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Pouco celebrado, Gino Colaussi foi um dos heróis do bicampeonato mundial da Itália

O futebol já provou centenas de vezes que adora transitar pelo território do improvável. No entanto, poucas coisas podem ser tão inverossímeis quanto um filho de agricultor friulano se tornar jogador de elite e, com a camisa da modesta Triestina, marcar dois gols numa final de Copa do Mundo e garantir o título da maior competição do planeta para o seu país. Foi exatamente o que aconteceu com o atacante Gino Colaussi, no fim da década de 1930.

Para começar, Colaussi nem nasceu italiano. Aliás, sequer veio ao mundo como Colaussi. Luigi, que rapidamente passaria a ser conhecido como Gino, foi gerado na cidade de Gardiscja, em 1914, quando aquelas plagas ainda pertenciam ao Império Austro-Húngaro. Em julho daquele mesmo ano, começaria a Primeira Guerra Mundial, que terminaria em 1918, com a vitória dos Aliados – incluindo a Itália. Como resultado do conflito, o país anexou o território que daria origem à região de Friul-Veneza Júlia. E aí começaram as mudanças.

Gardiscja, como é chamada na língua friulana, foi rebatizada como Gradisca d’Isonzo. Luigi Colàusig, já italiano, continuou a utilizar o seu nome de batismo até Benito Mussolini chegar ao poder na década de 1920 e promover uma campanha de italianização forçada nas regiões em que o italiano não era o idioma corrente: ao promoverem o apagamento do que consideravam estrangeiro, os fascistas visavam impor a cultura itálica como predominante e mais forte. Dessa forma, por determinação do regime, o sobrenome de grafia e construções típicas do Friuli foi modificado para Colaussi num cartório local.

Luigi vinha de uma família de origem humilde. Seus pais eram donos de uma pequena propriedade rural e, para ajudá-los, fazia bico como sapateiro – a cada par consertado, ganhava míseras 2 liras. Uma paixão, no entanto, movia o jovem Gino e seu irmão mais velho, Giordano: o futebol. Assim, ambos ingressaram nas categorias de base da Itala Gradisca, agremiação local, e puderam dar seus primeiros passos no esporte. O primogênito, que ficaria conhecido como Colaussi I, se profissionalizou em 1928 e teve uma carreira modesta. Colaussi II, por sua vez, estava destinado ao Olimpo.

Em 1930, um franzino e baixinho Gino, com apenas 1,63m, ganhou uma chance na Triestina, maior equipe da região. Ágil, veloz, preciso nas finalizações e ambidestro, o ponta-esquerda acertou com os alabardati depois de ser notado pelo presidente Celso Carretti, que o indicou para o treinador húngaro István Tóth. Assim, Colaussi rumou a Trieste, cidade localizada a cerca de 40 km de Gradisca d’Isonzo.

Eram os primórdios da Serie A e a Triestina brigava para permanecer na elite italiana. Com apenas 16 anos, Colaussi fez o seu batismo de fogo nessas condições e estreou justamente contra o Bologna, uma das potências da época, no fim de setembro de 1930 – derrota por 6 a 1. Seu primeiro gol foi anotado dois meses depois, na grande vitória em casa por 5 a 0 sobre a Ambrosiana-Inter.

Pasinati e Colaussi foram dois dos grandes craques da Triestina (Limina)

Os primeiros anos em Trieste foram de maturação e fizeram de Colaussi um dos principais nomes dos biancorossi, ao lado dos também atacantes Piero Pasinati e Nereo Rocco: era Gino que costumava preparar as jogadas pelos flancos para que os colegas marcassem. Assim, em 1935, o ponta entrou no radar do técnico Vittorio Pozzo e foi convocado para defender a seleção italiana: estreou em outubro de 1935, numa derrota por 2 a 1 para a Checoslováquia, em Praga, e anotou o seu primeiro gol na partida seguinte, um empate por 2 a 2 com a Hungria, em Milão. Com a Squadra Azzurra, faturou a Copa Internacional.

Em alta, Gino contribuiu para que a Triestina terminasse a temporada 1935-36 na sexta colocação da Serie A, a melhor de sua história até aquele momento. Os alabardati repetiram o desempenho em 1937-38, quando tiveram a melhor defesa do campeonato e chegaram a brigar pelo título – no entanto, a queda de desempenho nas três rodadas finais, em que só conquistou um empate, fez a equipe terminar em sexto, a cinco pontos da Juventus, campeã.

