Os cafés de Budapeste reuniam a nata pensante daquele que se tornaria um popular esporte global. O futebol tipo exportação da Inglaterra ganhou nova roupagem na Escócia e ao longo da margem do rio Danúbio, da Alemanha até o deságue na Ucrânia. Enquanto os ingleses rejeitavam evoluções no jogo, o multiculturalismo do Império Austro-Húngaro contribuía para o desenvolvimento de novos métodos: um estilo mais rápido e curto, com passes. Eventualmente mais agradável para o público em relação ao conservador inglês, de dribles e chutões.
É possível – e também é costumeiro – traçar uma reta evolutiva do futebol a partir da Holanda de 1974. A ruptura provocada pelo treinador Rinus Michels foi essencial. O jogo meticulosamente preparado a partir de questões técnicas, táticas e físicas foi alçado ao purismo estético: a vitória tinha de ser bonita. Contudo, Michels e aquele Ajax eram frutos de seus antecessores. Claro, os holandeses levaram a ideia a um patamar inimaginável, mas muitos intelectuais danubianos trabalharam arduamente para buscar soluções novas e atingir sucesso (com beleza) no período entreguerras, de forma singular e oposta à tendência europeia.
A história é fadada ao esquecimento à medida que as gerações passam. A vida de Ernő Egri Erbstein está intrinsecamente ligada à história do futebol italiano e da cidade de Turim, além de se relacionar de forma íntima com a luta antifascista e o Holocausto. O judeu húngaro desafiou o regime de Benito Mussolini e sobreviveu ao campo de concentração para arquitetar um dos maiores e melhores times de que se tem conhecimento.
Budapeste, parte I
Erbstein nasceu longe de Budapeste, mas a atual capital da Hungria se tornou sua casa ainda na infância. A família deixou Nagyvárad (hoje Oradea, na Romênia) na virada do século 20 para que ele e os irmãos mais novos – Sándor e Károly – tivessem mais oportunidades num dos polos comerciais do Império. Budapeste era um caldeirão multicultural e os imigrantes transformaram a cidade num paraíso para esportistas. Onde havia lugar vazio e verde, algo podia ser disputado.
Erno, um jovem alto, era um atleta que impressionava, mas não a ponto de representar o grande time da época – o MTK, fundado pela burguesia de comerciantes judeus e decacampeão consecutivo entre 1914 e 1925. O talento dele estava no nível do BAK, equipe formada por membros dissidentes do MTK e que no melhor momento da história foi apenas um time de meio de tabela na primeira divisão. A estreia dele aconteceu numa derrota para o Törekvés por 7 a 1, em 1916.
O BAK não tinha o mesmo foco dos holofotes dados aos clubes grandes, porém o estilo de jogo de Erbstein chamou a atenção da imprensa por grande parte de sua carreira na Hungria. Por um lado, pelo fato de ser carismático e um líder nato, ainda aos 20 anos; por outro, pela reputação de ser um futebolista duro demais – e até agressivo, algumas vezes. Em 1922, por exemplo, ele foi o tema do relato do jornal Nemzeti Sport sobre o jogo entre BAK e BEAC. O texto contava sobre o “infame jogador” que “pulou com os dois pés no estômago do primeiro volante Sághy”. A falta bruta no atleta do time universitário de Budapeste envolveu os oficiais no caso porque o irmão da vítima, policial, recomendou que Erbstein fosse processado.
O futebol húngaro era semiprofissional à época. Os salários eram escassos e seletivos: somente os craques recebiam honorários. Assim, concomitantemente ao esporte, Erbstein começou a trabalhar como corretor. Em 1922, concordou em sair de Budapeste por duas razões principais: a inquietude com mais um artigo que o criticava por uso exacerbado de força, dessa vez num jogo contra o MAFC, e o antissemitismo em vertiginoso crescimento na capital.
A história de perseguição aos judeus na Europa Central pode ser tracejada desde a Idade Média, mas, em Budapeste, um caso ficou bastante conhecido: em 1882, um grupo de judeus foi acusado de assassinar e beber o sangue de uma menina cristã de 14 anos no escândalo chamado de caso Tiszaeszlár. Os ataques contra judeus se tornaram mais frequentes à medida que os rumores corriam pelo império. A xenofobia era alimentada por todos os lados: mitos que eles eram responsáveis por sabotar o esforço imperial na Primeira Guerra – apesar dos 10 mil soldados judeus que morreram nas trincheiras –, por lucrar secretamente com o conflito e tramar revoluções socialistas. O preconceito era tanto que o método numerus clausus foi usado como aparato de segregação quando os húngaros limitaram, no fim de 1920, a quantidade de universitários de grupos étnicos com propósito de barrar a influência dos judeus na política e cultura do país.
Assim, na primavera de 1922, Erbstein optou por mudar-se para Arad. A ideia era viajar entre a cidade romena e Budapeste com a esperança de conseguir mais tempo de jogo em dois clubes. O futebol romeno oferecia um salário melhor aos jogadores húngaros, todavia, a mudança pode ser entendida pelo lado sentimental: atuar pelo Hakoah era uma oportunidade de apreciar o valor moral da fisiologia que ele tanto adorava. Décadas depois, a filha mais velha de Erno, Susanna, disse que o pai não tinha lado político, entretanto, direta ou indiretamente, as ações dele mostram uma escolha bem firme.
Na Primeira Guerra, o jovem liderou um regimento que, supõe-se, atuou contra a invasão italiana. Na sequência, ele se juntou aos revolucionários Crisântemos para derrubar a monarquia austro-húngara. Escolher o Hakoah também mostra uma decisão bem concreta sobre a moral dele: uma rede de clubes – com o de Vienna foi o mais famoso – de sionistas politizados, orgulhosos das próprias heranças e que queria espalhar a mensagem que os judeus eram esportistas fortes e talentosos, desmistificando o estereótipo de fraqueza física e mental. O Hakoah, com a Estrela de Davi no peito, atuando para um público predominantemente judeu e representado exclusivamente por judeus, era uma mensagem política.
O bate e volta entre as cidades durou pouco. A Federação Húngara descobriu o plano dele e ele tomou conhecimento da ação quando chegou à Budapeste com o contrato bloqueado com o BAK. Quando a suspensão foi retirada, em setembro de 1922, foi expulso logo no jogo do retorno. O ponto alto da carreira internacional de Erbstein aconteceu quando ele foi chamado para compor a equipe reserva da Hungria durante um treinamento da seleção, que se preparava para um amistoso contra a Romênia.
Os relatos sobre futebol são cessados por quase dois anos, talvez por conta do namoro entre Ernő e Jolán Huterer – a paixão sugere que ele ficou mais calmo dentro de campo e, assim, a imprensa parou de pegar no pé dele. Eles são retomados em meados de 1924, quando Erbstein conseguiu um contrato no Fiume. A cidade (atualmente Rijeka, na Croácia) era outra panela de pressão. A região começou o século sob domínio da Áustria-Hungria, e viu Itália e Iugoslávia lutando por seu território no pós-Primeira Guerra. Depois, quando o irredentismo italiano (ler mais em Armada iugoslava em Trieste) estourou, nacionalistas tomaram a cidade e essa marcha foi tratada como símbolo do patriotismo do povo italiano pelo Partido Fascista.
Oficialmente, Erbstein era o único estrangeiro do Olympia ainda que Marcello Mihalich, Andrea Kregar e outros de sobrenome com ascendência croata ou eslovena, como Cusman e Sincich, fizessem parte do time – o que mostrava como o antigo império estava diluído naquele território. O clube disputava a segunda divisão italiana, ainda regionalizada. A época foi bastante promissora, afinal, o Olympia foi um dos times empatados na liderança do Grupo D. Erbstein era o ponto focal da equipe, ditando o ritmo do jogo sobretudo pela inteligência da escola danubiana, de movimentos dinâmicos e controle da bola.
