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Egidio Calloni, o precursor da maldição da camisa 9 do Milan

Cannoniere, em italiano, significa artilheiro. Em diversas ocasiões de sua carreira, o atacante Egidio Calloni chegou a ser o principal marcador das equipes que defendia, mas seguramente não entrou para a história como sinônimo de jogador com faro de gol e pontaria calibrada. O azarado Egidio (ou, no idioma da Velha Bota, Lo Sciagurato Egidio) não ganhou esse apelido do jornalista Gianni Brera à toa: a sorte não lhe acompanhava frente às balizas adversárias e desperdiçar grandes oportunidades era o seu carma.

Na década de 1970, Calloni foi um dos precursores de um fantasma que passaria a assombrar a torcida do Milan por muito tempo: a maldição da camisa 9. Filippo Inzaghi vestiu a malha rossonera pela última vez em 2012 e, depois disso, vários outros atacantes não tiveram sorte com o número. Alexandre Pato, Gianluca Lapadula, Gonzalo Higuaín, Krzysztof Piatek e Mario Mandzukic tentaram driblar a zica, mas não obtiveram sucesso. O uniforme adornado pelo infame algarismo foi um fardo pesado demais para aqueles que ousaram utilizá-lo.

Quando Egidio chegou ao Milan, havia boas expectativas quanto ao futebol que poderia apresentar. O jovem atacante havia se destacado no Varese promovido à elite e até havia representado a seleção italiana da Serie B. Porém, Calloni não tinha o amor da torcida, que lembrava da sua formação na base da Inter, e, com a quantidade de gols que perdia, a sua situação ficava ainda mais difícil.

Ainda jovem, Egidio chegou ao Milan após ótimas atuações nas divisões inferiores da Itália (Maglia Rossonera)

Os primeiros passos

Calloni nasceu em Busto Arsizio e cresceu em Dairago, ambas cidades localizadas nos arredores de Milão. No futebol, começou a se desenvolver nas categorias de base da Inter, nas quais ingressou em 1968, aos 15 anos. Após biênio vestindo nerazzurro, o jogador partiu para o Varese, na expectativa de concluir a sua formação e também obter minutagem em campo.

Na época, o Varese era treinado por Nils Liedholm e estava na Serie A, mas o jovem Calloni não conseguiu espaço entre os profissionais. Assim, em 1971, ele foi emprestado ao Verbania, clube fundado apenas em 1959, e lá deu os seus primeiros passos como atleta adulto. Egidio foi o protagonista do time comandado por Giuseppe Marchioro na campanha da terceira divisão: fez 15 gols em 38 jogos pelos biancocerchiati, que conseguiram uma excelente sexta posição em seu grupo na categoria.

Os excelentes números do garoto de 19 anos fizeram com que ele fosse aproveitado pelo Varese, que havia sido rebaixado para a Serie B italiana. O presidente Guido Borghi apostou no retorno de empréstimo de jogadores como o próprio Egidio, o volante Gianpiero Marini e o defensor Claudio Gentile para reforçar um elenco que perdera o zagueiro Giorgio Morini e o centroavante Ariedo Braida para Roma e Cesena, respectivamente, e ainda tinha de lidar com a aposentadoria do volante Giovanni Trapattoni.

Calloni teve um bom início de temporada em 1972-73. O atacante canhoto marcou contra o Novara na Coppa Italia e voltou a balançar as redes sobre os azzurri e também ante o Brindisi, pela Serie B – em ambas as ocasiões, guardou uma doppietta. Contudo, o técnico Pietro Maroso optou por dar a titularidade a Riccardo Mascheroni, ligeiramente mais experiente, e Egidio passou mais jogos no banco. Ao final da campanha dos biancorossi, concluída na sexta colocação, acumulou sete gols em 19 aparições.

