito no Italianão.
É nesse ponto que as coisas começam a tomar um rumo no mínimo curioso. Durante a temporada de 1988-89, Aaltonen conseguiu jogar apenas 45 minutos na Serie A, distribuídos em três partidas das rodadas iniciais, e atuou ainda em quatro partidas de uma já desprestigiada Copa Mitropa – onde, diante do Ferencváros, marcou o seu único tento pelo clube. Esquentando bastante o banco de reservas rossoblù, Mika usava o seu tempo para estudar. E, assim, também conseguiu passar em quatro exames na Faculdade de Economia e Comércio da Universidade de Bolonha.
Quando Mika não estava treinando com seus companheiros, era encontrando andando pelo centro da capital da Emília-Romanha, passando por salas e prédios da universidade, assistindo às aulas, melhorando seu italiano e seu conhecimento sobre economia. Não que fosse novidade. Na ocasião de sua noite mágica no San Siro, um jornalista finlandês explicou aos seus colegas italianos que Aaltonen era um jovem extremamente inteligente, que gostava de estudar economia, ler Fiódor Dostoiévski e ouvir Ígor Stravinski em seu tempo livre.
Entre todos os times para os quais Aaltonen poderia ter sido emprestado, o destino reservou-lhe justo aquele sediado na cidade em que funciona uma das universidades mais famosas do mundo – que, naquele exato ano, completava nove séculos de existência. Nas comemorações de seu nono centenário, a universidade de Bolonha homenageou com doutorados honoris causa figuras como Madre Teresa de Calcutá, Nelson Mandela, Paulo Freire e François Mitterrand.
Acabada sua experiência no Bologna, Mika retornou à Inter e, naturalmente, não foi aproveitado. Sem impressionar, o finlandês foi cedido em definitivo ao Hertha Berlim, clube pelo qual disputou 14 partidas em 1989-90 – temporada em que os berlinenses voltaram para a primeira divisão. Em seguida, Aaltonen retornou ao TPS.
Ele jogou por mais três temporadas no time de Turku, num período em que esteve matriculado no curso de economia da universidade local. Depois de rápida passagem por Israel, no Hapoel Be’er Sheva, e mais alguns meses no TPV, da Finlândia, Aaltonen pendurou as chuteiras com 29 anos, em 1994. Mika alegava problemas na bacia e o interesse em perseguir em tempo integral sua carreira na academia.
Pouco tempo depois de sua aposentadoria, Aaltonen se tornou Doutor em Economia pela Universidade de Turku e se tornou membro do conselho diretor de algumas organizações. Além disso, passou a integrar a Royal Society of Arts finlandesa e coordenar um centro de pesquisa na Universidade Tecnológica de Helsinki. Tem 16 livros publicados: o mais recente saiu em maio de 2021 e tem como tema o papel da educação na presente década. O professor também estuda estuda fluxos econômicos, inteligência artificial e faz projeções sobre como devemos explorar o nosso planeta – e até outros – nas próximas décadas.
Como acontece a todo pereba (ou bidone, em bom italiano) que chega na Itália vindo de outro país, várias lendas urbanas circulam em torno de Aaltonen. Em Bolonha, dizem que ele seria a cabeça pensante por trás do estrondoso sucesso da finlandesa Nokia nos anos 1990 e que ele faltava treinos para ir à aula na universidade. No restante do país, tem gente que jura de pés juntos que ele teria sido sondado para ganhar o Nobel de Economia em 2007 – sendo certamente o primeiro vencedor do prêmio a ter marcado um gol em San Siro.
A verdade é que, até hoje, o finlandês nunca se arrependeu de sua experiência no futebol, mesmo se mostrando muito mais apto à academia do que ao posto de meio-campista ofensivo. Ele mesmo afirma que foi o esporte que o levou a conhecer tantos lugares, e no final das contas, está certo: toda experiência que temos nos constrói, de qualquer forma, voluntariamente ou não. Muitos ex-jogadores acabam virando técnicos e passam a ganhar o título de “professor”, conferido pelos boleiros. Poucos, porém, podem se gabar de terem um séquito nas universidades, como o Professor Aaltonen.
Mika Aaltonen
Nascimento: 16 de novembro de 1965, em Turku, Finlândia
Posição: meio-campista
Clubes: TPS (1982-87 e 1990-93), Inter (1988), Bellinzona (1988), Bologna (1988-89), Hertha Berlim (1989-90), Hapoel Be’er Sheva (1993-94) e TPV (1994)
Títulos: 2. Bundesliga (1990), Copa da Finlândia (1991) e Campeonato Finlandês (1994)
Seleção finlandesa: 18 jogos e 1 gol