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Marcador ‘libidinoso’, Rachid Neqrouz foi ídolo do Bari e ativista pela causa islâmica

Ao longo do tempo, no imaginário popular, estabeleceu-se a ideia de que, para um zagueiro ser bem-sucedido, ele deveria ser viril e imponente, se fazendo valer do jogo físico quando necessário. Rachid Neqrouz, beque nascido no Marrocos e que teve importante passagem pelo Bari entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000, se enquadra neste tipo de perfil, mas não se resumia apenas a isso. Era um jogador com certa qualidade técnica e que, por vezes, recorria a métodos não muito ortodoxos para cumprir seu papel em campo.

Zagueiro com personalidade

O marroquino nasceu em 1972, em Errachidia, cidade do sudeste do país. Desde jovem, demonstrou interesse pela área de ortopedia. Era fascinado pela parte óssea, e isso talvez explique porque ele acabaria sendo expulso algumas vezes em sua carreira por provocar contatos violentos, “osso a osso”, com os adversários. Em 1993, deu seus primeiros passos no futebol, quando foi revelado pelo Mouloudia Oujda, clube situado em uma região fronteiriça com a Argélia. Rapidamente se destacou e, um ano depois, acertou com o Young Boys, da Suíça.

Pelo time de Berna, capital do país, manteve o viés de crescimento e foi convocado para a Copa do Mundo de 1994, realizada nos Estados Unidos. Ele atuou na última rodada da fase de grupos, quando penou para parar o craque Dennis Bergkamp, na derrota por 2 a 1 para a Holanda. A seleção de Marrocos não somou pontos e foi a lanterna de seu grupo, que contou ainda com Arábia Saudita e Bélgica. Após três temporadas, 100 partidas e sete gols marcados pelo Young Boys, Neqrouz se transferiu para a Itália, um dos grandes centros do futebol europeu. Ou seja, a mudança representava, definitivamente, a passagem do defensor para um outro escalão.

O destino de Rachid foi o Bari, time da região da Apúlia, que havia acabado de retornar à Serie A após três anos na segundona. Treinados por Eugenio Fascetti, os biancorossi contavam com ótimas opções em seu elenco: Gianluca Zambrotta, Philemon Masinga, Klas Ingesson, Nicola Ventola, Thomas Doll, Francesco Mancini, Sergio Volpi e Miguel Ángel Guerrero.

Neqrouz foi o primeiro representante de seu país a defender uma agremiação da Serie A, um campeonato que reunia a nata do futebol, especialmente na posição de atacante, aquela que o recém-contratado teria de lidar. Gabriel Batistuta, Ronaldo, Filippo Inzaghi, Hernán Crespo, Oliver Bierhoff, George Weah e Vincenzo Montella eram alguns dos exemplos, sem falar de outros nomes que atuavam um pouco mais atrás, mas que eram constantes ameaças ofensivas, como Alessandro Del Piero, Zinédine Zidane, Francesco Totti e Roberto Baggio.

O Bari estreou perdendo em casa para o Parma por 2 a 0, ainda sem contar Neqrouz em campo. Ele debutou na rodada seguinte, contra a Fiorentina no estádio Artemio Franchi, com a dura missão de marcar o goleador Batistuta.

O atacante se irritou com a marcação dura de seu oponente – situação que se repetiria algumas semanas depois, com Pasquale Luiso, do Vicenza – e chegou a reclamar com a arbitragem algumas vezes, chamando Rachid de louco. No final, a Viola venceu por 3 a 1 e Batistuta anotou dois gols, mas foi um cartão de visitas digno da capacidade do novo zagueiro dos galletti que, apesar de jovem, tinha muita personalidade.

Primeiro marroquino a atuar na Serie A, Neqrouz se consolidou no Bari (LaPresse)

A equipe biancorossa só viria a alcançar seu primeiro triunfo na competição na quinta rodada, ao bater o Lecce, fora de casa, pelo placar mínimo. Ao menos, a vitória inaugural ocorreu justamente no Dérbi da Apúlia, o que poderia dar moral para o Bari para o prosseguimento da Serie A. Não foi bem o que aconteceu no compromisso seguinte, quando o marroquino protagonizou aquele que foi o seu mais infame capítulo enquanto atleta.

