Serie A

Calciopoli, parte dois: mais um escândalo?

Novas escutas telefônicas podem manchar o ciclo vitorioso da atual tetracampeã nacional (Inter.it)

Com o balanço das horas, tudo pode mudar. Mas quando falamos de Calciopoli, o escândalo que eclodiu no futebol italiano em 2006, horas se transformam em anos e as mudanças podem se tornar drásticas. Aquele que se tornou a pior mancha da história do esporte peninsular agora tornou-se, também, o mais longo.

No último dia 2, o ex-atacante Christian Vieri entrou com ação junto à Procuradoria Federal da Federação Italiana de Futebol (FIGC) para que este revogasse o scudetto de 2005-06 da Internazionale, homologado após a sentença do Calciopoli. Pediu também que Massimo Moratti e Rinaldo Ghelfi, presidente e vice do clube, sejam suspensos. O motivo: a aparição do nome de Vieri em dossiês ilícitos, colocando-o como vítima de espionagem telefônica em sua linha da Telecom Italia.

Apenas um dia depois, novas interceptações telefônicas até então desconhecidas do público vieram à tona. Quem as apresentou foi a defesa de Luciano Moggi, ex-diretor geral da Juventus, acusado de ser o maior mentor do Calciopoli e que está sofrendo um processo civil na Corte de Nápoles. Nestas ligações, estavam Moratti e o já falecido ex-presidente Giacinto Facchetti em conversa com Paolo Bergamo, um dos chefes da comissão de arbitragem da FIGC. De vítima, a Inter teria passado a suspeita. “Uma inversão da verdade, inaceitável e ofensiva”, como já declarou o próprio Moratti.

Algumas das novas conversas também tiveram como protagonistas os dirigentes do Milan, Adriano Galliani e Leonardo Meani – já punidos – com Paolo Bergamo e Pierluigi Collina, então árbitro e, hoje, dirigente arbitral da FIGC. Ainda resta saber quão relevantes podem ser estas escutas.

Calciopoli, parte 1
O escândalo, que também foi chamado de Moggiopoli e Calciocaos, estourou poucas semanas antes do final da Serie A 2005-06, vencida pela Juventus e depois homologada à Inter. Tratou-se de um esquema para condicionar os resultados das partidas através de pressão e influência junto à comissão de arbitragem. Os dirigentes das equipes, por meio de telefonemas e relacionamento constante com a chefia de arbitragem (movimentos esportivamente proibidos) obtinham informações privilegiadas sobre quais árbitros seriam escalados e também combinavam como seriam suas atuações.

As investigações da época consideraram cerca de 30 mil ligações interceptadas e apontavam Luciano Moggi, então diretor geral da Juventus, como o grande mentor do esquema – afirmação que ganhou ainda mais força por sua equipe estar vencendo, em campo. Além de árbitros e da Juventus, também estavam representados o Milan, através de seu administrador-delegado, Adriano Galliani, e de seu colaborador para assuntos de arbitragem, Leonardo Meani; a Fiorentina, por telefonemas de seus então patronos Diego e Andrea Della Valle; a Lazio, através de seu presidente Claudio Lotito; e a Reggina, hoje na Serie B, com seu presidente Pasquale Foti.

À primeira sentença, traumática, coube um apelo, que gerou inúmeras suspensões de árbitros e dirigentes, multas pesadas e grandes sanções esportivas – estas, claro, ficariam mais marcadas, e alterariam completamente a classificação de 2005-06. A Juventus, então bicampeã, teve seus dois scudetti destituídos e foi rebaixada para a Serie B. Milan, Fiorentina e Lazio, respectivos segundo, quarto e sexto colocados, sofreram decréscimo de 30 pontos na classificação final da temporada: o Milan ficou com o quarto lugar – classificando-se para as preliminares da Liga dos Campeões, – ao passo que Fiorentina e Lazio, que haviam conquistado vagas nas competições europeias, terminam em nono e décimo lugares. Todos tiveram penalizações em pontos para a temporada seguinte: nove pontos a menos para a Juventus na Serie B e, na Serie A, três para a Lazio, oito para o Milan, 11 para a Reggina e 15 para a Fiorentina.

