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Dybala passa de herdeiro a dispensável numa Juventus de laços frágeis

A festa de despedida para Gianluigi Buffon fora realizada. A Juventus colocara mais um troféu italiano no museu do Allianz Stadium, mas a Liga dos Campeões permanecia exposta em outro país. O que fazer para que a equipe duas vezes vice-campeã europeia em quatro anos finalmente atingisse a meta? Na reunião com Andrea Agnelli e Pavel Nedved, os dirigentes queriam sacudir o ambiente e dar uma nova motivação ao elenco. Inicialmente a ideia era sondar o interista e algoz Mauro Icardi; a maluca, desvairada, era contratar Cristiano Ronaldo. O responsável pela loucura foi Fabio Paratici.

Paratici era o titular da diretoria há três meses. Em janeiro de 2019, a Juventus tinha de ir ao mercado para suprir algumas necessidades. O time de Massimiliano Allegri falhava em atingir o estimado com o acréscimo de Cristiano Ronaldo devido ao meio-campo insosso, carente de estabilidade. Além disso, tinha de pensar em um reforço para a defesa devido à fragilidade do corpo de Giorgio Chellini e o futebol esquecível de Leonardo Bonucci.

Caso você não saiba, o goleiro Wojciech Szczesny apresenta um programa chamado Prosto w Szczenę. Entre os convidados da primeira temporada, disponível na íntegra no YouTube, estão Robert Lewandowski e Arkadiusz Milik. A produção polonesa aproveitou o vínculo do goleiro para entrevistar juventinos: Chiellini, Sami Khedira, Aleksandra Sikora e o próprio Paratici.

Durante a conversa sobre o trabalho de olheiro, o atual diretor da Juve afirmou que “você precisa contratar para melhorar o time, e não para descobrir talentos” e que, quando foi funcionário da Sampdoria, geralmente observava o extracampo de reforços em potencial – “caráter, ambição, se ele é sério [no trabalho dele], se os pais e companheira estão envolvidos na carreira”.

Transcrevo um diálogo que chamou minha atenção:

Paratici: “Zagueiro central é [um elemento] raro. O futebol está mudando e os times querem jogar melhor. Isso é bom para o público, mas perdemos um pouco o senso de defender, de brigar – como Chiellini. Esse tipo de jogador [o novo zagueiro] é difícil de encontrar. Se quiser comprá-lo, é muito complicado.”

Szczesny: “Há 10, 15 anos, o perfil típico de zagueiro seria Chiellini. Agora é John Stones. Não digo que é errado; apenas que ele é mais bonzinho, menos agressivo e confortável com a bola no pé.”

Paratici: “Temos que entender para onde o futebol está indo.”

A lista sem Dybala

A janela de inverno estava praticamente no fim e a Juventus ainda buscava reforços no mercado. Depois de tantos anos como braço direito de Giuseppe Marotta, Paratici trabalhava sozinho. A exoneração do diretor, atualmente na Inter, colocou um holofote no rosto do novo dirigente, que teria de lidar com expectativas altas pelo trabalho vindouro e pela aquisição de um tal de Cristiano Ronaldo, que ele próprio sugerira durante o verão europeu. Anteriormente, o bianconero operara de forma branda nos meses de janeiros, contratando Tomás Rincóns e Alessandro Matris – jogadores para preencher lacunas do elenco.

Nedved, Paratici e Agnelli: o futebol está nas mãos deles (Getty)

Em janeiro de 2019, Paratici visitou um restaurante em Milão e deixou uma lista em cima da mesa com os alvos da Juve para a temporada. Entre compras e vendas, lia-se no papel os nomes de Cristian Romero, Merih Demiral, Federico Chiesa, Sergej Milinkovic-Savic, Dominik Szoboszlai, Nicolò Zaniolo e Sandro Tonali, além dos bianconeri Matheus Pereira, Simone Muratore e Miralem Pjanic.

Erro de amador ou golpe no mercado? Creio que essa pergunta pouco influencia o planejamento tampouco o propósito deste texto. Milinkovic-Savic era um interesse antigo da Juve que só não estava em Turim porque a Lazio bateu o pé e não cedeu, a contragosto do jogador, Paratici desejava que Chiesa tomasse o mesmo rumo de Bernardeschi, e Romero era considerado uma carta certa no Piemonte desde os primeiros meses da época 2018-19.

O mês acabou com a venda de um insatisfeito Medhi Benatia para o futebol catari e o retorno de Martín Cáceres – que, honestamente, fez mais companhia aos lesionados entregues ao departamento médico do que foi atleta em campo de facto. As lacunas no elenco seguiram as mesmas, e o grau de explicitação ao largar possíveis assinaturas em local público causa estranheza.

Para outros fins, e como foi bastante comum na Era Marotta, o cartola conversa muito pela imprensa. Entrevistas pós-jogo, flashes, televisão, jornal. O diretor de futebol está bastante presente como o principal elo entre o conselho da Juventus, cada vez mais fechado nos três poderes representados por Agnelli, Nedved e Paratici, e o mundo. Em fevereiro de 2019, a Gazzetta dello Sport publicou um longo bate-papo no qual o diretor garantiu a permanência de Allegri e, entre tantos assuntos, falou um pouco sobre Dybala.