Neqrouz, o urologista

Jogando em seus domínios, no estádio San Nicola, o Bari recebeu a poderosa Juventus. Sob o comando de Zidane, que deu uma assistência e marcou duas vezes, com direito a um lindo gol de voleio, os bianconeri passearam em campo e acabaram vencendo através de uma impiedosa goleada por 5 a 0. O maior “protagonista” da calamidade apresentada pelos biancorossi foi justamente Neqrouz, que sofreu para conter a dupla de ataque formada por Del Piero e Inzaghi.

O marroquino levou cartão amarelo por ter se apoiado em Pippo durante uma disputa aérea e, menos de dois minutos depois, recebeu o vermelho por conta de um carrinho violento aplicado em Angelo Di Livio. Apesar de a expulsão só ter acontecido na segunda etapa, ele já poderia ter sido mandado ao chuveiro mais cedo, ainda durante os 45 minutos iniciais, quando incorporou um urologista e deu um toque profundo com seu dedo médio sobre o calção de Inzaghi, entre as nádegas do atacante, com o intuito de desestabilizá-lo. “Inzaghi marcava gols todas as semanas. Ele era muito forte e sortudo, marcava com peito, barriga, rosto, joelho, bunda, costas, por isso tentei deixá-lo nervoso de todas as formas possíveis”, comentou o defensor, posteriormente.

Segundo a imprensa local, foi uma “marcação libidinosa”, mas o incidente não fez jus ao bom jogador que Neqrouz foi. Eficaz nas antecipações e no duelo aéreo, graças à sua estatura de 1,88 m, era um distribuidor de bolas, principalmente quando iniciava as jogadas com passes longos. Aliava força física com capacidade técnica para um atleta da posição. Seu ponto fraco eram as situações de um contra um, pois não tinha tanta velocidade e costumava cometer faltas. Não à toa, levou oito cartões vermelhos em sua passagem pela Itália e só não foi expulso nas temporadas 2000-01 e 2003-04. Nesta última, sequer entrou em campo.

Na 14ª rodada da Serie A 1997-98, o Bari bateu o Vicenza fora de casa por 2 a 1, e um dos principais fatos do jogo foi a provocação do defensor sobre o atacante Pasquale Luiso. Ao término da campanha, os comandados de Fascetti garantiram a permanência da equipe na elite, graças ao 11º lugar alcançado. A Juventus de Pippo Inzaghi, autor de 18 gols, venceu a batalha contra a Inter e faturou o scudetto. Neqrouz não teve tempo para aproveitar as férias porque disputou sua segunda Copa do Mundo. Na França, a seleção marroquina fez parte do grupo do Brasil, que se classificou juntamente com a Noruega.

Na temporada seguinte, os galletti tiveram um resultado levemente superior (10º lugar) e Neqrouz, um dos responsáveis pelo bom desempenho defensivo que deram a seu time a quinta melhor retaguarda do campeonato, com 44 gols sofridos, protagonizou dois momentos inusitados. O primeiro foi fora das quatro linhas, quando chegou a ter o carro roubado e perseguiu o ladrão a pé pelas ruas de Poggiofranco, bairro da zona central de Bari.

O segundo ocorreu na 10ª rodada da Serie A. Em jogo contra a Roma, no estádio Olímpico, o Bari vencia o confronto através de um gol anotado por Masinga, aos 77, até que o árbitro Livio Bazzoli marcou um pênalti inexistente de Neqrouz em cima de Totti, que converteu e selou o empate. A reação do zagueiro foi permanecer curvado durante cinco minutos, chorando como uma criança. Então, logo depois, ele se levantou em sinal de oração a Alá.

Ríspido, Neqrouz levou oito cartões vermelhos em sua passagem de sete anos pelo Bari (Allsport)

A religião e a bola

Muçulmano, Neqrouz se tornaria uma voz importante em favor da religião e da cultura islâmica. Na virada do milênio, em 2000, durante o evento Jubileu dos Desportistas, em Roma, discursou na presença do então papa, João Paulo II. “O maior pecado do futebol é o racismo, essas frases dos meus colegas que vêm do coração. Mas, por uma vez, pensemos também em outras coisas, não apenas no futebol: refiro-me às crianças que estão morrendo na Palestina hoje em dia”, afirmou.