O jogador criticado na Hungria era incrivelmente elogiado como “verdadeiro organizador” num time que tinha Mario Varglien, médio futuramente pentacampeão com a Juventus, e Luigi Ossoinach, habilidoso interior esquerdo que fez carreira em Roma. Até quando foi expulso contra o Venezia, Ernő foi enaltecido pela mídia porque estava defendendo a camisa listrada do Olympia. Só que a temporada terminou de forma amarga: o time só terminou empatado na liderança porque o pênalti que ele perdeu no clássico local contra o Gloria impediu o título bianconero. O Olympia perdeu as duas partidas no playoff, ante Udinese e Vicenza. Inicialmente, este segundo conseguiu a promoção, mas foi penalizado devido ao registro irregular de dois jogadores contratados ao meio da temporada. Assim, a Udinese subiu e Erbstein cumpriu o acordo que fez: o de defender o Vicenza em 1925-26.
Aos 27 anos, Erbstein era um dos reforços de Josef Bekey, que convidou alguns húngaros para acompanhá-lo na primeira experiência dele como treinador. Foi inicialmente escalado como centromédio que era e teve seu ápice quando marcou o único gol pelo time no empate contra o Monfalcone. A torcida queria que o técnico aproveitasse a altura do húngaro para escalá-lo como centroavante, função que fingiu ser no Hakoah. O experimento no jogo seguinte foi um fracasso, e o Dolo venceu o dérbi por 4 a 0. Não se sabe ao certo qual foi o fim de Erbstein no clube. Ele não foi escalado nos últimos três jogos do campeonato e é provável que tenha sido ou se desligado da equipe no período que a primogênita Susanna estava para nascer. Não podemos deixar passar, porém, que esse momento era de futebol italiano para italianos por causa da Carta de Viareggio, que baniu a maioria dos estrangeiros do campeonato.
Aproveitando o retorno para a terra natal, Ernő assinou com o Húsos, da segunda divisão, por 14 jogos e partiu para outro desafio. Ele foi convidado pela organização sionista Maccabi para uma digressão na América. O mecenas por trás da ação era o empresário britânico Nat Agar, dono do Brooklyn Wanderers, que viu um potencial enorme no empreendimento depois da bem-sucedida turnê do Hakoah Vienna nos Estados Unidos. Ainda que o futebol húngaro já fosse profissional, o salário que os jogadores receberiam para participar dessa excursão era excelente – entre 150 e 500 dólares. O capitão do Maccabi seria Erbstein.
Conhecimento americano e projeto próprio
Os cafés danubianos, mencionados anteriormente, se assemelhavam às ágoras gregas. Eram os ambientes do intelectualismo e o futebol tinha espaço entre tantos assuntos. Um dos frequentadores desse ambiente era Hugo Meisl, técnico daquele time magistral austríaco na Copa de 1934. Ele dizia que o estilo de ataque britânico era, para os europeus continentais, ruim do ponto de visto estético. O futebol dessa Europa gostava de receber técnicos e jogadores estrangeiros, com ideias diferentes, justamente para contribuir com debates de como o futebol poderia ser jogado: eram pessoas de classes sociais diferentes e bagagens culturais distintas falando sobre o mesmo assunto.
Erbstein levou as influências desse repertório para os Estados Unidos, onde ficou até 1928. De viagem em viagem, sempre um aprendizado, que contribuíram para sua adaptação a um novo futebol. O Maccabi era treinado por um húngaro e estava repleto de jogadores da antiga Áustria-Hungria e, por isso, por ser uma equipe danubiana, tinha muita dificuldade para enfrentar os times estadunidenses posicionados no WM (3-2-2-3). Acostumado a encarar equipes com a mesma ideia de ficar com a bola, Ernő descobria que jogar contra rivais que se posicionavam perto da área para destruir jogadas e achar gols no contra-ataque revelava novas possibilidades de jogo.
Quando confirmou que penduraria as chuteiras, Erbstein foi convidado pela diretoria do Bari para ser o primeiro treinador da equipe – e também deu alguns treinos numa recém-formada Fidelis Andria, também da Apúlia. A Carta de Viareggio de 1928 propôs um novo campeonato. Esta Serie A repaginada e profissional era uma aposta alta para todos: aos clubes de elite, seguindo em posição de disputa de título, aos menores, encorajados para competir em bom nível; e até de forma regional, com os times do Sul ansiosos para causar boa impressão no torneio de domínio do Norte. A igualdade proposta pela competição, aliás, era algo que o próprio regime desejava: uma forma de integrar as regiões por uma mesma Itália e, consequentemente, explorar o futebol como máquina de propaganda fascista.
O técnico Erbstein seguia os caminhos do jogador Erbstein: queria que seus jogadores tivessem a mesma energia que ele quando em campo e estimulava-os com camaradagem acima de tudo. Este segundo ponto era extremamente importante na sua filosofia: sorrir sempre, desistir jamais. Desde o momento que pisou na Itália, o treinador implementou o uso de um sistema de jogo mais direto, de contra-ataque, na contramão do famoso método campeão do mundo com a seleção de Vittorio Pozzo.
“Quando fui contratado pelo Bari, encontrei – tentarei dizer sem ofender – uma variedade de novos jogadores, medíocres em sua maioria. Comecei a ensiná-los o sistema, o qual assumi que seria mais fácil para estes jogadores e também porque requer mais trabalho que classe, no sentido tradicional da palavra” (Erbstein, em 1934)
Dá para associar o projeto do Torino a esse Bari. Os embriões estavam ali: os médios pelos lados, atacando e defendendo de forma igual; um meio-campo robusto; interiores flutuando entre meio e ataque. A dificuldade do Bari, porém, era a de ter jogadores medíocres, como bem disse Erbstein. A complicação aparecia no momento de posicionar Raffaele Constantino, o craque da equipe e convocado para a seleção naquele ano. Se ele ficasse no meio do ataque – foram 19 gols como centroavante nos seis primeiros jogos –, perdia toda a força que tinha pelo lado; se fosse movido para o lado, diluía toda a potência na faixa central. Sem conseguir implementar seu estilo completamente, Erbstein apostou mais no vigor do que no talento. O Bari acabou rebaixado, mas não sem antes atormentar os grandes que visitavam o Campo San Lorenzo e determinar a filosofia motriz do clube: o senso de coletividade e perseverança nascidos com o húngaro.
Erbstein foi trocado pelo técnico-celebridade Josef Uridil, ex-atacante austríaco, e arranjou emprego na Nocerina. O pequeno clube da terceira divisão tinha ambições altas, lutou pela promoção até o fim, porém, optou por não despejar mais dinheiro quando o acesso não veio. Solicitou rebaixamento voluntário para manter as finanças em dia e demitiu o húngaro. Na temporada seguinte, Ernő assumiu o Cagliari numa situação teoricamente mais confortável.
Sardenha, Lucca e o Manifesto da Raça
O Cagliari escolheu Erbstein para treinar a equipe na terceira divisão de 1930-31. O time era bom e se reforçou até demais: o goleiro Angelo Bedini, frustrado reserva da lenda Gianpiero Combi na Juventus; o atacante interior Leopoldo Francovig, do Bari; e Dante Filippi e Ossoinach, ambos querendo retomar a carreira após passagens frustradas por Lazio e Roma, respectivamente. Os treinamentos do húngaro eram obsessivos. O técnico incentivava os jogadores a trabalharem sem a bola para que compreendessem o movimento preferido de cada um dos companheiros. Pensava que, assim, o jogo fluiria de forma natural – e também coordenava os juniores no mesmo sentido. As três vitórias para começar o ano com 10 gols marcados foram uma grata surpresa, mas só em novembro o Cagliari realmente foi tratado como campeão em potencial.
