Se não é com emoção na fase de grupos, não é Itália. Na Copa do Mundo de 1994, os azzurri levaram essa máxima bem a sério e viveram um drama no Grupo E, que terminaria com quádruplo empate entre as seleções, com 4 pontos. Depois de derrota para a Irlanda, numa péssima exibição, os italianos se recuperaram contra a Noruega, apesar de um enorme sufoco e de muitas adversidades. Contra os nórdicos, precisaram superar a lesão de um dos pilares do elenco e a ameaça de crise entre seu maior craque e o técnico Arrigo Sacchi. Pior: tudo isso com dez jogadores em campo, devido à primeira expulsão de um goleiro na história da competição.
Pressionada pela derrota para a Irlanda, no Giants Stadium, onde também enfrentaria a Noruega, a Itália precisaria ao menos empatar para se manter viva na Copa do Mundo. Assim, Sacchi efetuou três mudanças no onze inicial: mudou todo o lado direito de seu 4-4-2, sacando o lateral Mauro Tassotti e o ponta Roberto Donadoni, seus ex-comandados no Milan, para dar espaço a Antonio Benarrivo e Nicola Berti. Na meia esquerda, quem perdeu o lugar foi o também ex-rossonero Alberico Evani. O Profeta de Fusignano gostou de ver o atacante Giuseppe Signori por ali, contra os irlandeses, e lançou Pierluigi Casiraghi como companheiro de Roberto Baggio mais à frente.
A Noruega, por sua vez, voltava aos Mundiais após uma ausência de quase 60 anos. Sua primeira e – até então – única participação no torneio havia sido em 1938, quando fez apenas uma partida e foi derrotada justamente pela Itália, que seria bicampeã na França. Nos Estados Unidos, os escandinavos estrearam com uma vitória magra sobre o México e ratificaram que o trabalho de Egil Olsen, iniciado em 1990, era mesmo sólido. O treinador era conhecido por montar defesas muito fortes, incentivava o jogo sem bola e privilegiava a força física, além das jogadas aéreas.
Além da consistência do trabalho de Olsen, que durou até 1998, com mais uma classificação para Copa do Mundo, a Noruega tinha uma geração talentosa, com vários atletas que atuavam em campeonatos fortes, especialmente a Premier League. Curiosamente, também contava com muitos jogadores com parentesco com peças que também vestiriam a camisa dos leões. No elenco de 1994, havia Jostein Flo, irmão de Tore André Flo; Roger Nilsen, irmão de Steinar Nilsen; Alf Inge Haaland, pai de Erling Haaland; Erik Thorstvedt, pai de Kristian Thorstvedt; Goran Sorloth, pai de Alexander Sorloth; e Lars Bohinen e Sigurd Rushfeldt, respectivamente pai e primo de segundo grau de Emil Bohinen.
Em East Rutherford, os primeiros minutos da Itália foram muito superiores a toda a partida contra a Irlanda. Os azzurri se movimentavam muito mais, trocavam passes e mandavam no jogo, fazendo a Noruega ficar encurralada em seu campo de defesa e buscando evitar, através de Henning Berg e Rune Bratseth, a penetração dos italianos na grande área. Naquele período da peleja, a equipe de Sacchi levou perigo com chutes de média distância de Baggio e Casiraghi. Berti, numa cabeçada fulminante após cobrança de escanteio de Signori, ainda obrigou o goleiro Thorstvedt a efetuar uma belíssima intervenção.
Até que, aos 21 minutos, tudo mudou. A Noruega encaixou uma troca de passes esperta e Benarrivo não seguiu a defesa italiana, que saiu em linha para deixar Oyvind Leonhardsen em impedimento – um movimento clássico dos times de Sacchi. Assim, o meia ficou na cara do gol após a enfiada de Erik Mykland e Gianluca Pagliuca teve de abandonar sua baliza às pressas. O arqueiro se atirou na trajetória da bola e conseguiu bloquear o chute do adversário. Porém, o fez com o braço e na meia-lua. O árbitro Hellmut Krug viu tudo e mostrou o cartão vermelho direto ao arqueiro, que se tornou o primeiro atleta da posição a ser expulso em uma Copa do Mundo.
Sacchi, então, precisou pensar rapidamente em quem sacaria para colocar o goleiro Luca Marchegiani. E sua escolha recaiu sobre Robi Baggio, dono da Bola de Ouro e do prêmio de melhor do mundo da Fifa em 1993. No momento em que foi anunciada a substituição, as câmeras focalizaram o craque, que balbuciou a seguinte frase: “esse cara está louco”. Certamente, foi a mesma reação que milhões de italianos tiveram naquela noite de início de verão na Europa.
Baggio deixou o campo caminhando, nitidamente frustrado. Cabisbaixo e consolado por Luca Bucci, terceiro goleiro, Il Divin Codino passou diretamente pela comissão e foi sentar no banco de reservas sem cumprimentar Sacchi, que se “refugiou” atrás de auxiliares. Obviamente, aquilo gerou um verdadeiro rebuliço na seleção.
Inicialmente, o craque se sentiu traído por Sacchi, um dos poucos técnicos com o qual havia desenvolvido uma boa relação. Porém, nos bastidores, conversas com pilares da Nazionale, como o capitão Franco Baresi – que, após o jogo, defenderia a escolha do treinador – e com o próprio comandante foram vitais para abaixar a fervura. Na véspera do decisivo duelo com o México, Baggio afirmou em entrevista que não tinha problemas com o Profeta de Fusignano.
