Jogos históricos

Em 1972, Johan Cruyff detonou o catenaccio da Inter e deu o bi da Copa dos Campeões ao Ajax

A década de 1970 marcou a consolidação do futebol total, uma concepção tática idealizada por Rinus Michels, um dos treinadores mais revolucionários da história da modalidade. Antes do surgimento desse estilo de jogo ofensivo, disruptivo e encantador, o catenaccio reinava na Europa. Em 1972, os dois precursores dessas filosofias aparentemente antagônicas mediram forças na final da Copa dos Campeões. Um Ajax embalado com a ousadia e a inventividade de Johan Cruyff se impôs diante de uma Inter envelhecida e sem poder de reação: venceu por 2 a 0, em Roterdã, e faturou o bicampeonato consecutivo da competição.

Nos anos 1960, o Milan de Nereo Rocco e a Inter de Helenio Herrera levaram quatro taças da Copa dos Campeões para a Lombardia. Os rossoneri venceram em 1963 e 1969. Já os nerazzurri faturaram um bicampeonato em 1964 e 1965 – além de terem ficado com o vice em 1967. A dupla milanesa se valeu do catenaccio, cujo idealizador foi o próprio Rocco, para criar uma hegemonia italiana no maior torneio de clubes do planeta. Porém, o movimento contracultural na Holanda impulsionou os times do país, praticantes do futebol total, a ganharem protagonismo na década seguinte.

O Feyenoord ganhou a Copa dos Campeões em 1970, enquanto o Ajax de Cruyff emplacou um tricampeonato europeu em 1971, 1972 e 1973 – nas duas últimas finais, os Godenzonen superaram Inter e Juventus, respectivamente. “A vitória em Roterdã, frente à Inter, significou sobretudo o triunfo definitivo do estilo de jogo holandês perante a disciplina tática das equipes italianas”, escrevem Miguel Lourenço Pereira e João Nuno Coelho no livro “Noites Europeias”. “Foi um acertar de contas com o tempo e mais uma prova da abismal diferença que existia entre o Ajax e os campeões restantes do Velho Continente”, complementam.

A Copa dos Campeões de 1971-72 não contou com a presença de times que, à época, eram figurinhas carimbadas na competição: Real Madrid, Milan, Liverpool, Leeds United e Juventus. Além disso, o torneio não tinha fase de grupos, de modo que as etapas eram divididas em 16-avos de final, oitavas, quartas, semis e final.

Na decisão, a marcação individual de Oriali sobre Cruyff foi um belo exemplo do embate entre o catenaccio e o futebol total (Anefo)

Para chegar à decisão, o Ajax realizou uma campanha impecável. Os neerlandeses alcançaram a final de forma invicta e só tiveram pela frente adversários de países tradicionais no futebol – Alemanha Oriental, França, Inglaterra e Portugal. O time de Amsterdã eliminou Dynamo Dresden (placar agregado de 2 a 0), Olympique de Marseille (6 a 2), Arsenal (3 a 1) e o temido Benfica de Eusébio (1 a 0).

A Inter, por outro lado, sofreu mais do que o Ajax para avançar à grande decisão. A Beneamata superou os gregos do AEK Atenas (6 a 4), o Borussia Mönchegladbach (4 a 2), os belgas do Standard Liège (2 a 2, com vantagem no gol qualificado) e o Celtic (0 a 0, com triunfo em 5 a 4 nos pênaltis).

Oriali realmente não desgrudou de Cruyff (imago)

O Celtic fora o responsável por dar à Grande Inter os seus últimos dias, em 1967, porém a revanche em Glasgow não foi a partida mais lembrada da campanha nerazzurra. É que, nas oitavas de final, diante do Gladbach, a Beneamata protagonizou o chamado “jogo da latinha”. O time italiano tomou 7 a 1 no confronto de ida, disputado na Alemanha, mas o duelo acabou anulado pela Uefa devido a uma lata de Coca-Cola lançada ao campo de jogo.