Os sardos disputavam o título cabeça a cabeça com o Taranto, e o confronto entre os dois times aumentou a ansiedade dos envolvidos. Nos dias que antecederam o jogo, Erbstein levou a equipe inteira para a cidadela de Villacidro. Era a ideia precursora do ritiro, concentração revolucionária para a época. Filippi e Francovig decidiram no jogo: um 2 a 0 sólido para confirmar a liderança por três pontos a duas rodadas do fim do campeonato. No playoff (os campeões de cada grupo disputavam o título), uma virada sensacional no estádio de Via Pola, na Sardenha, para festejar a promoção.
A diferença entre o Cagliari e seus rivais da terceira divisão era tanta que foi complicado identificar pontos de melhora. Só que o elenco não era forte para a Serie B e, para piorar a situação, a equipe foi acometida de lesões durante um período da temporada que coincidiu justamente com a dificuldade de manter a consistência fora de casa. Estavam fora o goleiro Bedini; o melhor zagueiro pelo lado, Pasquale Parodi; o motorzinho do meio, Michele Puligheddu; e o atacante Tonino Fradelloni. Erbstein chegou a treinar com o time como centroavante porque não tinha jogador disponível. A decisão do treinador foi fechar a casinha, o que levantou críticas pela imprensa. Encerrar a temporada no meio da tabela causou um efeito semelhante ao da Nocerina: diminuir custos e demissão.
O retorno para o Bari foi bem diferente. O clube estava na Serie A e o elenco estava completamente modificado em relação àquele de três anos antes. Os galos, no entanto, não avançavam: empate em casa contra o Milan depois de estarem vencendo por 2 a 0, e derrotas para Bologna, Alessandria (com gol no último minuto, em casa) e 5 a 1 para o Casale. O jornal La Stampa escreveu que Erbstein, pela primeira vez, não tinha resposta para a falta de confiança do elenco. De nada adiantou reforçar o time com Alfredo Marchionneschi, autor de 52 gols em dois anos pelo Foggia, nem com o atacante Luigi Ferrero, campeão pela Juve em 1926. O Bari aproveitou que a Roma mandou o húngaro János Baar embora e promoveu a mudança no banco.
Ao invés de voltar a trabalhar imediatamente, Erbstein preferiu ficar parado. Ele não queria retornar à terceirona – o Taranto ofereceu-lhe um contrato, que foi gentilmente declinado – e gostaria de manter o alto salário do Bari até o fim do vínculo. O húngaro, então, optou por passar o resto da temporada viajando pela península para fazer contatos, observar jogadores e discutir métodos e treinos. Essa decisão destaca outras habilidades importantes de Erbstein. Ele era um ótimo olheiro e uma excelente pessoa para conversar e se tornar amigo – algo que lhe foi vital para sua sobrevivência na Hungria durante a perseguição nazista.
Rumo ao Norte do país, Erbstein parou em Luca. O presidente Giuseppe Della Santina, encorajado pela influência fascista, queria investir no clube dele para que se tornasse uma força nacional. Ele era torcedor da Fiorentina, mas o magnata da indústria civil nascera na Apúlia, acompanhara Erbstein no Bari e decidiu contratá-lo como técnico da Lucchese. Apesar de não querer retornar à terceira divisão, o comandante teria tranquilidade para colocar em prática o futebol desejado – afinal, era a mesma vontade da diretoria.
“Acima de tudo [técnica e entusiasmo], eles tinham um modo de jogar que era de vanguarda; um estilo de jogo como o dos holandeses – muito à frente do seu tempo. Ele [Erbstein] explorava o ataque amplo, usando todos os cantos do campo. Nós jogávamos um tipo de futebol total. Cada vez que um de nós tinha a bola, nossos companheiros se moviam para dar não uma, mas três opções diferentes” (Raf Vallone, atacante interior do Torino na década de 30)
Essa Lucchese seria conhecida como um time antifascista porque a tática de mercado calhou de buscar jogadores que não conseguiam chegar ao topo das divisões porque eram considerados usurpadores ou não confiáveis pelo totalitarismo. O sustentáculo daquele time foi Bruno Scher, o comunista centromédio elegante de 25 anos que, ainda mais jovem, seria cotado para jogar pelo Milan e defender a seleção italiana. O húngaro não confrontava seus comandados, apesar de ter opiniões categóricas – como na vez em que não contratou um atleta promissor porque ele tinha cabelo comprido e, por isso, “não podia ser um grande jogador” – era super carismático e abusava da psicologia para motivar individualmente cada um dos atletas. Ele era adorado pelos torcedores nativos e os jogadores tinham fé nele.
Aos pés dos Alpes Apuanos, Erbstein insistia que os jovens ficassem depois do treino para praticar o pé fraco. O trabalho minucioso, de simplesmente chutar a bola contra a parede do Campaccio (o campo ruim localizado em Sant’Anna), soa rude e simplório, mas era genuinamente inovador para o tempo. Erbstein foi um técnico preocupado em desenvolver jogadores ambidestros e, em Luca, sempre discutia sobre o jogo com Piero Andreoli, Danilo Michelini e Antonio Perduca, os atletas que assimilaram mais rapidamente aquele estilo rápido. O campeonato foi arrasador por aquela que foi a Lucchese mais dominante da história: em casa, 10 vitórias e um empate; fora, apenas três derrotas. A liderança do grupo F, com 80 gols marcados em 28 jogos, foi conquistada com sete pontos de diferença para o Pisa e, na fase final, o time rossonero venceu cinco de seis jogos para celebrar a promoção.
A conexão entre Erbstein e os jogadores pode ser bem exemplificada com Aldo Olivieri, na Serie B. O goleiro estava sem contrato porque, em 1933, sofreu uma pancada na cabeça aos sair aos pés de um atacante da Fiumana e ficou em coma alguns dias. Ouviu dos médicos que nunca mais poderia retornar aos gramados. Em Luca, treinador e goleiro se aproximaram e os laços floresceram. Olivieri frequentava as aulas de balé de Susanna, a primogênita do chefe, duas vezes na semana para desenvolver equilíbrio e a Lucchese foi o ponto inicial da transição que culminou na titularidade do goleiro na Copa de 1938 – ele continua sendo mencionado como referência da posição nacional, ao lado de Dino Zoff e Gianluigi Buffon.
A Serie B, claro, foi mais complicada, porém, a meta de permanecer na parte de cima da tabela para seguir na divisão com o campeonato unificado foi atingida: uma confortável 7ª colocação, com 40 gols marcados e uma defesa só não menos vazada do que a do Genoa, que foi campeão. A cartada certa para a temporada seguinte foi tirar Vinicio Viani da Fiorentina. O atacante empilhou gols e colocou a Lucchese em pé de igualdade com Novara e Livorno pelo título.
O problema: Erbstein não estava feliz com o sistema sendo desenvolvido para municiar Viani – como os americanos faziam – porque aguardar o resultado era previsível. Optou por escalar o adolescente Michelini como centroavante contra a forte Pro Vercelli e recuou Viani para a lateral. A solução: Michelini fez os dois gols da vitória porque a tática confundiu completamente o adversário. Na partida final, doppietta de Viani para colocar a Lucchese na Serie A.
Eis que Erbstein se livra de Viani uma vez que, estilista que era, gostava mais da graciosidade do jovem para disputar a primeira divisão – não sem sofrer críticas dos torcedores que, obviamente, se opuseram à ideia de perder o artilheiro num primeiro momento. Este pensamento leva ao princípio de um atacante de área que pudesse sair da posição para abrir espaço, como numa interpretação do falso 9. O campeonato foi encerrado com a Lucchese em 7º lugar, empatada em pontos com a Inter.