Por causa da venda de Mascheroni ao Napoli, no verão de 1973, Calloni ascendeu na hierarquia dos bosini e participou ativamente da campanha do acesso do seu time à primeira divisão. O bomber marcou 16 dos 51 gols do Varese e, ao término da Serie B de 1973-74, pode festejar duplamente: além de campeão, fora o artilheiro da categoria. A intenção do clube lombardo era a de mantê-lo para a disputa da elite, mas o Milan, um dos gigantes da região, se apressou em levá-lo de volta para a capital.

O canhoto Calloni era um centroavante clássico, capaz de fazer qualquer coisa para marcar (Storie di Calcio)

Quando tudo começou a desmoronar

Em 1974, Calloni recebeu a grande responsabilidade de sua carreira: vestir a camisa 9 do Milan. Era esperado que, após o destaque por Verbania e Varese, o atacante estivesse pronto para um desafio maior. Os números dizem que, nos quatro anos em que representou o Diavolo, Egidio foi o seu principal goleador em três – e ainda foi o artilheiro da Coppa Italia numa edição vencida pelos rossoneri. Apesar disso, a palavra “sucesso” nem remotamente é associada à sua passagem por Milanello.

De cara, Egidio teria de fazer a torcida esquecer o seu passado pela Inter, rival do Milan. A desconfiança ficou em segundo plano após um bom início de temporada, no qual o canhoto marcou três vezes na primeira fase de grupos da Coppa Italia e, contra a Roma, pela quarta rodada da Serie A, decidiu uma peleja no Olímpico com um gol de meia-bicicleta, a apenas seis minutos do fim do confronto.

Nas duas primeiras temporadas em Milão, conseguiu ter paz com os rossoneri. O atacante fez 17 gols em 1974-75, dos quais 11 na Serie A, e mais 19 em 1975-76, sendo 13 pelo campeonato: por 11 anos, até a ultrapassagem de Pietro Paolo Virdis, foi o melhor desempenho de um milanista pela competição. Na campanha seguinte, porém, o ceticismo dos torcedores voltou a tomar conta das arquibancadas de San Siro e das rodas de bar.

Em 1976-77, o Milan lutava contra o rebaixamento. Na Serie A, Calloni só balançou as redes cinco vezes, viveu longos jejuns e perdia muitas oportunidades, além de costumar passar em branco contra adversários mais fortes – em toda a sua trajetória pelo time rossonero, marcou cinco vezes contra Lazio e Napoli, e apenas duas ante Inter, Juventus e Roma. O Diavolo se salvou na penúltima rodada, mas naquela campanha a situação do jovem Egidio começou a desmoronar.

Na época, o jornalista Gianni Brera, conhecido pelos neologismos que criava e apelidos que dava às personalidades do esporte, não deixou a situação do camisa 9 rossonero passar despercebida. Ao invés de lhe conceder uma alcunha imponente como “Rombo di Tuono” (“estrondo de trovão”), conferida ao craque Luigi Riva, Calloni passou a ser chamado de “Sciagurato Egidio” por causa da quantidade de gols que perdia.

Apesar de ter sido o principal artilheiro de seu time em várias oportunidades, Calloni ficou conhecido por perder gols (Arquivo/AC Milan)

O infame epíteto tinha origem em “Os Noivos”, romance histórico publicado pelo escritor italiano Alessandro Manzoni, em 1827. Na obra, um personagem chamado Egidio era definido pelo autor como sciagurato: ou seja, um desgraçado, perverso, geralmente ligado a tragédias. Calloni se encaixava nas duas acepções do termo. Além de ter pouca sorte, era um vilão por matar as jogadas.

Afetado psicologicamente, Calloni costumava perder gols impossíveis. A situação geral do Milan, que presenciava o ocaso da carreira do craque Gianni Rivera, não era positiva na época, mas a torcida escolheu o camisa 9 para culpar. Nem mesmo o título da Coppa Italia, conquistado logo após a salvação na Serie A, reduziu a fervura para o centroavante. É que os rossoneri obtiveram resultados medíocres com Egidio no comando do ataque: a referida taça da copa e o vice do torneio, dois anos antes, e um terceiro lugar no Italiano, em 1976, não deixaram os fãs satisfeitos.

