Nem só de grandes estrelas vive uma equipe campeã. Municiada por performances memoráveis de Gabriel Batistuta, Rui Costa e Francesco Toldo, a Fiorentina da década de 1990 também contou com a importante contribuição de um jogador muito menos midiático: Daniele Carnasciali, que foi figura constante durante cinco temporadas no esquadrão de Florença. Destaque do Brescia, o lateral-direito chegou à Toscana em 1992 e foi uma das poucas “boas notícias” na campanha de rebaixamento da Viola. Depois, brilhou na Serie B e se firmou como titular nos anos seguintes, o que lhe rendeu até duas convocações para a seleção italiana. Seu ápice veio em 1996, com as conquistas da Coppa Italia e da Supercopa nacional.
Lateral de origem e, às vezes, zagueiro, Carnasciali se notabilizou pela capacidade de percorrer a faixa direita do campo sem deixar quaisquer espaços. Cumprindo funções mais “operárias”, potencializou o brilho de companheiros, ao mesmo tempo em que ofereceu solidez ao setor defensivo da equipe. Mas não se engane: embora fosse um jogador forte na marcação, o italiano também tinha uma interessante chegada ao ataque, o que lhe transformava em peça tática primordial para a Fiorentina.
Gols, foram poucos: apenas dois. Apesar disso, Carnasciali encontrou outras formas de contribuir na fase mais propositiva do jogo. Com bons cruzamentos e ótima noção de espaço para atuar sempre limitado à linha lateral, foi responsável por diversos passes para tentos. Contudo, para sua infelicidade, a contabilidade das assistências ainda não era precisa na década de 1990, o que certamente prejudica sua avaliação sob aspecto estatístico.
Após a vitoriosa aventura em terras florentinas, Daniele rompeu com a agremiação de forma até repentina para jogar no Bologna. Sem muito destaque pelos rossoblù, acabou somente entrando para uma seleta lista de atletas que representaram ambos os rivais dos Apeninos, se juntando a nomes como Luciano Chiarugi, Roberto Baggio, Sergio Clerici, Eraldo Pecci, Cesare Natali e outros. Já no estágio final da carreira, atuou pelo Venezia, antes de se aventurar no cargo de diretor esportivo da Sangiovannese, pequeno clube de sua cidade natal, onde iniciara a sua trajetória. Atualmente, segue sendo muito solicitado por veículos de imprensa quando o assunto é Fiorentina. Carnasciali disputou, ao todo, 167 partidas com a malha viola. De longe, a camisa que mais defendeu e com a qual atingiu seus maiores feitos na carreira.
Os anos difíceis e o sucesso no Brescia
Daniele Carnasciali nasceu em 6 de setembro de 1966, em San Giovanni Valdarno, uma cidade com pouco mais de 16 mil habitantes na província de Arezzo, Toscana. Localizada no vale do Rio Arno, a pequena comuna fica a pouco menos de 50 quilômetros do estádio Artemio Franchi, em Florença. No entanto, não foi ali que o jogador começou sua carreira no futebol. Após dar seus primeiros passos na Sangiovannese, o garoto rumou ao norte da Itália e chegou até Bérgamo. O defensor ingressou nas categorias de base da Atalanta, reconhecidas por formar atletas de grande qualidade, mas jamais chegou a ter uma oportunidade na equipe principal.
Depois da estadia nos nerazzurri, que retornavam à elite do futebol italiano na temporada 1984-85, o jovem lateral, com então 19 anos, rodou por equipes da terceira e da quarta divisão. Entre 1986 e 1990, atuou por Mantova, Spezia e Ospitaletto. Neste último, um pequeno time da província de Brescia, conseguiu sequência, entrando em campo em um total de 88 oportunidades, com dois gols marcados.
Mesmo com a campanha mediana do Ospitaletto, 12º colocado no grupo B da Serie C2 (equivalente à quarta divisão), Carnasciali chamou a atenção do principal clube da região, o Brescia, que disputava a segundona naquele momento. E foi, curiosamente, no grande rival de sua equipe de juventude, a Atalanta, que o italiano alcançou projeção nacional.