A ótima temporada rendeu alguns desdobramentos importantes. A imprensa elogiou bastante o time pela coragem de enfrentar os clubes grandes, Bruno Neri, contratação do novo ano, foi enaltecido pelo trabalho na meia-esquerda, e três atletas foram agraciados com a medalha de ouro olímpica. Eles foram Giulio Cappelli, Lamberto Petri e Libero Marchini – este último é conhecido por ter fingido coçar o joelho para não fazer o saluto romano na final da Olimpíada.
Para a disputa da temporada 1937-38, a cidade de Luca já tinha o status de alvo para o regime fascista. Isso pelo judeu Erbstein, uma celebridade depois do patamar alcançado; pelo badernista Neri, que também se opôs ao saluto romano em um jogo de futebol pela seleção; ou por conta do anarquista Gino Callegari…
Aquela foi a mesma campanha em que o treinador foi afastado do cargo depois que uma grave pneumonia o deixou de fora dos primeiros jogos – e, por fim, o técnico substituto conseguiu a salvezza por uma posição. A diretoria começou a abraçar o totalitarismo do governo e, oficialmente, demitiu Erbstein por motivos médicos. Meses antes, Scher foi transferido para o pequeno Ampelea depois de rejeitar italianizar o nome para Scheri. Em setembro de 1938, o Manifesto da Raça decretou que o regime fascista era, a partir de então, oficialmente antissemita.
Para mais histórias sobre jogadores símbolos da luta antifascista, recomendamos o subtítulo A resistência, neste texto.
Budapeste, parte II
Apesar do percurso atribulado nos últimos meses de Lucchese e de os discursos eugenistas e antissemitas estarem ganhando espaço na Itália, chegou a parecer que Erbstein tinha “caído para cima”. É que, no verão de 1938, ele foi contratado pelo Torino, onde reencontrou Neri e Olivieri. No Piemonte, ele poderia matricular as filhas em um colégio particular – as escolas públicas estavam proibidas para judeus.
Como se verificaria com o passar do tempo, a escalada racista continuava. Erbstein estava treinador até 3 de dezembro de 1938 quando lia-se nas manchetes simplesmente que ele havia partido. A política antissemita do estado fascista tinha níveis diferentes de penetração da mensagem xenófoba dependendo da região. Em Bolonha, comuna liderada pelo presidente fascista da Federação Italiana de Futebol e camisa-negra Leandro Arpinati, Árpád Weisz não aguentou além de outubro, quando foi demitido e viajou à Holanda. O treinador tinha uma reputação altíssima depois dos campeonatos conquistados pelo Bologna e Inter.
Turim, por sua vez, era revestida na influência da comunidade judaica e na repressão pela totalidade do fascismo. O Partido Fascista documentou que as igrejas católicas criticaram as medidas antissemitas e criou uma rede de solidariedade aos judeus pela cidade. A capital do Piemonte sempre preferiu ter certa neutralidade em relação ao governo de Mussolini pelo histórico da família real e da Casa de Savoia – é bom lembrar que Vittorio Emanuele só destituiu o Duce no fim da Segunda Guerra. Só que desde o Manifesto, a violência contra os judeus foi disseminada de forma sistemática.
Era fevereiro de 1939 quando os Erbsteins entraram num trem para deixar o país. Se o futebol da Holanda era estritamente amador à época, o ambiente era favorável tanto para a família como para o desenvolvimento da liga. A competição abraçava os treinadores da Europa Central, com Weisz assumindo o Dordrecht e Richard Kohn, judeu austríaco, permanecendo no Feyenoord por quase duas décadas e fidelizando o clube como um dos grandes do continente. Mas aí aconteceu a última parada do trem, em Cleves, última cidade alemã antes da fronteira com os Países Baixos.
A liberdade dos judeus na Alemanha foi suprimida também em 1938, quando o Reich decretou o confisco de toda propriedade dos judeus alemães – desde ensino nas escolas a passaportes e o simples direito de ir e vir. Os policiais entraram nos vagões na estação de Cleves e requisitaram identificação de todos os passageiros. Os Erbsteins tinham visto holandês, e Ernő possuía toda a documentação que o ligava ao contrato com o Rotterdam e sua futura residência. Ainda assim, os papeis indicavam a origem da família. Os documentos foram rasgados, jogados pela janela, e os policiais arrastaram a família e chutaram os integrantes. Os Erbsteins não eram alemães, mas a tropa de proteção nazista (SS) os trataram de forma sub-humana como judeus de qualquer nacionalidade.
Ernő, a esposa Jolán e as filhas Susanna e Marta foram levados para um prédio em Cleves, onde os nazistas isolaram aproximadamente 100 judeus em quatro apartamentos de dois quartos. O lugar era chamado de “casa de judeus”. No caso da família, eles simplesmente desapareceram – afinal, a diretoria do Torino acreditava que eles chegaram à Holanda. Toda semana os guardas deixavam uma cesta de comida no corredor. Eram as sobras geralmente estragadas dos produtores locais que precisavam ser pagas com o dinheiro que lhe restavam entre os pertences – com valor acordado pelos próprios nazistas.
Antes de deixar Turim, Ernő tirou todo o dinheiro do banco, comprou diamantes e os costurou nos forros das roupas justamente para o caso de ser interpelado pela SS. Ele subornou um dos guardas para usar o telefone por cinco minutos em troca de uma das pedras. Ele ligou para Ferruccio Novo, presidente do Torino, que contatou a embaixada húngara imediatamente para a liberação da família.
Os Erbsteins estavam de volta a Budapeste com Jolán bastante doente e Marta sofrendo com o que parecia ser estresse pós-traumático. Sem diagnóstico preciso, a filha mais nova ficou meses sem falar e até hoje não se recorda dos eventos na Alemanha e da vida como criança na Itália. O retorno à Hungria não fora planejado desde Turim porque a situação no país não era tão diferente à da Itália para os judeus. A atmosfera antissemita, intensificada na última década, mostrou momentos de grande tensão principalmente depois da Grande Depressão em 1929.
Resumindo a história: o almirante Miklós Horthy instaurou um governo nacional-conservador em 1920 que visava retomar os territórios perdidos com o tratado de Trianon. Nos anos 1930, concomitantemente ao retorno dos Erbsteins, ele levou o Reino da Hungria a uma aliança com a Alemanha Nazista. Em 1938, uma série de leis foram firmadas na Hungria que, bem como no vizinho, limitava a participação dos grupos étnicos na maioria dos trabalhos. Sobre a vida dos judeus húngaros após a anexação da Áustria a Alemanha, uma frase do pai da historiadora Zsuzsanna Ozsváth define: “tudo acabou”.
Na capital, Ernő retomou ao trabalho com uma empresa têxtil em sociedade com o irmão Károly. A empresa, é bem verdade, foi bem-sucedida pela simples razão de que Károly era um administrador hábil e as conexões que Ernő tinha permitiam um impacto diferente na relutância dos locais em relação à dupla. O treinador e a família moravam na Andrássy út, luxuosa avenida que chegava ao coração da cidade, na Praça dos Heróis, e na qual se localizavam os famosos cafés que eram visitados pelos artistas, filósofos e, também, onde floresceu o futebol do continente. Não por menos, a avenida ganhou a alcunha de “Champs-Élysées de Budapeste”.
Ali também, porém, num grande prédio entre a casa e a Praça, os membros fascistas (nyilas) se reuniam na sede do Partido da Cruz Flechada. No curso de oito anos, milhares de pessoas entraram no prédio para nunca mais sair da Casa da Lealdade, como o próprio partido chamava. Isto posto, no fim do dia, Erbstein era judeu, e a vida ordinária destes era de medo constante: de privações, humilhações, agressões e deportações, em meados de 1941, e da morte, a partir da invasão alemã.