Em 1978, após marcar apenas três gols em toda a temporada – e perder mais uma penca deles –, o rústico centroavante foi para a reserva e, na sequência, acabou vendido pelo Milan. Naquela mesma época, ficou eternizada uma fala irônica do jornalista Beppe Viola, da Rai. Na transmissão dos melhores momentos do programa La Domenica Sportiva, quando Calloni desperdiçou oportunidade inacreditável, o comentarista disse que ele havia “afastado a ameaça”.

Anos depois, em entrevista à Gazzetta dello Sport, Egidio conversou com os repórteres sobre as frases que escutava quando não colocava a bola na rede. “Eu era um jogador comum e às vezes ‘engrossava’ frente ao goleiro. Acontece com todos, mas menos vezes com os craques. Claro que eu não perdia as chances de propósito, então paciência”, afirmou.

Além disso, Calloni declarou que não ficava chateado com os jornalistas que brincavam com a sua fama de esbanjador. “Viola pensava da mesma forma que eu: o futebol é feito para entreter quem joga e quem assiste. De alguém como ele, eu poderia aceitar qualquer coisa. O mesmo vale para outro grande, Brera, e pelo apelido que me deu”, concluiu.

Apesar das dificuldades, Calloni marcou gols em dois clássicos contra a Inter (imago/AFLOSPORT)

A vingança contra o Milan e pazes feitas

Após a sua aventura no Milan, concluída com 54 gols em 142 aparições, Sciagurato Egido rumou para um novo desafio. A situação permaneceu difícil para o atacante, já negociado com o Verona: não se acertou pela equipe, que acabaria rebaixada à segunda divisão italiana, e viu o Diavolo ser campeão naquela mesma temporada 1978-79. Calloni marcou sete vezes em 24 partidas pelo Hellas e, curiosamente, o seu último tento pelos mastini foi anotado numa derrota para os rossoneri.

Calloni foi negociado com o Perugia na temporada 1979-80 e acertou com o clube sabendo de sua missão: ser reserva de Paolo Rossi. Após passar em branco pelo sétimo colocado da Serie A, o azarado atacante teve os anos turbulentos, cheios de altos e baixos dentro e fora de campo, recompensados na sua experiência seguinte, vestindo a camisa do Palermo.

Egidio aceitou voltar à segunda divisão italiana, no intuito de ter mais tempo de jogo, e na Serie B viria a esbarrar com o Milan – que fora punido com o rebaixamento por participação de atletas no Totonero, escândalo de apostas ilegais e manipulação de resultados. Naquela segundona, o Diavolo lutava para retornar de imediato à elite e o Palermo, sentenciado com a perda de cinco pontos também por envolvimento de um atleta no esquema, brigava para se salvar do descenso.

O camisa 9, sedento por gols e lembrando dos momentos de dificuldades vividos no lado rubro-negro da capital da Lombardia, não deixou os encontros com o Milan passarem em brancas nuvens. O primeiro ocorreu na fase de grupos da Coppa Italia, disputada entre agosto e setembro de 1980, e Calloni marcou o único tento da partida, consumando a vitória palermitana. Egidio, não mais azarado, também anotou nos triunfos sobre a Inter e o Catania, no clássico siciliano, mas os rosanero não avançaram no torneio: só o líder de cada chave rumava às quartas de final e o Avellino teve melhor saldo.

Na Sicília, Calloni foi vilão para o Milan… de novo (Arquivo/US Palermo)

Na Serie B, Calloni não teve um bom começo: o centroavante chegou a passar as 10 rodadas iniciais em branco e nem foi relacionado para o duelo com o Milan no turno inaugural. Porém, a maré virou depois de uma doppietta sobre o Varese, na 11ª jornada – a vitória, por 2 a 1, foi a primeira do Palermo na competição. Egidio também guardou dois tentos num empate por 3 a 3 com o Catania, liderou a ascensão dos rosanero e, quando encontrou o Diavolo no segundo turno, tinha oito gols no certame.