À parte a comemoração do Messina, que estava rebaixado para a Serie B e foi repescado na série máxima, a grande beneficiada (ainda que por acaso) pelas decisões foi a Inter. O clube de Milão, que não vencia o scudetto desde 1988-89, teve homologada a conquista de 2005-06. Seria a primeira de quatro seguidas, combinadas com três Coppa Italia e três Supercoppa – um verdadeiro alívio para a propriedade nerazzurra, comandada por Massimo Moratti, que já tinha investido cerca de 100 milhões de euros sem recolher uma conquista. E tinha declarado a intenção de vender a sociedade, em abril daquele ano.

Meio consternada, meio feliz: em 2007, a Juventus festejava a Serie B (gafferssportsblog)


Calciopoli, parte dois
Bastaram dois anos para que o futebol enterrasse as sentenças esportivas do Calciopoli: a Juventus venceu a Serie B, o Milan foi campeão europeu e mundial, Fiorentina e Lazio reconquistaram lugares na Europa e a Reggina, na época, conseguiu uma salvezza inesperada. O processo judicial, porém, teve de seguir. Descobriu-se que o número de interceptações, que era de 30 mil, na verdade, é de 171 mil. Em 30 de março do ano passado, o tenente-coronel Attilio Auricchio, responsável pela investigação em que se baseia o processo, declarou que não haviam telefonemas entre os máximos dirigentes das equipes e os designadores de árbitros.

Em 4 de março desse ano, o jornal italiano La Stampa, em furo de reportagem, reproduziu três destes diálogos. Em um deles, o protagonista é o falecido Giacinto Facchetti, ex-presidente da Inter. Nos outros, quem aparece é Adriano Galliani, administrador-delegado do Milan, e Leonardo Meani, já punidos. O receptor é sempre Paolo Bergamo, um dos chefes de árbitros daquela época.

Facchetti e Bergamo teriam se falado horas antes da partida entre Inter e Sampdoria, em 9 de janeiro de 2005. A Inter venceu por 3 a 2 uma partida que perdia por 2 a 0 até os 38 minutos da etapa complementar. Reproduzimos abaixo o diálogo que foi divulgado pelo jornal:

Facchetti: Pronto, Paolo, quem fala é Facchetti.
Bergamo: Bom dia, Giacinto.
Facchetti: Estou indo ao estádio e disse aos meus para ter um certo tato com Bertini, [o árbitro] uma certa disponibilidade. Falei com os jogadores, com [Roberto] Mancini e com os outros.
Bergamo: Vai ser um belo jogo, você verá.
Facchetti: Tudo bem.
Bergamo: Ele [Bertini] vem predisposto a fazer um bom jogo.
Facchetti: Sim, sim, tudo bem.
Bergamo: Verá que vamos vencer este desafio juntos.
Facchetti: Só queria lhe dizer que eu fiz [instruir os jogadores quanto ao comportamento].
Bergamo: Você verá que as coisas vão ser feitas da forma certa. E, depois, a equipe está recomeçando a ter confiança, a fazer resultados, isto dá moral.

No telefonema com Galliani, Bergamo se lamenta de uma intervenção de Luciano Moggi, dizia-se sozinho e, tão logo o dissesse, teve apoio imediato do administrador milanista. Já com Meani, a conversa foi sobre a arbitragem dos jogos de Milan contra a Fiorentina e, sobretudo, contra a Juventus. Para esta última, Meani chega a dar, um a um, os nomes dos árbitros que estariam no sorteio – e que, depois, atuaram no jogo:

