Superação. Essa talvez seja a palavra que melhor ilustre a carreira de Cicinho no futebol. O ex-lateral-direito viveu momentos mágicos em meados dos anos 2000: conquistou títulos de prestígio pelo São Paulo, disputou uma Copa do Mundo e jogou no Real Madrid galáctico. Porém, o alcoolismo, as noitadas e a depressão quase acabaram com sua vida. Até que, na Itália, quando atuava pela Roma, se dedicou à religião por causa de sua esposa e mudou de vida. Dentro de campo, contudo, o brasileiro não caiu nas graças do técnico Claudio Ranieri e foi deixado de lado.
Cicinho nasceu em Pradópolis, cidade localizada no interior de São Paulo, e chegou às categorias de base do Botafogo de Ribeirão Preto em 1994, aos 14 anos. Quase na virada do século, o jovem fez as malas e viajou para Belo Horizonte, onde jogaria em seu primeiro time grande, o Atlético-MG. Apesar da grande expectativa criada sobre seu futebol, Cicinho deixou a fama subir à cabeça, jogou o profissionalismo para escanteio e viu, do banco de reservas, Mancini tomar conta da lateral direita – mais tarde, ele defenderia Roma, Internazionale e Milan.
O lateral promissor, com tendências ofensivas, já dava indícios de problemas extracampo – bebidas, noitadas, mulheres. Então, o treinador do Galo à época, Levir Culpi, deu o aval à diretoria atleticana para negociá-lo com o Botafogo. No Fogão, Cicinho não emplacou e retornou ao Atlético-MG em 2003. O atleta fez boas exibições e caiu nas graças da torcida, porém, devido a cinco meses de salários atrasados, entrou na justiça contra o Galo e deixou Belo Horizonte.
Em 2004, Cicinho acertou com o São Paulo, time pelo qual era apaixonado desde criança. De volta ao seu estado natal, o defensor viveu o auge de sua carreira. Vestindo a camisa do Tricolor paulista, aperfeiçoou seus predicados – apoios ofensivos, cruzamentos e finalizações de média e longa distância – e fez história na agremiação. Os mísseis que o ala do esquema 3-5-2 são-paulino disparava fizeram muitas vítimas. O Palmeiras foi o que mais sofreu: tomou três golaços do camisa 2.
O ano de 2005 foi mágico para Cicinho. De cara, o jogador ajudou o São Paulo a conquistar o Campeonato Paulista, começou a ser convocado à seleção brasileira e foi o escolhido do comandante Carlos Alberto Parreira para substituir Cafu na campanha vitoriosa na Copa das Confederações. Na final da competição, participou de todos os gols da goleada por 4 a 1 do Brasil sobre a Argentina. O grande momento fez com que, em agosto, Cícero fosse adquirido pelo Real Madrid. O clube merengue o deixou no São Paulo até o fim do ano e, com isso, o lateral destro sagrou-se campeão da Copa Libertadores e do Mundial de Clubes da Fifa.
Antes de acertar com o Madrid, no entanto, Cicinho estava prestes a assinar com o Manchester United. No entanto, um intermediário de Roberto Carlos entrou na jogada, o colocou em contato com Vanderlei Luxemburgo, técnico dos merengues à época, e o destino do lateral-direito mudou.
Cicinho chegou com ótimas credenciais ao Real Madrid. Tinha o aval de Luxa – que, entretanto, acabou perdendo o emprego dias depois da apresentação do ex-são-paulino –, havia acabado de conquistar o Mundial de Clubes com o São Paulo e recebeu muita moral de Roberto Carlos. O eterno lateral-esquerdo madrilenho, inclusive, chegou a dizer a Michel Salgado, lateral-direito titular do Madrid naquela época, que Cicinho era o sucessor de Cafu e iria deixá-lo no banco.