De volta ao futebol, Neqrouz disputou a Copa Africana de Nações de 2000 e ajudou o Bari a escapar por um triz do rebaixamento, com três pontos a mais do do Torino, que abria a zona maldita. Curiosamente, foi quando Rachid teve talvez a sua melhor atuação individual, ao marcar uma doppietta em uma vitória por 3 a 2 sobre o Piacenza, pela 12ª rodada. Os gols nasceram de um petardo de pé direito de mais de 30 metros – nas vezes em que tentou, demonstrou que tinha aptidão para este tipo de arremate – e de uma cabeçada, que garantiu a vitória de sua equipe. Foi sua partida mais destacada e ele acabou sendo carregado nos ombros pelo goleiro Mancini.

Na temporada 2000-01, porém, nada funcionou e quis o destino que Neqrouz tivesse outra circunstância envolvendo a Juventus. Na 19ª rodada, Del Piero começara a partida no banco, pois havia perdido seu pai poucos dias antes. Com o 0 a 0 persistindo no placar, Carlo Ancelotti o mandou a campo na segunda etapa e foi dele o gol da vitória da Velha Senhora. O lance foi justamente em cima do marroquino: Ale pedalou para cima do marcador e driblou para a esquerda, antes de rapidamente dar um toquinho de canhota, por cobertura, vencendo o goleiro Jean-François Gillet.

A equipe biancorossa terminou na lanterna da competição, com apenas cinco vitórias e 24 derrotas. Para se ter uma ideia, o segundo time com mais derrotas foi a Udinese, com 18. Para completar a tragédia, os galletti tiveram o ataque mais inoperante, com 24 gols marcados, e a defesa mais vazada, com 68 tentos sofridos.

Em 2001, após os atentados de 11 de setembro, o preconceito religioso contra o islamismo cresceu escandalosamente, em uma escala global. Neqrouz acabou se envolvendo em polêmica ao comentar sobre o ocorrido. “Estou com [Osama] Bin Laden, mas também contra ele. O certo é que ele é o único muçulmano que, sozinho, conseguiu enfrentar a América. O terrorismo é fruto do delírio e da loucura, certamente não da cólera de quem vê seus filhos morrerem de fome. Seus motivos estão certos, mas certamente não concordo com seus métodos, não concordo com o terrorismo. Apenas digo que o Ocidente esquece que os Estados Unidos bombardearam e mataram pessoas inocentes no Iraque. Se todos os dias mostrássemos, apenas por um minuto, o que acontece com os palestinos, com as crianças iraquianas que estão morrendo de fome por causa do embargo, talvez compreendêssemos melhor como vivem nossos irmãos muçulmanos”, disse.

Para o marroquino, o futebol só vinha depois de seus deveres espirituais, cujas orações tinham horários específicos. Em campo, antes de o juiz dar o apito inicial, saudava Alá, com as palmas voltadas para cima. Depois de um episódio em que sua churrasqueira pegou fogo, interpretou aquilo como um sinal divino e decidiu tornar-se vegetariano. Durante o Ramadã, praticava o jejum por longos períodos sem se queixar. “Para mim não é um sacrifício. É a minha fé em Deus que me dá forças para continuar. Ao ler o Alcorão três horas por dia, encontro forças para enfrentar melhor a vida. Um mês de jejum é pouco se pensarmos nas muitas crianças que não têm o que comer o ano todo”, comentou. Quando ele chegava a esta época com alguma lesão ou desconforto, não podia recorrer aos medicamentos por via oral devido às restrições da prática. Restava-lhe então a opção de pedir que os médicos do Bari o tratassem apenas à base de laser e exames de imagem.

Com o desafio de jogar a Serie B, o Bari, agora comandado por Arcangelo Sciannimanico, elegeu Neqrouz como seu novo capitão. Os galletti tiveram um desempenho regular, chegaram a trocar de treinador (Attilio Perotti assumiu) e terminaram na sexta posição, com uma distância considerável, de 14 pontos, para o quarto colocado Empoli. Na temporada seguinte, Rachid trocou o número de sua camisa: foi do 28 para o 5. Com resultados irregulares, Perotti foi mandado embora e, para o seu lugar, assumiu Marco Tardelli.