O Milan já liderava o campeonato em março de 1981, mas Calloni não quis saber disso. Logo aos cinco minutos, anotou um golaço de falta com a perna esquerda e, aos 22, fez o segundo em cobrança de pênalti – antes, chegara a perder uma ótima oportunidade, acertando o poste do goleiro Ottorino Piotti. A partir da marca da cal, Ruben Buriani diminuiu para os visitantes aos 33 e, ainda na primeira etapa, Sciagurato Egidio consolidou a sua vingança: depois de ver Piotti espalmar sua finalização na trave, aproveitou o rebote e, sem ser importunado, garantiu a tripletta.

O triunfo por 3 a 1 deu moral para o Palermo, que perdeu somente uma vez até o fim do campeonato e garantiu a permanência na Serie B. Com 11 gols, Calloni foi o artilheiro dos sicilianos na competição e, contando com os tentos que marcara na Coppa Italia, terminou a temporada com 14. Tido como ídolo da torcida, o canhoto até começou 1981-82 vestindo rosanero, mas recebeu uma oportunidade de retornar à elite pouco depois da primeira rodada da segundona – ocasião em que foi expulso, contra o Bari, e acabou por perder a titularidade para Gianni De Rosa.

Em novembro, então, Calloni reencontrou Marchioro, que o treinara no Verbania e no Milan: Pippo comandava o Como, então na Serie A, e solicitou o reforço do centroavante. Dessa forma, o jogador rumaria justamente para a cidade que dá nome ao famoso lago em que ocorrem algumas das primeiras ações do romance de Manzoni, de onde Brera tirara o seu apelido. O destino seria cruel com o azarado Egidio: pelos lariani, atuou apenas oito vezes e fez dois gols, ambos num duelo com o Cagliari, e amargou o rebaixamento.

Calloni ganhou a idolatria em Palermo e, pouco depois, se aposentou (Ansa)

Assim que o descenso foi confirmado, o centroavante abandonou o profissionalismo com apenas 29 anos. Calloni ainda defendeu Ivrea e Mezzomerico nas divisões regionais, estritamente amadoras, antes de se aposentar, em 1984, com 31, e praticamente sumiu dos holofotes. É possível contar nos dedos as aparições públicas que Egidio teve depois de pendurar as chuteiras.

Uma delas ocorreu em 1999, quando participou de um amistoso em homenagem ao centenário do Milan, que teve a presença de vários ex-jogadores. Na ocasião, Calloni se reconciliou com o antigo clube, deixou para trás muitas mágoas e ainda anotou um gol, comemorado junto à Curva Sud, setor de San Siro em que a organizada rossonera se agrupa. Além disso, visitou o museu milanista em outras oportunidades.

Em 2003, estreou na TV italiana um programa chamado Lo Sciagurato Egidio, que tinha o intuito de fazer uma abordagem do futebol a partir de suas conexões com a cultura. Calloni foi convidado para o último episódio da série, mas sua timidez e o estilo reservado eram um obstáculo. Paolo Rossi precisou convencê-lo a vencer a aversão às câmeras para participar da atração.

Depois de aposentado, Calloni passou a morar em Verbania, onde teve um bar e passou a trabalhar como representante comercial da Algida, uma das principais fabricantes de sorvetes do mundo. Em 2007, o ex-jogador ficou entre a vida e a morte. Ele sofreu uma isquemia cerebral enquanto dirigia, bateu o carro em um poste e ficou em coma, mas resistiu: sua forma física foi decisiva para que a alta do hospital ocorresse em apenas nove dias. Totalmente recuperado, o sortudo Egidio continuou ligado ao esporte, mas apenas ao infantil, ensinando os primeiros fundamentos às crianças da pequena cidade do Piemonte em que habita.

Egidio Calloni
Nascimento: 1º de dezembro de 1952, em Busto Arsizio, Itália
Posição: atacante
Clubes: Varese (1970-71 e 1972-74), Verbania (1971-72), Milan (1974-78), Verona (1978-79), Perugia (1979-80), Palermo (1980-81), Como (1981-82), Ivrea (1982-83) e Mezzomerico (1983-84)
Títulos: Coppa Italia (1977)

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