Com a camisa branca e azul do Brescia, o lateral disputou duas temporadas. Em termos individuais, foram dois bons anos para Carnasciali, que perdeu pouquíssimos minutos, estando presente em quase todas as partidas. No entanto, o desempenho do Brescia em 1991-92 foi o grande trampolim para o jovem defensor. Em um campeonato bizarro, marcado por uma quantidade imensa de empates, os biancazzurri se sagraram vitoriosos graças a um retrospecto de 14 triunfos, 21 empates e apenas três derrotas. Em determinado momento da campanha, o Brescia emendou sete resultados iguais em sequência. Ainda assim, a inconsistência de Pescara, Ancona e Udinese, logo atrás na tabela, garantiram o título para a equipe da Lombardia.
O sucesso com o Brescia despertou o interesse da Fiorentina pelo lateral. À época, o clube violeta estava bastante ativo nas janelas de transferências, apoiado no dinheiro da família Cecchi Gori, que assumiu controle da sociedade em 1990. No entanto, ter contratado Batistuta para a temporada 1991-92 não resolveu todos os problemas da equipe. No Campeonato Italiano, um módico 12º lugar deixou claro que mais coadjuvantes eram necessários para auxiliar o jovem e promissor atacante argentino. Diante dessa constatação, a diretoria gigliata voltou ao mercado com entusiasmo.
Para a temporada 1992-93, foram contratados Gianluca Luppi, para a defesa, Stefan Effenberg e Fabrizio Di Mauro, no meio-campo, e a dupla Brian Laudrup e Francesco Baiano para o comando de ataque. Além deles, claro, Carnasciali, que chegou ao time com 25 anos de idade. Só que o “pacotão” de reforços não deu o resultado esperado. Em uma trajetória turbulenta, com trocas de técnicos, falecimento do então presidente Mario Cecchi Gori – e até um infeliz uniforme com suásticas nazistas – a Fiorentina não suportou os altos e baixos e acabou rebaixada. Um baque para o audacioso projeto da instituição.
Carnasciali esteve presente em 31 dos 34 jogos da Serie A, inclusive na derrota acachapante por 7 a 3 para o Milan em pleno Franchi. Ainda assim, o lateral não sofreu com a implicância da torcida. Pelo contrário. Seu desempenho e a garra demonstrada em campo lhe renderam alguns elogios. Em meio ao caos, o defensor acabou sendo um dos poucos que se salvaram perante fãs e mídia. Isso certamente gerou confiança a Daniele, que cresceu ainda mais na temporada seguinte.
O destaque na Serie B e a afirmação
Com 26 para 27 anos, Carnasciali iniciou a disputa da segunda divisão italiana junto com o restante do elenco da Fiorentina – a equipe toscana não era relegada à Serie B desde a temporada 1938-39. E o lateral foi peça-chave do esquema de Claudio Ranieri, novo treinador gigliato. O romano havia deixado o Napoli e era uma aposta da diretoria para recuperar a confiança e os resultados da Viola.
Mesclando jovens da base, como o goleiro Toldo, a jogadores mais experientes, a Fiorentina rapidamente tomou a ponta da tabela para não sair mais. A discrepância dos elencos chamava a atenção, mas o trabalho de Ranieri também foi meticulosamente bem executado. E em uma das posições centrais da engrenagem estava Carnasciali. A prova disso é que o lateral foi o atleta da Viola que mais entrou em campo no campeonato, com 35 de 38 aparições possíveis. Com muito vigor, o italiano atravessava o auge físico de sua carreira, sequer sendo substituído uma só vez nestas partidas.
A boa fase foi levada adiante. Com o retorno (esperado) da Fiorentina à elite do futebol italiano, Daniele seguiu cumprindo o mesmo papel sob as ordens de Ranieri. Foram menos partidas ao longo da temporada 1994-95, é verdade, muito por conta de pequenas lesões. Porém, foi nesta edição da Serie A que o lateral marcou seus únicos dois gols pela Viola. O primeiro, em uma vitória por 3 a 1 sobre a Cremonese, dentro de casa: Carnasciali foi à área adversária para a cobrança de escanteio e aproveitou um bate-rebate para conferir com o pé direito. Apesar de ter “apenas” 1,80m, o camisa número 2 era figura constante nos tiros de canto a favor da equipe gigliata.