Sacchi, por sua vez, teve de explicar a aparentemente insólita mudança para a nação. O treinador definiu a troca como de caráter estritamente técnico. “Eu precisava de alguém que corresse muito [Baggio, vítima de diversas lesões ao longo de 1993-94, lidava com uma inflamação no calcanhar] e de um centroavante que, sem bola, atacasse os espaços e ’empurrasse’ os adversários para trás, dando profundidade ao time”, declarou o comandante, ao ilustrar as motivações para sacar Robi e não Casiraghi.
“Os noruegueses compactavam as linhas e esse movimento era fundamental para afastar os zagueiros dos meio-campistas. Assim, poderíamos forçar brechas na retaguarda e acionarmos nossos jogadores nas entrelinhas”, completou o técnico azzurro. No fim das contas, a Itália sairia vencedora daquele duelo tático entre Sacchi e Olsen.
Mesmo com um a menos, os italianos continuaram a ditar o ritmo do jogo e tentavam fustigar a defesa da Noruega – que respondia com rispidez, com nas duras chegadas de Stig Inge Bjornebye e Berg sobre Berti e Casiraghi, respectivamente. Signori dava trabalho pela esquerda, mas nenhum gol saiu na etapa inicial.
O segundo tempo da Itália começou com mais um problemaço. Aos 49 minutos, Baresi sentiu dores no joelho e teve de ser substituído por Luigi Apolloni – curiosamente, Lorenzo Minotti, reserva imediato do líbero rossonero, não sairia do banco durante toda a Copa de 1994. O capitão lesionou o menisco e, no dia seguinte, operou o joelho. Todos achavam que sua participação no torneio havia acabado, devido ao tempo de recuperação, e isso foi um baque para a Nazionale. Entretanto, os azzurri resistiram ao contratempo e o craque ainda disputaria a decisão, com direito a performance de gala contra o Brasil.
Enquanto Baresi ainda estava sendo atendido pelos médicos da Itália e a substituição não havia sido realizada, a Noruega levou perigo com uma de suas especialidades: o jogo aéreo. Flo mandou a bola na área e Mini Jakobsen, que rendera Rushfeldt, cabeceou por cima da baliza de Marchegiani. Mas a resposta azzurra seria dada um pouco mais tarde, e na mesma moeda.
Bastante ativo, Signori começou a cavar faltas pelo lado esquerdo e a atormentar Haaland, que recebeu cartão amarelo aos 68 minutos. Em seguida, Sacchi trocou Casiraghi por Daniele Massaro, na tentativa de dar mais gás ao ataque. Nem precisou. Na cobrança do tiro livre, Signori colocou a bola na cabeça de Dino Baggio, que desferiu uma testada violenta e superou Thorstvedt. Por linhas tortas, constaria na súmula, na autoria do gol decisivo da partida, o sobrenome em torno do qual houve tanto alvoroço pouco antes – e vale lembrar que os dois ex-jogadores não têm parentesco algum.
Com a vantagem no placar, a Itália continuou melhor no Giants Stadium – e deve isso a Signori. Com a saída de Robi Baggio, o atacante da Lazio assumiu a responsabilidade no ataque azzurro e fez de tudo um pouco em campo ofensivo. Após a assistência, ainda deixou dois adversários para trás e efetuou um arremate bastante perigoso, que passou à direita de Thorstvedt. Já a Noruega respondeu com um cruzamento na área e até balançou a rede com Leonhardsen, mas quando o jogo há estava parado porque a bola saíra pela linha de fundo. Perto do apito final, Jakobsen ainda disparou um forte chute, que terminou encaixado com segurança por Marchegiani.
No dia seguinte, o México também reagiu contra a Irlanda e o Grupo E da Copa do Mundo ficou em situação curiosa: todos os times tinham 3 pontos, sendo que mexicanos e irlandeses estavam nas duas primeiras colocações porque haviam marcado duas vezes – contra uma de Itália e Noruega. A rodada final seria de tirar o fôlego, mas a chave não sofreria alterações, já que tivemos empates nos dois jogos restantes.
Pela primeira vez na história, quatro seleções terminaram a fase de grupos do Mundial em igualdade na pontuação. E só os noruegueses, coitados, é que seriam eliminados, porque só marcaram um golzinho em sua participação. Classificada como uma das melhores terceiras colocadas, a Itália enfrentaria a Nigéria nas oitavas. E, dali em diante, Robi Baggio brilharia tão intensamente quanto a careca de Sacchi sob o sol escaldante do verão norte-americano.
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Itália 1-0 Noruega
Itália: Pagliuca; Benarrivo, Costacurta, Baresi (Apolloni), Maldini; Berti, Albertini, D. Baggio, Signori; R. Baggio (Marchegiani), Casiraghi (Massaro). Técnico: Arrigo Sacchi.
Noruega: Thortsvedt; Haaland, Berg, Bratseth, Bjornebye; Flo, Bohinen, Mykland (Rekdal), Leonhardsen, Rushfeldt (Jakobsen); Fjortoft. Técnico: Egil Olsen.
Gol: D. Baggio (69′)
Cartão vermelho: Pagliuca
Árbitro: Hellmut Krug (Alemanha)
Local e data: Giants Stadium, East Rutherford (Estados Unidos), em 23 de junho de 1994