Meani: Quem você vai mandar para Florença?
Bergamo: Para o sorteio? Você diz para o sorteio de árbitros? Fizemos isso a três mãos, mas veja que me faz confessar uma coisa sobre a qual eu e Gigì [Paiaretto] ainda não concordamos. Tenho em mente mandar três, porque não quero problemas, e, para mim, serão Messina, Farina e Rodomonti, depois veremos com Gigì, pois você pode imaginar quais são os três que quero colocar no próximo domingo [jogo contra a Juventus].
Meani: Entendo. Você quer colocar Paparesta.
Bergamo: Sim.
Meani: Collina.
Bergamo: Sim.
Meani: Trefoloni.
Bergamo: Sim, aposto minha cabeça.
Meani: Mas, para Trefoloni, faça um um belo discurso.
Bergamo: Fique tranquilo.
Meani: Do contrário, vamos cortar a cabeça deles.
Bergamo: Fique tranquilo.

Meani: Chame-o e fale com ele.

No espaço de apenas dois dias, surgiram outros tantos telefonemas. De Moratti a Bergamo, de Facchetti a Mazzei (outro dos responsáveis pela arbitragem, na época), de Meani a Collina, de Massimo Cellino (presidente do Cagliari) a Bergamo. Todas estas interceptações são trunfos da defesa de Luciano Moggi, não para alegar sua inocência, mas justamente para demonstrar que não existe inocência nesta história. Mais: que a aparente distração com as provas, que não levaram em conta muitas destas intervenções que agora fazem parte do argumento de defesa, foram seletivas.

É definitiva, para este fim, a declaração de Coppola, ex-auxiliar de arbitragem, o qual foi categórico em dizer que “os policiais não se interessavam pela Inter”. Coppola relatou um incidente numa partida de 2001, em que a Inter venceu o Venezia por 2 a 1. Disse que o ex-presidente interista, Facchetti, invadiu o vestiário dos árbitros para protestar contra a arbitragem e fazer pressão, de modo que um soco de Córdoba em Bettarini, na súmula, fosse transcrito como acidental. Segundo Coppola, os chefes de arbitragem, Bergamo e Pairetto, eram sensíveis às pressões, e assim se faziam os jogos – e que, por não ter mudado a súmula, nunca mais atuou na Serie A. Mesmo com este tipo de histórico, segundo ele, os investigadores não se interessavam pela Inter nas questões do Calciopoli.

Com base em tantas novidades, a FIGC já admite abrir uma nova investigação. Tudo, porém, gira em torno dos tempos legais, sob os quais muitas provas já teriam prescrevido. Os advogados de Moggi também pedem a inclusão das provas nos autos, mas é possível que apenas uma pequena parte seja acolhida de imediato.

Em 13 de abril, haverá o confronto entre promotoria e acusação. Até lá, fica a promessa de um verdadeiro show midiático, com jornais, programas de televisão e sites de torcedores que, cada um a seu modo, buscarão informações e interpretações – e até possíveis finais para a história. De longe, podemos afirmar que este é um caso sem vencedores. Perderam os clubes punidos, é claro. Perdeu a Inter, que abriu um ciclo vencedor com base na mácula de um campeoanto em que ela também atua. E perdeu a Serie A, que desde então não vive um grande momento, seja técnico que de confiabilidade, e provavavelmente será punida por um redimensionamento continental.
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1 Comentário

  • Foi divulgada uma transcrição de uma conversa entre o filho do ex-presidente da Inter Facchetti e o Bergamo, na qual o primeiro afirma que o presidente Massimo Moratti tem um "presente" para o último. Em troca, o chefe dos árbitros teria que enviar o árbitro Colina para o jogo da Inter. O pior, no entanto, é que a família Facchetti acusou a defesa do juventino Luciano Moggi de falsificar evidências, de acordo com eles nesta ligação quem oferece o Collina é o próprio Bergamo e não o Facchetti que pede. Isso muda todo o enfoque já que não seria um pedido direto da parte da Inter.
    Enfim, a juíza Casoria vai retomar o caso dia 20, vamos ter muito mais emoção nos próximos dias. Será que sobra para Inter? Estou achando que quem vai ficar mesmo como o título é o Bologna para poder colocar a estrela dourada no uniforme!

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