Neste mesmo confronto, ele ainda deu uma assistência primorosa para Batistuta, após carregar a bola pela ala direita e dar um corte seco no marcador, mostrando sua qualidade, também, na criação de jogadas. Sempre bem colocado, Batigol pegou o cruzamento de voleio e anotou um golaço – o terceiro da Viola, seu segundo naquele duelo.
Seu outro gol, contra o Bari, foi belíssimo da mesma forma. Com muita velocidade, Carnasciali se infiltrou pelo flanco direito da defesa, aplicou uma caneta no marcador, que passou lotado, e cavou por cima do arqueiro. Aquele foi o primeiro tento da Fiorentina, que perdia por 2 a 1. Só que o lateral apareceu novamente na segunda etapa. Dessa vez, cruzando na cabeça de Angelo Carbone, que anotou o segundo e deu números finais à partida. Outra demonstração das constantes chegadas de Daniele à linha de fundo adversária. Era, de fato, um motorzinho pela faixa destra do gramado.
Só que esta ainda não era a campanha de consagração daquela boa geração da Fiorentina, que ficou somente com o 10º lugar na liga. A celebração ficou somente por conta da temporada estupenda de Batistuta, que marcou em todos os onze primeiros jogos do torneio e acabou sendo o artilheiro do certame, com 26 bolas na rede. Para Carnasciali, um feito individual de destaque foi a convocação para um amistoso da Itália, então comandada por Arrigo Sacchi, ante a Turquia. O defensor da Viola atuou por 54 minutos antes de dar lugar a Paolo Negro. Os Azzurri venceram aquele duelo por 3 a 1.
Os títulos antes do adeus
Na temporada 1995-96, a Fiorentina já tinha um time muito mais encorpado e entrosado. Batistuta, vivendo o auge técnico e exercendo a liderança sobre o elenco; Rui Costa, orquestrando o ataque; além de uma defesa bem mais confiável, com um baita arqueiro, Toldo, e uma primeira linha casca-grossa. Foi dessa forma que Ranieri e seus comandados conseguiram uma campanha mágica na Coppa Italia: oito vitórias em oito jogos, com 17 gols marcados e apenas três sofridos. Carnasciali participou de seis destes duelos, incluindo as duas partidas da decisão contra a Atalanta.
Já bicampeão da Serie B, por Brescia e Fiorentina, o camisa 2 conquistou, em Bérgamo, seu primeiro título de relevância nacional na carreira. Novamente, de forma curiosa, o destino colocou a Atalanta, clube de juventude do italiano, em seu caminho. Na segunda partida da finalíssima da Coppa Italia, Lorenzo Amoruso e Batigol marcaram pela Viola, que já havia vencido na ida, por 1 a 0, em Florença. O gol que abriu o confronto no Atleti Azzurri d’Italia, inclusive, nasceu de um cruzamento de escanteio no qual a bola passou por Carnasciali – Amoruso, ligado, desviou para as redes. Troféu mais do que merecido para um elenco, de fato, superior ao da rival nerazzurra.
Aquele 1996 prosseguiu de forma especial para o clube violeta. Pouco tempo depois, na Supercopa Italiana, Batistuta brilhou novamente, marcou dois gols contra o Milan e levantou mais uma taça com a Fiorentina. Aquela foi, inclusive, a primeira ocasião (em nove anos) que o campeão da Copa desbancou o detentor do scudetto na competição. Nada mal para Carnasciali e companhia, diante de um time que contava com Franco Baresi, Alessandro Costacurta, Paolo Maldini, Zvonimir Boban, Demetrio Albertini, George Weah, entre outros craques…
O destaque das conquistas durante 1996 rendeu ao lateral da Fiorentina mais uma convocação à seleção, ainda dirigida por Sacchi. Só que, naquele que foi seu segundo e último compromisso com a camisa da Itália, a Squadra Azzurra perdeu por 2 a 1 para a Bósnia. Da mesma forma, no clube, o restante da temporada também ficou aquém das expectativas. Carnasciali continuava sendo o mesmo jogador aplicado, sério, aguerrido e muito querido pela torcida. Entretanto, o desempenho coletivo caiu um pouco, talvez até fruto dos títulos obtidos. O lampejo de bom futebol foi mostrado na Recopa Europeia, torneio no qual o time parou somente nas semifinais, sendo eliminado pelo Barcelona. No mais, campanhas decepcionantes: 9ª colocação na Serie A e derrota precoce na Coppa Italia, para o Bologna.