Holocausto
O receio diário se tornou pânico a partir do momento em que a Gestapo pisou em Budapeste, em março de 1944. Com húngaros colaborando com os nazistas, os alemães lançaram um decreto obrigando os judeus a usar uma estrela amarela na roupa e começaram a segregar a comunidade em guetos. A SS isolou praticamente toda a população judia da capital entre março e julho e atingiu um montante de 500 mil deportações para os campos de concentração. Ao mesmo tempo, o almirante Horthy pediu a suspensão dessas expatriações. A decisão dele contrasta com a própria participação na contrarrevolução de extrema direita duas décadas antes. Naquele momento, o militar se alinhou à pressão internacional contra o genocídio e com os julgamentos das ações da guerra por entender que o conflito estava perdido.
E ainda existiam alguns redutos de proteção aos judeus. Jolán, Susanna e Marta foram acolhidas pelo padre Pál Klinda e a comandante Gitta Mallász num convento católico, sob proteção do Vaticano. Essa era uma iniciativa que fazia uniformes para o Ministério da Guerra como fachada para proteger as mulheres judias da deportação – ainda que, ali dentro, mais se parecia com uma prisão, visto que ninguém podia saber da existência deles. No momento em que a família foi “salva”, Erbstein se entregou às forças nazistas.
Os húngaros que coordenavam o campo de concentração identificaram o físico de Ernő como útil para a construção das ferrovias. À frente da fila dos novos prisioneiros, logo no primeiro dia, reconheceu o oficial que coordenava o grupo: era um dos subordinados dele durante a Primeira Guerra. Foram várias vezes que o kapo (alcunha do prisioneiro selecionado pela SS para supervisionar o trabalho forçado) levou Erbstein para a cidade, usando a desculpa de que ele iria ajudá-lo com outras construções, a fim de ligar para a família.
Entre as poucas informações sobre o tema, sabe-se que, em outubro, o acordo de paz que Horthy tentou alinhar com a União Soviética foi respondido com um golpe da Alemanha, instalando Ferenc Szálasi, do Partido da Cruz Flechada, no lugar do líder deposto. No convento, os nyilas arrombaram a porta da instalação e ameaçaram as mulheres de morte. A chacina só não aconteceu por conta de pressão diplomática e porque os oficiais daquela ação estavam preocupados com atos ilegais contra civis que pudessem prejudicá-los após a guerra – os nyilas geralmente não tinham o menor conhecimento sobre as leis internacionais.
Mãe e filhas saíram do convento em abril de 1945 e se esconderam na casa de parentes em Pest. Neste mesmo período, Ernő organizou uma fuga juntamente com outros quatro prisioneiros (entre eles o treinador Béla Guttmann) porque o Partido estava empurrando os judeus cada vez mais para a Alemanha. As autoridades nazistas, atabalhoadas ao fim da Guerra, faziam incursões frequentes entre as cidades. Guttmann contou na biografia dele que foi levado de Vác, no norte de Budapeste, para Erdováros e Timót utca, mais ao sul e, no trajeto rumo ao oeste, ele, Erbstein e outros três prisioneiros pularam pela janela do segundo andar do trem e se separaram assim que se viram longe do perigo imediato.
Ernő se juntou à família e a sobrinha de Jolán, Erika, conseguiu documentos falsos suecos para ela e Susanna. O pai permaneceu grande parte do tempo escondido à parte, no sótão da casa, sem registros, enquanto Budapeste era bombardeada pelo Eixo e pelos Aliados. Em dezembro, Raoul Wallenberg, diplomata sueco que seria condecorado pelo trabalho que realizou para salvar os judeus na Segunda Guerra, conseguiu um passaporte para Ernő e permitiu que ele ficasse refugiado na colina de Gellért, onde a legião sueca montou base em Buda. O trajeto entre os dois lados da cidade é complicado até mesmo para um turista com o clima ameno; pense para um homem de meia-idade durante o inverno rigoroso, recém-saído do campo de concentração e buscando fugir dos exércitos húngaro e soviético.
Neste ponto, a história das mulheres tem menos incertezas. Uma tropa de nyilas atacou a comunidade, separou os habitantes em dois grupos e fuzilou um destes no jardim. Marta, com os documentos falsos, estava num dos lados, mas, outro soldado, mais experiente, a moveu para junto de Susanna e Jolán. Para o grupo sobrevivente.
Sobre Erbstein, o caos reinava na cidade nas semanas finais da Guerra. No Natal, nyilas invadiram o prédio ao lado da legião sueca – base anteriormente administrada pela legião finlandesa. Depois, atacaram o outro prédio em Gellért, levando os refugiados para batalhar em Szombathely, na fronteira austríaca, localidade que os Aliados estavam bombardeando diariamente para destruir as ferrovias vitais do Eixo. De alguma forma, porém, Erbstein permaneceu vivo. Do momento em que o general Karl Pfeffer-Wildenbruch se rendeu aos exércitos soviético e romeno, no Cerco de Budapeste, até o reencontro da família, cinco dias se passaram – presumidamente em 18 de janeiro de 1945.
Torino, antes do Grande
A volta ao Belpaese foi festejada, com o Corriere dello Sport anunciando este retorno em 26 de setembro de 1946. Erbstein, a partir de agora, será chamado de Egri, justamente como ele queria quando trocou o sobrenome aristocrático da Era Prussiana para o que denota seu orgulho magiar. O Torino esperou muito por esse momento; ter o treinador de volta era motivo de retomar todo o caminho pavimentado por ele mesmo antes da fuga para a Holanda.
Sem Ernő, o clube não fez campeonatos ruins: conquistou dois títulos nacionais, além de dois vices, e ganhou uma Coppa Italia, dando início ao período em que ficou conhecido como Grande Torino. Mas é sugerido que o ótimo relacionamento entre Novo e Egri, de contato frequente durante a guerra, moldou o futuro dos treinadores contratados: o amigo Ignác Molnár, que o substituiu em 1938, András Kutik, Angelo Mattea, Tony Cargnelli, Antonio Janni, Luigi Ferrero e até o jogador Felice Borel – estudioso do jeito que o presidente queria, a ponto de se tornar auxiliar informal – viviam sob a sombra do grande húngaro. Não era uma questão de “e se”; quando Ernő retornasse, a função voltaria a ser dele.
Oito anos se passaram desde que Egri chegou à Turim pela primeira vez. Os jogadores haviam mudado (um deles, Walter Petron, chegou a morrer na guerra), e a cultura tinha de ser implementada novamente. Para entender essa adoração do Toro pelo técnico, portanto, voltemos para 1938.
“Sorriam no vestiário e quando forem ao campo. Caso levem uma entrada dura ou o árbitro erre: sorriam. Se o adversário marcar gol: sorriam. Se a gente marcar: sorriam! Se o adversário nos insultar: sorriam!” (Egri)
O Torino embarcou num novo projeto de emancipação e desenvolvimento com o presidente Ferruccio Novo. Ele foi um ex-jogador da base do clube que acabou não dando muito certo e se transformou num rico empresário do setor agrônomo, mas não era um magnata como outros dirigentes da região norte. Aos 41 anos e escalando o poder dentro da estrutura do clube, Novo ansiava tornar o Toro respeitado e admirado.
Egri ouviu na reunião inicial com a diretoria que nenhum jogador seria vendido e que o clube estava disposto a bancar os reforços para se candidatar ao título já naquela temporada (1938-39). A imprensa não gostou muito quando os primeiros reforços foram anunciados. Walter “Farfallino” Petron, interior-esquerdo de 20 anos do Padova, na Serie B, era um jogador mirrado e pequeno, mas especialista em dar passes para quebrar a defesa adversária. O estilo físico, o valor (250 mil liras – equivalente a 2.689 libras, alto para os padrões domésticos) e a provação somente em divisões inferiores foram os temas dos jornais, que continuaram duvidosos sobre o Torino quando o time assinou com Giovanni Gaddoni, do Piacenza, então na terceira divisão.