O ex-são-paulino pegou a camisa de número 11 e, além de Roberto Carlos, se juntou aos outros brasileiros do elenco: Ronaldo, Robinho e Júlio Baptista. De janeiro a maio de 2006, o paulistano disputou 24 partidas, marcou três gols e forneceu duas assistências. No jogo de volta da semifinal da Copa do Rei, contra o Zaragoza, em Madri, ele soltou uma bomba de longa distância, com menos de um minuto de jogo, e abriu o placar. Os merengues venceram aquela partida por 4 a 0, mas, como haviam perdido por incríveis 6 a 1 na partida de ida, graças a quatro gols de Diego Milito, não se classificaram à final.
As boas exibições com a camisa do Real Madrid o credenciaram à vaga de reserva de Cafu na Copa do Mundo de 2006, na Alemanha. Após as vitórias sobre Croácia e Austrália, Carlos Alberto Parreira resolveu poupar alguns jogadores no terceiro jogo da fase de grupos. Cicinho foi um dos escolhidos pela comissão técnica brasileira para começar jogando, e foi dele o passe, de cabeça, para o gol de Ronaldo. Ele jogou os 90 minutos, e o Brasil venceu por 4 a 1. Na eliminação para a França (1 a 0), nas quartas de final, Cicinho entrou faltando 14 minutos para o fim do duelo.
Na temporada 2006-07, Cicinho pisou em campo apenas oito vezes, devido a uma lesão, e decidiu deixar o clube, em meados de 2007, para ganhar mais na Roma. Em agosto, assinou contrato de cinco anos com a Loba, que pagou cerca de 11 milhões de euros para contar com o brasileiro. Quando aterrissou na capital italiana, o lateral-direito foi abraçado por calorosos fãs giallorossi. Cicinho foi o segundo jogador que levou mais torcedores ao aeroporto, depois de Gabriel Batistuta, que ficou na Roma de 2000 a 2002.
O atleta começou bem na equipe romana, ainda que Christian Panucci estivesse em boa fase. Na temporada 2007-08, por exemplo, entrou em campo 44 vezes. Seus dotes ofensivos ficaram em evidência: anotou dois gols e deu seis assistências. Cicinho terminou a campanha com os títulos da Supercopa Italiana e da Coppa Italia, mas em março de 2009 rompeu o ligamento cruzado anterior do joelho direito e perdeu o restante da temporada. Nesse meio tempo, o jovem Marco Motta, emprestado pela Udinese, tomou conta da posição.
Se Motta quebrou o galho de Luciano Spalletti, primeiro técnico de Cicinho na Roma, Claudio Ranieri “ressuscitou” Marco Cassetti, fazendo o brasileiro perder espaço na lateral direita. Assim, Cicinho foi deixado de lado, de modo que não era convocado nem para ficar no banco de reservas nas partidas do time. Em meio a tudo isso, o jogador enchia a cara com bebidas alcoólicas e aproveitava as noitadas na Cidade Eterna. Ou desfrutava da boate, com pista de dança e bar, que montara dentro de casa.
O mau relacionamento com Ranieri também complicou a vida de Cicinho em Roma. Segundo o defensor, o treinador, que foi campeão da Premier League com o Leicester City em 2016, não gostava de brasileiros. O jogador já disse, em diversas entrevistas, que os outros compatriotas do plantel, como Adriano, Doni, Júlio Baptista, Júlio Sérgio e Rodrigo Taddei, sofreram com Ranieri.
“Imprensa, torcida, até jogador pedia para eu jogar, muitas vezes o [Francesco] Totti ia falar, mas ele não me colocava”, revelou Cicinho, em entrevista ao blog do jornalista Gustavo Hofman, dentro do site da ESPN Brasil. “Muitas vezes na Roma eu vi o Ranieri deixar o Totti no banco e ele ficava de bico calado, não falava nada, mesmo estando bem. Era uma mera perseguição, algo que chateava a nós, jogadores. Mas como capitão, ele dava exemplo de humildade”, completou.
Cicinho reclamou publicamente da postura da Roma, o que lhe rendeu uma multa e um metafórico tapa na cara. Encerrou a temporada 2008-09 com 29 jogos (entre Serie A, Liga dos Campeões e Coppa Italia), balançou as redes uma vez e deu um passe para gol. Já no primeiro semestre da época 2009-10, Cicinho quase não foi aproveitado por Ranieri – atuou em somente quatro embates. Escanteado, ele aceitou ser emprestado ao São Paulo por seis meses.