O Bologna seria exatamente o destino de Carnasciali, após cinco temporadas completas em Florença. Em seu último ano vestido com o uniforme roxo, a questão disciplinar chamou a atenção: o lateral foi expulso em três oportunidades, além de acumular outros cinco cartões amarelos. Números incomuns e que certamente demonstravam que algo já não estava mais na mesma sintonia entre clube e jogador.
O outono da carreira
A verdade é que o declínio técnico de Daniele se acentuou bastante a partir de 1997. Com mais de 30 anos, não conseguiu obter uma sequência grande no Bologna, equipe para a qual se transferiu após deixar a Fiorentina. Talvez, com um pouco de paciência e adaptação, Carnasciali pudesse render em bom nível por mais uma temporada em Florença. No entanto, o time vivia um momento de reconstrução e, com a saída de Ranieri, o lateral também acabou fazendo as malas e indo para o outro lado dos montes Apeninos.
Atuando ao lado de Baggio com o uniforme rossoblù, Daniele fez apenas 18 partidas e anotou um gol. Sem destaque, amargou o banco de reservas em grande parte da trajetória, principalmente na metade final do campeonato. A campanha do Bologna não foi ruim: o time de Renzo Ulivieri ficou com o 8º lugar na Serie A. Após somente um ano, Carnasciali deixou os felsinei e rumou para o nordeste da Itália.
No Venezia, atuou durante as últimas duas temporadas de sua carreira. Na maioria das vezes foi zagueiro, mas também quebrou o galho como lateral-esquerdo e até mesmo ala mais ofensivo pela direita. Jogando onde fosse melhor para o time, o italiano ajudou os leões alados a se salvarem do rebaixamento em 1998-99.
No entanto, o mesmo objetivo não foi atingido na época seguinte, e o Venezia caiu para a Serie B, após permanecer quase todo o campeonato na zona vermelha. Já debilitado fisicamente, Carnasciali jogou somente 12 vezes pelo certame e fez sua despedida dos gramados a três rodadas do fim, num empate por 2 a 2 com o Verona. Beirando os 34 anos, decidiu pendurar as chuteiras, encerrando uma trajetória digna pelo futebol italiano.
Fora de ação, o lateral ainda retornou à sua cidade natal para ser cartola do primeiro time de sua carreira. Foi diretor esportivo da Sangiovannese por um período, mas depois acabou se distanciando da função. Ainda se aventurou como comentarista, o que explicaria porque continua a ser bastante procurado por veículos de imprensa de Florença para falar sobre a Fiorentina. Volta e meia, Carnasciali aparece na mídia dando seus pitacos sobre as decisões que a presidência Viola deveria tomar, assim como analisando tecnicamente os jogadores gigliati.
Se a carreira acabou sendo interrompida de forma até precoce, os anos no auge foram de extrema eficiência. Com um estilo meio rude, até mesmo na aparência – com a barba por fazer e o cabelo sempre comprido – Carnasciali foi um defensor de meter medo nos adversários. Firme e incansável, porém, também desempenhou um papel importantíssimo do ponto de vista tático e como opção de escape pela direita no ataque violeta.
Com o Brescia, mas, principalmente, em sintonia com Ranieri na Fiorentina, ocupou o posto de jogador que qualquer clube que almeja troféus precisa ter: um tipo tão discreto quanto competente. Sua fatia de responsabilidade nos títulos da Viola em 1996 talvez seja subestimada por aqueles que se atentem a nomes mais atrativos do elenco. De qualquer forma, Carnasciali estava lá. Em silêncio, executando com maestria seu trabalho na coxia, enquanto as grandes estrelas da corporação se apresentavam no palco principal.
Daniele Carnasciali
Nascimento: 6 de setembro de 1966, em San Giovanni Valdarno, Itália
Posição: lateral-direito
Clubes: Atalanta (1984-85), Mantova (1985-86), Spezia (1986-87), Ospitaletto (1987-90), Brescia (1990-92), Fiorentina (1992-97), Bologna (1997-98) e Venezia (1998-2000)
Títulos: Serie B (1992 e 1994), Coppa Italia (1996) e Supercopa Italiana (1996)
Seleção italiana: 2 partidas