Colaussi não fez uma grande temporada em 1937-38: com problemas físicos, disputou apenas 15 jogos e marcou quatro gols. No entanto, o atacante contava com a confiança de Pozzo e foi convocado para a Copa do Mundo de 1938, juntamente aos colegas de clube Pasinati e Bruno Chizzo. O treinador apostara em Gino como substituto de Raimundo Orsi para a ponta esquerda desde que, em 1935, o ex-juventino voltara para a Argentina e não encontrara outro atleta que lhe convencesse para executar a função. Para colocar o friulano em sua lista de atletas, o técnico ignorou as lesões e ainda pediu que Luigi adiasse o seu casamento, marcado para o verão daquele ano.

Na partida contra a Noruega, na estreia pela competição, Pozzo deu um descanso a Colaussi – Pasinati, seu colega, foi titular. Os escandinavos jogavam com amadores e se esperava uma goleada italiana, mas a Nazionale conseguiu apenas uma vitória por 2 a 1 nas oitavas. Assim, Gino entrou no time na fase seguinte, tomando o lugar de Pietro Ferraris. O duelo das quartas seria contra a França, anfitriã, o que poderia atrapalhar o planos da Squadra Azzurra. Só que Luigi não se acanhou.

Logo aos 9 minutos de partida, Colaussi arriscou um chute de longe para tentar encobrir o goleiro Laurent Di Lorto, que se surpreendeu com a descida rápida da bola e falhou: além de deixar a pelota entrar, deu de cara com a trave. No minuto seguinte, Oscar Heisserer empatou para a França, mas Silvio Piola anotou uma doppietta no segundo tempo e garantiu a vitória por 3 a 1. Esta peleja ficou marcada pelo fato de a Itália ter vestido preto por ordem do ditador Mussolini: era uma provocação aos franceses, já que a milícia fascista era conhecida por vestir camisas negras.

Pouco depois do sucesso na Copa do Mundo, Colaussi rumou a Turim (Arquivo/Juventus)

Colaussi também abriu o placar na partida seguinte, a semifinal contra a sensação Brasil, aos 51 minutos. No lance, Piola conseguiu passar por Domingos da Guia e tocou para Gino, que chutou forte a rasteiro, sem defesa para o goleiro Walter. De pênalti, Giuseppe Meazza fez o segundo da Itália e, já no fim do jogo, Romeu descontou. Pela segunda vez seguida, a Nazionale disputaria a decisão da Copa do Mundo.

Na final, contra a Hungria, a Itália foi bastante superior. Colaussi abriu o marcador com apenas 6 minutos de jogo, após receber um lançamento e, de primeira, acertar o canto direito do goleiro Antal Szabó. Os húngaros empataram em seguida, com Pál Titkos, mas Piola concluiu jogada coletiva para, aos 16, colocar os azzurri novamente em vantagem.

Aos 35, Gino anotou mais uma vez: recebeu lançamento de Meazza, ganhou de Gyula Polgár na corrida e finalizou rasteiro, vencendo Szabó. No segundo tempo, Györgi Sárosi e Piola deixaram os seus tentos e fecharam a conta em 4 a 2 para os italianos. Além da taça do bicampeonato mundial, Colaussi pode se gabar de ter sido o primeiro jogador a marcar duas vezes em um final de Copa.

Aos 24 anos, mesmo alcançando um patamar praticamente inigualável no futebol, Luigi voltou para a Triestina. Os biancorossi jamais poderiam concorrer regularmente com os outros times do país por títulos e as duas temporadas seguintes ratificaram isso: mesmo com dois campeões mundiais e outros bons jogadores no elenco, como Giuseppe Grezar e Ferruccio Valcareggi, a equipe juliana brigou para não cair para a Serie B. Dessa forma, em busca de novos ares, Colaussi rumou para a Juventus em 1940, após 10 campanhas pelos alabardati.