Durante a primeira parte da temporada o que se viu foi um Torino essencialmente confiante, que pressionava muito sem a bola e gostava de correr riscos no ataque. No terceiro jogo do ano, por exemplo, a Lucchese fez um gol-relâmpago, o meia granata Federico Allasio foi expulso, Egri reposicionou a equipe recuando o interior-direito Raf Vallone e permitiu que o ponta Mario Bo se movimentasse livremente pelo ataque. A virada incrível pra 5 a 1 teve Farfallino Petron como personagem principal, com um gol e duas assistências.
Os húngaros eram obsessivos pelas atividades físicas, e Egri não era diferente. Imagine um bando de marmanjos separados em pares se divertindo com corrida de três pernas. A pré-temporada do clube foi repleta de cenas como essa, com brincadeiras como esconde-escond, ou outros esportes, como bocha e pallapugno (uma mistura de vôlei e tênis). O hotel luxuoso no qual estavam hospedados em Ala di Stura era usado somente para comer e dormir. Todas as atividades planejadas por Egri foram realizadas na montanha, relatadas dessa forma pelo Calcio Ilustrato:
7am: acordar (até para Mario Bo, que adorava ficar debaixo das cobertas por mais tempo)
8am: ginástica e exercícios de aquecimento
10am: andar (todo jogador ouvia que era livre para ir onde quisesse, porém, deveria seguir a política de andar em grupo – realizando, assim, uma atividade coletiva)
12pm: almoço
4pm: atividades depois da siesta (eles tiravam uma soneca debaixo das árvores no platô subindo a colina)
8pm: jantar e breve caminhada
10pm: cama (incluindo Allasio, que adorava ficar acordado até tarde jogando cartas com Maina, Ferrini e o massagista Cortina)
Egri era adepto da teoria de Johan Huizinga, um filósofo holandês que afirmava que a brincadeira era uma parte inerente à cultura coletiva do ser humano. “Brincar é mais antigo que a cultura; por cultura, pressupõe-se inadequadamente sociedade humana, e os animais não esperaram os homens para ensiná-los a brincar”. Naquele microuniverso, o técnico ensinava, os jogadores tinham o controle do próprio destino.
O treinador não era somente um senhor inteligente. Tinha algo nele, um carisma, que quebrava algumas barreiras. Para Egri, era importante que os jogadores sorrissem porque era um ingrediente vital para o sucesso em campo porque esse ato faria com que o time continuasse calmo enquanto estivesse sob pressão e, simultaneamente, o adversário terminaria irritado. Como mostrado anteriormente, ele abraçava seus jogadores como seus próximos. “Antes de ser um excelente treinador, ele era uma pessoa excepcional; o primeiro a estabelecer um relacionamento amistoso com os jogadores, e não era autoritário. Ele era o nosso primeiro confidente”, contou Vallone.
Muito do que ele fez ao ser empregado novamente pelo granata pode ser tratado como uma mescla do trabalho atual de diretores, olheiros e cientistas do esporte. Ele viajava para outras cidades para observar os jogos dos adversários, por exemplo – o que era incomum para a época. Egri chegou a apresentar um projeto de um novo tipo de nutrição aos jogadores porque os atletas do sul tinham melhor forma física em relação aos do norte em certos períodos do ano. O Torino começou a importar frutas e vegetais sazonais para suprir os nutrientes faltantes da culinária local.
Quem treinou a equipe em 1946, na verdade, foi Luigi Ferrero, que foi atleta de Erbstein em 1938. Era um processo de readaptação ao emprego que passou longe de ser exigido enquanto tinha a loja ou fugia dos nazistas. O controle completo da seleção do time era do supervisor de Ferrero e do diretor Roberto Copernico; Egri ficou mais nos bastidores e continuava sendo a voz mais ouvida durante os treinamentos. Trocou muitas figurinhas com Ferrero para reinterpretar o WM e desenvolver uma versão mais acelerada usando diagramas e geometria que ele mesmo desenhava no caderno, indicando a intuição dele sobre interpretação espacial do jogo.
A nova roupagem tática do Torino consistia num quadrilátero no meio-campo. O pilar da equipe era formado pelos quatro jogadores que começavam a partida na região central: Giuseppe Grezar, mais recuado; Eusebio Castigliano saindo um pouco mais; Ezio Loik conectando defesa e ataque; e o virtuoso Valentino Mazzola ditando o ritmo e recebendo a bola em qualquer altura do campo. O movimento sem bola idealizado por Egri era posto em prática à perfeição por Mazzola, tantas vezes marcado individualmente, o que permitia que companheiros recebessem livre de oposição.
A história é famosa – e até parece uma fábula –, mas conta exatamente o que Mazzola representava para o time, e a equipe para a torcida. Infelizmente o Alessandria visitou o Filadélfia na temporada de 1947-48. A torcida estava entediada porque o Torino vencia por 4 a 0 até o intervalo e tirou o pé do acelerador com o jogo ganho. Surge, então, a corneta de Oreste Bolmida, o líder da torcida. Sempre que ela tocava, o adversário podia entregar as fichas: o estádio entrava em erupção, Mazzola arregaçava as mangas e partia para a ação. O ex-defensor Carlo Parola costumava definir assim: “quando Mazzola queria, ele arrastava literalmente todo o time com ele”. A corneta transformava o craque. Naquela partida, a equipe marcou seis gols em menos de 30 minutos para decretar o recorde histórico do clube: 10 a 0.
O slogan favorito de Egri era “coragem + suor + tranquilidade + classe = vitória”. Para além do quarteto, havia disponibilidade de grandes jogadores em todas as posições, como no ataque, com Guglielmo Gabetto, e na lateral esquerda, com o jovem Virgilio Maroso, frequentemente chamado como precursor do estilo lendário de Giacinto Facchetti.
Mas não se engane: aquele era um time com a ideia e cara do comandante. E Egri, o jogador, era um brucutu de primeira, que não levava desaforo para casa. Tanto é que o Torino, talentosíssimo, também sabia bater para vencer. O duro zagueiro Mario Rigamonti, dos primeiros italianos a fazer marcação individual, punia qualquer jogador que passasse perto dele. Veja o que disse Amedeo Amadei, famosos atacante de Roma, Napoli e Inter: “em uma ocasião, tomei tanto de Rigamonti e companhia que na manhã seguinte, de tão mal, não consegui sair da cama”.
Algumas equipes tentaram copiar o Torino ainda naquele ano de 1947, finalizado com o scudetto da equipe grená, que fez 10 pontos a mais que o vice e teve 104 gols marcados. A Lazio espelhou o sistema tático na partida entre os times para tentar parar as bolas enfiadas para o centroavante Gabetto. Daí ele passou como quis pelo volante Salvador Gualtieri, técnica e mentalmente, para marcar três gols. Sem os jogadores nem a ideia correta, não tinha como copiar o Torino.
Treta e empréstimo de técnico
O clube passou a ser o queridinho do país em 1947-48: era motivo de orgulho de uma nação com baixa autoestima e economia claudicante após os anos de fascismo. Para continuar se afastando da maldição nazista, as federações italiana e húngara acertaram um amistoso entre as seleções como forma de alinhavar a camaradagem entre os países. Egri foi o responsável por mediar o contato entre as associações na prefeitura de Turim, mas o ato foi mal-visto depois de uma discussão ríspida entre ele e o técnico campeão mundial Pozzo – que se recusou a se encontrar com um membro da delegação estrangeira. Os protestos contra o famoso treinador italiano extrapolaram o contexto quando os conservadores leram o texto pré-jogo de Erbstein para o jornal comunista l’Unità, do qual o amigo e ex-comandado Vallone era editor, e o acusaram de ser um espião soviético.