“Dybala fica. Só sai da Juve quem quiser. Repito: é complicado melhorar nosso elenco. [Melhor que ele] talvez Messi, e fico em dúvida sobre Neymar. Dybala é aquele com quem você joga até o fim. Quando você olha para a equipe, você encontra a marca de Dybala”.
Fabio Paratici

As ações de Paratici têm sido consistentes em relação aos discursos. Demiral e Romero assinaram nesta janela de 2019-20 enquanto a Juventus buscou ativamente Chiesa, que estava muito interessado na mudança, apesar dos bloqueios da Fiorentina. Zaniolo viu seu nome envolvido numa troca que levaria Higuaín à capital e Pjanic segue desejado por quem tem dinheiro.

Allegri e diretoria se reuniam todo final de época para estabelecer novos objetivos e discutirem mudanças. A posição dele ficou em xeque em três oportunidades nos últimos quatro anos e, a um de vencer o novo contrato, os dois lados optaram por seguir caminhos separados.

Vencer é a única coisa que importa

A Juventus se apropriou tanto do lema de Gianni Agnelli que a frase motivacional abocanhou o clube. Se Paratici tem nível de consistência, os patrões sentem o gosto do próprio passado. O apego ao que aconteceu ficou nos anos que não voltam. A agremiação quis tomar as rédeas do que chama – ou entende como – evolução de organização. Ou seja, um time gerido para prover capital, ser financeiramente sustentável e, no fim do dia, competir no que de fato ele é: um time de futebol.

As decisões por plusvalenza (o lucro na venda dos jogadores) são o último ponto do raciocínio liberal bianconero: com esse ciclo bem delineado, o emocional fica à margem das cifras. As mudanças promovidas desde 2014 apontam justamente para essa direção financeira: aproximação do mercado comercial americano, construção progressiva do complexo J-Village, mudança de logo para tipificar a marca em formato global e a exclusão das listras na camisa caseira pela primeira vez em 116 anos de história.

Novo logo, nova identidade visual, novo tudo: para Agnelli, “mude antes de ser obrigado” (Interbrand)

A controversa opção de alteração do emblema, aliás, foi bancada pelo ponto de vista mercantil: estar à frente dos rivais, influenciar o mercado e mudar a filosofia de visão unilateral, colocando a Juve como uma marca cool, fashion, além-campo. Em 2016, o presidente declarou que o clube não é somente um clube, “mas sim um negócio grande em uma das poucas indústrias que está em expansão”. A afirmação, proferida em entrevista à Sky Sports, referia-se às características de gestão distinta às dos anos 1990.

“Os torcedores da Juventus” é uma expressão que abarca muita gente. O fato é que uma parcela significativa de apoiadores da Velha Senhora reclamou das listras faltantes, outra do logo e uma sobreposição chiou com a venda dos naming rights para a Allianz. Este texto não é uma crítica integral ao modelo de gestão, uma vez que tem se mostrado exuberante – independentemente da ausência do título continental; o clube consegue garantir competitividade nesse torneio. A construção do estádio e a negociação com a seguradora, que permite que a agremiação monetize com produtos e serviços, contribuem para a eficiência de uma empresa com mais de 700 funcionários.

Sinal piscante?

O Calcio e Finanza alerta para a saúde financeira da Juventus para 2019-20. A troca com o Manchester City envolvendo João Cancelo e Danilo é praticamente equivalente na despesa salarial, porém, o clube dá uma suspirada com vantagens na amortização do montante referente aos jogadores e à plusvalenza – valor que se obtém subtraindo o preço da venda pelo custo proporcional da compra. Após essa negociação, o índice de relação entre custo da equipe pela receita cai para 75% – permanecendo, portanto, acima dos 70%, o que denota tranquilidade gerencial.

O cálculo realizado pelo site italiano, contudo, é meio grosseiro. As amortizações são somadas às despesas operacionais e essa conta pode resultar em conclusões imprecisas, uma vez que dívidas contábeis são diferentes de fluxo de caixa. Ademais, o balanço financeiro da Juventus – e das outras equipes da Serie A, analisadas em tantos momentos pela publicação – não divulga os salários dos jogadores. Os valores usados vêm de fontes de informação dentro das equipes. De qualquer forma, usemos os meios disponíveis.

Precisando vender, o saldão está aberto. Juan Cuadrado e Blaise Matuidi tiveram saídas especuladas, Mario Mandzukic despertou interesse em Bayern de Munique, Borussia Dortmund e Manchester United, Daniele Rugani e Sami Khedira foram apontados como reforços do Arsenal (o que não se concretizou) e Mattia Perin falhou nos exames do Benfica – mas deve sair em breve. Fora Cancelo, a outra venda concretizada foi a de Moise Kean ao Everton.