A Juventus investiu 450 mil liras no jogador, que optou por acertar com a Velha Senhora mesmo tendo recebido uma oferta duas vezes maior do Genoa. A Segunda Guerra Mundial já estava em curso e Colaussi teve de cumprir o serviço militar obrigatório, de modo que perdeu um pedaço considerável da pré-temporada – quando chegou a Turim, um jornal chegou a compará-lo a um “limão espremido”, devido à alta carga de atividades a que tinha sido submetido no exército.

Jogar na Juventus poderia ter sido o auge para Colaussi, mas ele não teve grandes atuações pela equipe bianconera (Arquivo/Venezia)

Em Turim, Colaussi não decolou e, por isso, perdeu seu lugar na seleção. A primeira temporada, mediana, terminou com cinco gols marcados em 25 aparições – os mais importante foram sobre a Triestina e nos dois jogos contra a Ambrosiana-Inter. Menos utilizado em seu segundo ano no Piemonte, Gino balançou as redes somente duas vezes em 18 partidas e pouco contribuiu para o título da Coppa Italia 1941-42 – o seu primeiro por clubes.

Colaussi terminou vendido ao Vicenza, agremiação em que disputou uma razoável Serie A em 1942-43 – marcou nove gols em 26 jogos. O atacante permaneceu no Vêneto até o fim do conflito mundial e, com a camisa biancorossa, participou dos campeonatos regionais realizados durante a guerra. Em 1945, voltou para ter o seu canto do cisne pela Triestina e encerrou a sua trajetória pela equipe com 48 tentos em 277 aparições. Até hoje, se encontra na quarta posição em número de partidas pelo clube.

Em fim de carreira, Gino foi parar no Padova, da Serie B, e faturou a segundona em 1948. Nas quatro temporadas seguintes, Colaussi se desdobrou nas funções de jogador e técnico nas divisões inferiores. Passou por Thiene, Ternana, Tharros e Olbia, sendo rebaixado para a quarta categoria pela equipe de Terni e garantindo o acesso ao quinto nível nacional no último clube citado. Pelos bianchi da Sardenha, Luigi se aposentou em 1952, aos 38 anos.

Dedicado exclusivamente ao ofício de treinador, Colaussi se dedicou a revelar jovens, como Gustavo Giagnoni, no próprio Olbia. Em 1961, o friulano levou o minúsculo Alcamo, da Sicília, para a Serie D e, em 1962-63, comandou brevemente a Triestina na segunda divisão. Com pouco sucesso, ainda foi rebaixado para a terceirona com o Latina e, em 1971, a serviço da Federação Italiana de Futebol (FIGC), teve uma experiência na Líbia: ao lado de Amedeo Biavati, comandava um projeto para desenvolver o futebol no país, mas voltou para sua terra natal após a revolução comandada por Muammar al-Gaddafi.

Na década de 1970, Colaussi se aposentou do futebol e abriu um bar em Bassano del Grappa. O sucesso nos gramados não havia se transformado em êxito financeiro e, com dívidas, o ex-jogador precisou penhorar a medalha conquistada na Copa do Mundo de 1938. Depois que a situação se tornou pública, o governo italiano lhe concedeu uma pensão vitalícia, devido aos serviços prestados ao país. Gino faleceu em 1991, aos 77 anos, e recebeu duas bonitas homenagens póstumas: o estádio de Gradisca d’Isonzo e uma das tribunas da praça esportiva de Trieste foram batizadas com o seu nome.

Gino Colaussi (nascido Luigi Colàusig)
Nascimento: 4 de março de 1914, em Gradisca d’Isonzo, Itália
Morte: 24 de dezembro de 1991, em Trieste, Itália
Posição: atacante
Clubes como jogador: Triestina (1930-40 e 1945-46), Juventus (1940-42), Vicenza (1942-45), Padova (1946-48), Thiene (1948-49), Ternana (1949-50), Tharros (1950-51) e Olbia (1951-52)
Títulos como jogador: Copa Internacional (1935), Copa do Mundo (1938), Coppa Italia (1942) e Serie B (1948)
Clubes como treinador: Thiene (1948-49), Ternana (1949-50), Tharros (1950-51), Olbia (1951-53), Alcamo (1959-61 e 1967-68), Triestina (1963) e Latina (1969-70)
Títulos como treinador: Promozione (1953) e Prima Categoria (1961)
Seleção italiana: 26 jogos e 15 gols

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