Neqrouz ficou conhecido por jamais aliviar na marcação (Allsport)

Durante a 26ª rodada, num dérbi fora de casa contra o Lecce, foi registrado um epílogo para lá de agitado. Membros das duas comissões técnicas trocavam ofensas nos túneis dos vestiários e o atacante Gionatha Spinesi chegou a acertar um soco em um fotógrafo do time rival. Neqrouz, claro, não ficou de fora do tumulto e chegou a perseguir o zagueiro giallorosso Bruno Cirillo, que havia lhe provocado durante a partida inteira com insultos racistas. “Cirillo me ofendeu muito e são coisas que você não espera de um jogador de nível internacional. São frases que não o honram”. Se o treinador Tardelli e até mesmo Spinesi não o tivessem contido, a confusão teria sido ainda maior. No final, o Bari teve de se contentar com um insosso 11º lugar na Serie B.

Um fim de carreira abrupto

A temporada 2003-04 marcou a despedida de Neqrouz dos gramados. O roteiro foi melancólico: ele não jogou uma partida sequer devido às sequelas provenientes de uma lesão no joelho. Mesmo fora de combate, colaborou exercendo o papel de “segundo treinador” todos os domingos, incentivando seus companheiros. O Bari acabou na 21ª colocação e perdeu o playout para o Venezia. Os galletti deveriam ter sido rebaixados, mas acabariam realocados na Serie B após o Ancona ter entrado em bancarrota, remanejando as situações de algumas equipes nas divisões do futebol italiano.

Com o contrato expirado e desejando permanecer no clube biancorosso, Neqrouz expressou que aceitaria renovar seu vínculo com qualquer salário que lhe oferecessem. Mas o treinador, Guido Carboni, vetou a negociação e pôs fim à passagem do marroquino no futebol, após 16 meses convivendo com muitas dores no joelho. Magoado, o ex-defensor deixou a região da Apúlia.

A cidade de Bari significou muita coisa para Neqrouz, para o bem e para o mal. Além do prestígio adquirido em campo, foi lá que nasceu seu filho Christian: o rebento continuou morando no sul da Itália com sua mãe e ingressou nas categorias de base de equipes amadoras, com o sonho de repetir os passos do pai. Também foi lá que ele perdeu seu irmão, atropelado por um trem enquanto atravessava os trilhos de uma estação.

Em agosto de 2004, um mês depois de ter se aposentado, acabou preso. Por volta das cinco horas da manhã, ele entrou em um bar na orla de Bari, acompanhado de um amigo. O responsável pelo estabelecimento disse que era impossível servi-los, pois já estava fechando. Neqrouz, que se encontrava em estado de embriaguez, se enfureceu e começou a destruir o local, danificando os banheiros e derrubando as mesas. Quando as autoridades chegaram, o marroquino resistiu e acabou sendo contido, para depois ser conduzido à delegacia e ter sua prisão decretada. Quando foi liberado, foi obrigado a permanecer em casa das 22h às 8h.

Defensor carrancudo e engajado em questões sociais, especialmente na causa palestina, Rachid Neqrouz desde cedo demonstrou seu caráter forte e irritadiço. Respeitado no Marrocos pelas duas Copas do Mundo disputadas e pela carreira internacional construída, foi um símbolo do Bari por sua tenacidade e pelas atitudes exageradas. Sempre titular dos galletti, entrou em campo 175 vezes pelo clube apuliano, sendo 105 em compromissos pela Serie A, e marcou seis gols. Além de zagueiro, era capaz de exercer a função de líbero e de atuar em ambas as laterais quando necessário. E até usava os dedos, se precisasse.

Rachid Neqrouz
Nascimento: 10 de abril de 1972, em Errachidia, Marrocos
Posição: zagueiro
Clubes: Mouloudia Oudja (1993-94), Young Boys (1994-97) e Bari (1997-2004)
Seleção marroquina: 52 jogos e 3 gols

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