Egri ficou tão estressado que, meses depois, usou o espaço de um jornal esportivo para publicar a carta intitulada “Eu não sou um agente secreto”. Nas linhas, relatava suas duas viagens para a Hungria para ver a família e tocar os negócios com o irmão, além de usar o tempo para conversar com o amigo Guttmann, técnico do Újpest, e prospectar novos reforços de Hungria e Romênia, depois que FIGC liberou contratações de estrangeiros. Um desses jogadores foi Iosif Fabian, do Carmen Bucharest, provavelmente uma indicação de Árpád Fekete, compatriota de Egri que atuava no Como.
O húngaro também escreveu sobre a resposta atravessada de Pozzo sobre a entrevista com o enviado especial de Budapeste no encontro entre as associações, e a saída de Ferrero, o técnico campeão da temporada anterior, que foi de comum acordo. Anos depois, o italiano revelou que um dos fatores pelos quais entrou em conflito com Novo foi a insistência do cartola em expor o elenco do Torino a viagens de avião para partidas em lugares distantes. Fontes sugerem que Egri compartilhava da mesma visão.
A briga entre Pozzo e Egri pode ser compreendida através de vários ângulos: o futebol moderno contra o antigo; o estilo rejuvenescido contra a tática que usava todos os predicados do fascismo; a liberdade contra a rigidez; a figura do tio divertido em oposição ao pai autoritário. Certa vez o comissário técnico italiano atacou o sistema ao dizer que a função de zagueiro, como Rigamonti atuava, limitava a capacidade de improvisação na estrutura; o metodo dele dava liberdade ao centro-médio com a bola. Pozzo não enxergava o jogo como Egri tampouco aceitava que a ideia do húngaro estava condicionada à coragem do movimento sem a bola que, quando colocada em prática, abria a mente dos jogadores. Em Jogo à italiana, falamos sobre esses dois métodos paradoxalmente opostos dos treinadores nas primeiras décadas de profissionalismo no Belpaese.
Naquela temporada – e talvez para desespero do técnico da seleção italiana – o Torino fez 16 pontos a mais que o vice, Milan. Foram 125 gols, 11 partidas marcando cinco ou mais e permanecendo invicto em casa pelo terceiro ano seguido. Para agraciar ainda mais aquele time, Pozzo foi forçado a abandonar seu metodo. O famoso quadrilátero Mazzola-Loik-Castigliano-Grezar não engrenou na seleção, porém. Enquanto os outros clubes que tentava emular o Torino não tinham os jogadores, a seleção não tinha Egri. No fim das contas, Novo viria a assumir a presidência da comissão técnica italiana, em 1949, substituindo Pozzo e levando Copernico, ex-Toro, com ele.
O húngaro voltou ao país natal no fim de 1947 a fim de se reunir e trazer Jolán e Marta para a Itália. Estava cada vez mais difícil deixar o país com o cerco comunista, mas as duas conseguiram se mudar em março de 1948, com passaportes forjados. A filha mais nova lembra que o Ministro do Esporte estava disposto a correr riscos para ajudá-los, porém, oficialmente, Gyula Hegyi nada podia fazer. Enquanto estava no em seu país, o Torino perdeu força: o La Stampa chegou a escrever que a equipe havia abandonado o jogo rápido e lhe faltava confiança. O retorno de Egri ocorreu naquele 10 a 0 contra o Alessandria.
A goleada no Filadélfia serviu para solidificar a relação entre os dois clubes. A ação de vanguarda do húngaro foi a de comandar o adversário para o salvar do rebaixamento. Esse empréstimo pode ser comparável ao fenômeno dos clubes-satélite: o Alessandria (e também Lucchese, Como e Vicenza) produzia talentos que tinham o Torino como a primeira opção para negócio e, em troca, recebiam algum tipo de recompensa. Naquela temporada, fora Egri, os alexandrinos receberam dois campeões nacionais (Cesare Gallea e Francesco Rosetta), enquanto a Lucchese obteve Dante Piani e o retorno de Danilo Michelini.
A decisão de ajudar a equipe num momento conturbado conta bastante sobre a índole de Egri, disposto a fazer tudo e mais um pouco por seus pares. O Alessandria venceu os dois jogos seguintes à porrada no Filadélfia: dois 1 a 0 contra Bari, do ex-granata Kutik, e Fiorentina, de Ferrero. O time foi elogiado pelo formato tático, mas logo vieram cinco derrotas em sete jogos, numa sequência que culminou no rebaixamento.
Torino, o Grande
A colônia italiana no Brasil ficou entusiasmada quando viu Mazzola, até porque o italiano prometeu que voltaria ao país antes do Mundial de 1950. O Torino era bastante requisitado por ser o “melhor clube do mundo”. A expedição na América foi encerrada com vitória contra a Portuguesa, derrota para o Corinthians e empates ante Palmeiras e São Paulo – este último encerrado após uma briga generalizada depois que o goleiro Valerio Bacigalupo deu um soco em Ponce de León para revidar uma entrada mais dura que sofreu do atacante.
Em Turim, um susto. Os jornais italianos reportaram o acidente de um avião no Oceano Atlântico dizendo ser um dos piores da história, com a morte das 52 pessoas a bordo, em 1º de agosto. Era a mesma data de retorno da equipe à Itália. Contudo, o voo, porém, saía da Martinica e ia para a Mauritânia. O elenco dormia tranquilamente no Rio de Janeiro porque resolveu passar mais um dia no país depois de turbulências na viagem de ida.
Para a disputa do campeonato, Egri promoveu Leslie Lievesley, treinador dos juniores, para o cargo de assistente. Ainda que com semblante fechado e de personalidade diversa à do húngaro, o ex-jogador do Manchester United era um prodígio, perito no condicionamento físico. O movimento consistia em integrar as equipes profissional e de base para ultrapassar os rivais ricos com os talentos criados em casa. Às quintas, Egri organizava um coletivo entre profissionais e juniores que, para ele, beneficiava os dois grupos: a base observava de perto como o sistema e a marcação homem a homem funcionava, enquanto o time de cima enfrentava uma equipe posicionada como o próximo adversário das competições.
A renovação dentro do clube não foi feita por essa gestão, entretanto. A geração de 1948 não estava preparada para dar um passo a mais, mesmo que os jogadores do Toro estivessem envelhecendo – Gabetto, por exemplo, estava com 32 anos e tinha feito apenas oito gols na temporada anterior. Alguns eram negociados ou estavam na mira de outros clubes: como Mazzola, cortejado pela Inter e por um salário invejável de 10 milhões de liras, quatro vezes maior do que aquele que recebia. Novo, centralizador que era, não permitiu a transferência e o jogador ficou frustrado. Depois que Gabetto foi artilheiro em 1945-46, Valentino foi o goleador máximo do campeonato no ano seguinte (com 29 gols) e marcou 25 em 1948, ficando atrás somente do rival local Giampiero Boniperti, que fez dois a mais. Aos 30 anos, ele era a extensão do diretor técnico em campo e o líder da equipe.
O Torino, então, foi ao mercado para se reforça com atletas mais jovens para as posições carentes e pavimentar um caminho de glórias para a década seguinte. O clube trouxe Rubens Fadini, 21, depois que ele chamou a atenção do clube atuando na Serie B pela Gallaratese; Piero Operto, 21, do Casale, para disputar posição na lateral; Ruggero Grava, 26, e Émile Bongiorni, 27, como potenciais sucessores do negociado Pietro Ferraris e de Gabetto, respectivamente; o goleiro Dino Ballarin, 22; e o interior Július Schubert, 25, do Slovan Bratislava.