Fora de forma, Cicinho não correspondeu às expectativas da diretoria tricolor, chegou a ser afastado pelo então técnico Ricardo Gomes para fazer um trabalho de recondicionamento e disputou 25 jogos. Depois do breve período no São Paulo, o lateral voltou à Espanha em janeiro de 2010 para acertar compromisso de empréstimo de seis meses com o Villarreal. A aventura pelo Submarino Amarelo, no entanto, foi horrível: entrou em campo só sete vezes, contabilizando 85 minutos ao todo.
Na volta à Roma após o período de empréstimo ao Villarreal, Cicinho conheceu sua esposa, Marry, com quem tem hoje duas filhas, Eloah e Ester. Além de ter fisgado o coração do atleta, ela o fez “aceitar Jesus” e se converter ao evangelismo. Com isso, largou a bebida e os prazeres mundanos para professar a fé cristã. Se a vida amorosa e espiritual do atleta estava dando uma guinada para cima, sua carreira profissional estava indo ladeira abaixo. O defensor sofreu com muitas lesões na temporada 2011-12 e jogou em apenas duas oportunidades.
Depois de 91 partidas, três gols, oito assistências, dois títulos e problemas extracampo, Cicinho encerrou seu contrato com a Roma em 31 de junho de 2012. O Brasil foi seu refúgio novamente, mas dessa vez o destino seria diferente: o Sport Recife. No Leão, o lateral recuperou a confiança e fez ótimas partidas. Quando seu contrato expirou, em 2013, Cicinho recebeu uma proposta ousada de seu amigo ex-companheiro de seleção e Real Madrid, Roberto Carlos: viajar para a Turquia e assinar com o Sivasspor.
Cicinho confiou no ex-lateral-esquerdo, que à época era o treinador da equipe turca, e firmou vínculo com a agremiação. Vestindo a camisa do Sivasspor, ele atuou por vezes mais avançado, quase como um meia aberto pela direita, e forneceu assistências a rodo. Em três anos no clube, foram 30 passes para gol em 102 jogos e dois prêmios como melhor de sua posição na liga turca – em 2014-15 e 2015-16. O brasileiro conquistou a simpatia dos torcedores.
Ele deixou o Sivasspor em 2017 e ficou quase um ano sem encontrar um clube. Surpreendeu ao aceitar o projeto do Brasiliense, para atuar na quarta divisão do Campeonato Brasileiro. Entretanto, o jogador, aos 38 anos, fez dois jogos e decidiu parar, seguindo a recomendação de médicos ortopedistas, para evitar mais problemas no joelho.
Agora, Cicinho quer ser pastor. Por enquanto, ele e a esposa são líderes de casais na igreja de que são membros. O casal visita várias cidades, sobretudo no interior de Goiás, contando seu testemunho de superação e pregando o evangelho. O ex-jogador também é dono de um centro esportivo que reúne escolinha de futebol e academia de lutas e dança em Goiás, e passou a atuar como comentarista. Para quem quase teve a vida destruída por bebidas e depressão, conseguiu um final feliz.
Cícero João de Cézare, o Cicinho
Nascimento: 24 de junho de 1980, em Pradópolis (SP)
Posição: lateral-direito
Clubes: Botafogo-SP (1999-2000), Atlético-MG (2001 e 2003), Botafogo (2001-02), São Paulo (2004-05 e 2010), Real Madrid (2006-07), Roma (2007-12), Villarreal (2011), Sport (2012-13), Sivasspor (2013-16) e Brasiliense (2018)
Títulos: Campeonato Paulista (2005), Copa Libertadores da América (2005), Mundial de Clubes da Fifa (2005), Copa das Confederações (2005), La Liga (2007), Coppa Italia (2008) e Supercopa Italiana (2007)
Seleção brasileira: 17 jogos e um gol