O cenário de uma potencial saída forçada de Dybala não é único para acalmar a maré. A venda dele por, digamos, 80 milhões de euros colocaria o indicador nos eixos, bem como a permanência do argentino e as cessões de Rugani e Mandzukic, ou Rugani e Khedira, ou Rugani e Perin, ou Perin e Mandzukic, ou a troca de Dybala por Icardi… As possibilidades são muitas.

Empresa

Finalmente tive a chance de conhecer Turim – só não consegui assistir o clássico contra o Torino porque o jogo foi adiantado para contemplar a peregrinação em homenagem aos 70 anos da tragédia na Basílica de Superga. O primeiro choque foi a ausência do futebol pela cidade, exceto por duas pichações: “Juve merda” e “Toro merda”, nas proximidades do centro histórico. É, provavelmente, o local que visitei com a menor influência cultural fora do dia de jogo – o outro extremo é Split, na Croácia. O segundo choque foi no estádio.

As fotos motivam, a memorabilia incentiva a visita, a oportunidade de pisar no gramado é tentadora. Mas a visita ao Allianz Stadium – em maio último – foi uma experiência fria. O passeio é sistemático e restritivo. O museu tem itens muito interessantes, mas é pequeno. É possível que a minha expectativa tenha sido elevada porque fui ao Estádio da Luz, de visita perfeita, dias antes? Sim. Só que, enquanto o Benfica dá liberdade ao cliente simpatizante para que ele possa tornar-se um fã, a Juve trata o torcedor como mais um. O português te faz especial; o italiano te faz um serviço.

Dybala e banco foram como carne e unha na última temporada (Getty)

Pela TV, o hino é lindo, as imagens da torcida são bacanas e a atmosfera do estádio é acalentadora. Mas o que é a Juventus para o torcedor durante essa gestão? Voltemos ao primeiro parágrafo. Qual foi o tratamento dado para Buffon? E para Claudio Marchisio, o último bianconero da base a ter regularidade no time titular? Alessandro Del Piero, também: subtraído da equipe enquanto ainda tinha algo para dar ao elenco. Só que não precisamos chegar aos ídolos históricos.

Pelas mais diversas razões, jogadores favoritos foram tratados de forma semelhante: de Arturo Vidal a Carlos Tévez, passando por Fernando Llorente e Paul Pogba. A ascensão incrível de Kean emparelhada com a empolgação da arquibancada não bastou para que o jovem de 19 anos permanecesse no elenco. Podemos procurar e arranjar explicações positivas para a transferência – último ano de contrato, renovação dificultada pelo agente Mino Raiola e tempo de jogo –, mas limito-me à negativa: a identidade desencaminhada por 27 milhões de euros.

Rugani, Khedira e Cuadrado têm seus fãs. Mandzukic, mais velho, também. Mas Dybala, 25 anos, segue a linha de Kean. Porque assumiu a camisa 10, foi colocado como herdeiro de Del Piero pelo próprio clube, ouviu a garantia de permanência depois de uma temporada ruim e tem sido empurrado para fora tal qual Gonzalo Higuaín. A diferença entre os argentinos é que o mais jovem desenvolveu forte ligação com a torcida. E, acima disso, ele é um dos senatori, líderes do elenco.

Chiellini é o único integrante titular que resta daquela final europeia de 2015. Allegri não teve trabalho fácil para reformular o time religiosamente a cada começo de temporada, e se o modelo for mantido, Maurizio Sarri terá as mesmas dificuldades.

O bianconero é tratado como empresa, e a firma não permite o apego. Assim sendo, escanteia ou se livra dos queridinhos na primeira oportunidade. Enquanto a diretoria busca Leonardo Bonucci no ano seguinte à venda conturbada para o Milan, os ultras reclamam do aumento progressivo no valor dos ingressos para a temporada – ou tantos outros torcedores que ficaram em casa ao invés de pagar o mínimo de 160 euros para assistir a partida contra o Parma.

As discussões parecem opostas, mas são permeadas por um conceito único: os laços são frágeis. A falha da Juventus é decepcionar em seu papel de conectora de grupos distintos com a finalidade de torcida mútua. O clube é uma comunidade, a comunidade precisa ser representada e a representação é feita por, mas não tão somente, pessoas equivalentes às que torcem. Tudo bem que jogadores passam e a equipe fica, porém, o bianconero rompe vínculos em rotação equiparável a uma multinacional.

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1 Comentário

  • Excelente texto, bem explicativo no que se trata a forma com que a Vecchia Signora é administrada atualmente por Agnelli e cia… Ao meu ver esse tipo de gestão no futebol é muito favorável ao sucesso, ao bussines e dinheiro € , porém as suas raízes, origens e respeito às suas bandeiras, me refiro a jogadores ficam em segundo plano nitidamente, a mudança radical do escudo, a novidade na camisa sem as tradicionais listras verticais em bianconeri nos faz pensar e temer o que virá de novidades ainda pela frente. Espero que nessa nova temporada 19/20 o Sarri possa acertar esse time e fazer uma Juve mais ofensiva e que busque mais o caminho dos gols pois temos lá na frente o senhor das finalizações o CR7 e é preciso aproveitar e tirar o máximo do seu potencial enquanto temos ele a nossa disposição. #ForzaJuve.

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