Já era novembro quando o calendário foi reorganizado. Enfrentar o Bologna em jogo vital para a disputa do título quatro dias depois de um amistoso na Bélgica fez o Torino optar por encarar amistosos somente quando a temporada acabasse, a fim de não perder o foco na Serie A. As digressões eram fontes de renda e o clube tentou explorar o sucesso comercial da viagem ao Brasil num período em que a Copa Mitropa, em hiato desde 1941, não era disputada – a Copa dos Campeões da Europa só sairia do papel em 1955.
Mas os amistosos não tardaram para ser planejados. O atacante Francisco Ferreira aproveitou a viagem da seleção portuguesa a Gênova, em fevereiro de 1949, para perguntar a Mazzola se ele conseguiria convencer seus companheiros a participar da despedida dele em Lisboa. Novo, inicialmente, foi contra a ideia porque o jogo festivo coincidia com a partida fora de casa com a Inter, a quatro jogos do fim da temporada. Acatou a decisão com uma condição: o Torino não podia perder em San Siro.
O campeonato seria decidido ali, em Milão, depois de um empate divertido em Pádua por 4 a 4 e uma vitória em casa contra o Milan. O Toro não teria os lesionados Mazzola, Grezar e Maroso, porém, um empate sem gols praticamente garantiu mais um título italiano àquele time excepcional. Naquele momento, com três jogos a serem disputados em Turim, a equipe grená tinha uma vantagem de quatro pontos – equivalente a duas vitórias, na época – sobre a Inter, vice-líder. A taça estava no papo.
A viagem para Portugal aconteceu da melhor forma. Lisboa recebeu muito bem seus visitantes e o Estádio da Luz estava abarrotado para ver a despedida do capitão do Benfica. Entre os convidados de honra, o rei Umberto II, exilado desde a dissolução da monarquia italiana; e László Kubala, a lenda húngara que faria história com a camisa do Barcelona, que só não participou do amistoso porque o filho ficou doente. O atacante que interessava ao Torino e à Juventus provavelmente foi convidado por Egri. Anos antes, o treinador havia tentado tirá-lo da Hungria com a ajuda do ministro, mas Kubala só deixou o país mais tarde – quando chegou a acertar com a Pro Patria.
A última exibição do Grande Torino só não teve a escalação tradicional porque o lateral-esquerdo Maroso não tinha se recuperado de lesão, portanto, iniciou com Bacigalupo; Ballarin, Rigamonti, Martelli; Grezar, Castigliano; Menti, Loik, Gabetto, Mazzola e Ossola. A torcida lisboeta aplaudia o Torino a cada ataque de tirar o fôlego. O Benfica ficou acuado nos primeiros dez minutos daquele recital comandado por Mazzola, Loik, Gabetto e Ossola, com este último marcando o primeiro daquela noite. A lesão de Gabetto, substituído por ser um amistoso, quebrou o ritmo do Torino: a despedida de Ferreira terminou com uma vitória portuguesa por 4 a 3.
Era hora de voltar para o Piemonte com os elogios daquele preparatório para a Copa Latina, inaugurada no verão. O Torino enfrentaria o Sporting na semifinal do torneio que reunia os campeões de Itália, Portugal, França e Espanha. À extensão Stampa Sera do La Stampa, o jornalista Luigi Cavallero enviou seu texto derradeiro com a frase: “que as nuvens e os ventos estejam favoráveis para nós, e não nos chacoalhem muito”.
O piloto Pierluigi Meroni fez contato com o aeroporto de Turim às 16h45 daquele 4 de maio de 1949. Dizia que sobrevoava Savona, a 2 mil metros, abaixo das nuvens e que chegaria à capital do Piemonte em 20 minutos. Às 17h02, a torre de controle avisa sobre a tempestade e a péssima visibilidade, com nuvens na altura dos 500 m. Às 17h03, o último contato do voo com 31 passageiros e nada mais.
Aos que estavam longe, a Basílica de Superga, localizada num monte de 672 metros de altitude, estava iluminada; àqueles que estavam perto, o susto repentino com o estrondo da aeronave colidindo com o muro do terreno da igreja. A notícia se espalhou rapidamente dos arredores para o centro de uma Turim chocada com o desastre. Muitos subiram a colina enquanto a noite cobria a cidade, incluindo o defensor machucado Sauro Tomà, que não fora a Lisboa. O secretário Igino Giusti o pegou pelo braço na praça da basílica e não permitiu que ele visse o avião.
Marta não conseguiu aceitar nem acreditar naquele trágico acontecimento por dias. “Não consigo descrever o que senti. Precisaria ser escritora ou poeta para conseguir colocar em palavras o que foi aquilo”. Susanna, viajando desde Florença, subiu imediatamente para Superga, onde conseguiu recolher a mala que havia emprestado ao pai para essa viagem. Dentro, uma boneca, presente que costumava levar para a filha após todas as excursões que fazia – o qual a primogênita, que se tornou uma grande bailarina, chama de “o objeto mais precioso que eu cuido”. Também dentro, uma pequena caixa destinada à mais jovem, que faria aniversário no próximo dia 8. Era um anel adornado com o último diamante que lhe restou antes de Egri se apresentar ao campo de concentração de Budapeste, em 1944.
Mais de 500 mil pessoas tomaram as ruas e o palácio Madama para o funeral, dois dias depois. A delegação da Juventus estava em Alessandria a caminho de Palermo e retornou para honrar o rival. Stanley Matthews, craque da Inglaterra, e outras federações (como a sul-americana e, com destaque, o River Plate) prestaram condolências nos dias seguintes. O Torino não era simplesmente uma equipe vencedora – pentacampeã consecutiva: o time granata tinha conseguido implementar um sistema que divertia o público, com galãs exuberantes em campo, e que era motivo de orgulho para uma nação com moral destruído pelos anos de fascismo.
A tragédia assegurou que Egri não terminasse qualquer temporada à frente da equipe – portanto, jamais conseguiu comemorar uma Serie A nos mais de 10 anos como treinador, ainda que tenha vencido a de 1949, depois que o time sub-19 grená venceu os quatro jogos restantes daquela campanha. Na fileira de caixões, cobertos com as bandeiras, destacava-se uma por ser diferente das demais, com as mesmas cores da italiana, mas em sentido inverso, representando a Hungria. Não ter vencido participado por completo de qualquer título, na verdade, é apenas uma linha a mais para ser apreciada.
Sua carreira é uma obra a ser contemplada: pela inteligência fora do comum, pelo vanguardismo, pelo legado e pela coragem. A pessoa que gostariamos de ser. Erbi foi um herói.
Ernő Egri Erbstein
Nascimento: 13 de maio de 1898, em Nagyvárad, então Áustria-Hungria (hoje Oradea, na Romênia)
Morte: 4 de maio de 1949, em Superga, Itália
Posição: centromédio
Clubes como jogador: BAK (1915-24), Hakoah Arad (1922), Olimpia (1924-25), Vicenza (1925-26), Húsos (1927), Maccabi (1927-28)
Clubes como treinador e diretor técnico: Maccabi (1928), Fidelis Andria (1928), Bari (1928-29), Nocerina (1929-30), Cagliari (1930-32), Bari (1932-33), Lucchese (1933-38), Torino (1938-39, 1946-49) e Alessandria (1948)
Títulos conquistados: Prima Divisione (1932 e 1934), Serie B (1936) e Serie A (1949)
*Egri foi tema de duas biografias nas últimas décadas. Este texto usou o Erbstein: The triumph and tragedy of football’s forgotten pioneer (2014) como base, uma vez que o livro de Dominic Bliss sobre o húngaro é mais completo que L’allenatore errante (2006).