Aos 29 minutos, quando o Mönchegladbach vencia por 2 a 1, o objeto atingiu Roberto Boninsegna, centroavante interista, que caiu no gramado, alegando que não conseguiria continuar jogando. O técnico Gianni Invernizzi quis tirar o time de campo, mas Bonimba acabaria substituído – depois, com uma Beneamata desinteressada no Bökelbergstadion, a goleada foi construída.

Ajax e Inter decidiram a Copa dos Campeões nos Países Baixos, no estádio do Feyenoord (Anefo)

Uma semana após o episódio, a Uefa optou por anular a peleja e marcar uma terceira partida entre as equipes, que seria realizada em Berlim. Porém, a ordem dos confrontos foi invertida e o jogo ocorrido no Giuseppe Meazza se tornou o de ida – e, nele, a Inter levou a melhor, vencendo por 4 a 2. No terceiro duelo entre italianos e alemães, os milaneses se fecharam e seguraram o zero no placar diante do então campeão alemão.

Ajax e Inter tinham times com perspectivas bem opostas. O técnico Stefan Kovács sucedeu Rinus Michels em 1971 e deu continuidade ao projeto de futebol total criado por seu antecessor. O romeno manteve a base da equipe que havia conquistado a Copa dos Campeões da temporada anterior, com apenas uma alteração: o zagueiro Velibor Vasovic, recém-aposentado, deu lugar ao alemão Horst Blankenburg. Cruyff, evidentemente, era a alma, o termômetro, a peça-chave da engrenagem, o líder sem a braçadeira – o capitão era o ponta Piet Keizer.

Bellugi e Keizer: outro duelo da final em que juventude e experiência contrastavam (Anefo)

Treinada por Invernizzi, a Inter, por sua vez, era julgada por praticar um futebol tido como feio, obsoleto. Não era para menos: o time era composto por jogadores de idade avançada, marcados pelos anos de glória sob as ordens do rígido Herrera. Além de Boninsegna, já citado neste texto, a equipe contava com atletas do nível de Giacinto Facchetti, Sandro Mazzola, Tarcisio Burgnich, Jair da Costa, entre outros; mas a qualidade não era a mesma de outrora. Jovens, como Ivano Bordon, Gabriele Oriali e Mauro Bellugi ascendiam no elenco, mas ainda não estavam maduros para assumirem papel de protagonistas.

Na decisão, o Ajax estava praticamente em casa – por mais irônico que isso possa parecer, levando em conta que a final teria os domínios de seu grande rival como palco. O jogo seria disputado no De Kuip, estádio do Feyenoord, localizado em Roterdã. Por uma noite, no entanto, a arena seria dos Godenzonen, que viam com muita expectativa a possibilidade de levantar uma orelhuda justamente ali.

A Inter tentou de tudo para conter o talentoso Ajax (Action Images/MSI)

Mais de 61 mil pessoas – torcedores do time de Amsterdã em sua maioria, evidentemente – compareceram ao De Kuip para assistir à partida. Após o apito inicial, ficou evidente a proposta da Inter: entregar a bola ao Ajax e se fechar atrás. O técnico nerazzurro armou a equipe para povoar a entrada da pequena área e ferir os neerlandeses nos contragolpes. A pelota, no entanto, não encontrava o centroavante Boninsegna, já que os alvirrubros dominavam a peleja.

O primeiro lance de perigo não demorou a acontecer. Aos 6 minutos, Johan Neeskens finalizou e colocou Bordon para trabalhar. A Inter se defendia como podia e poucas vezes apareceu no setor ofensivo, enquanto o Ajax buscava sempre manter a posse de bola em progressão ao ataque.

Geracional, aquele time do Ajax bateu a Inter para conquistar o segundo dos três títulos europeus que levantou em sequência (Anefo)

Aos 12 minutos, Invernizzi precisou fazer uma troca forçada, já que Mario Giubertoni se lesionou. O volante Mario Bertini entrou em seu lugar e Oriali passou a atuar no lado esquerdo da zaga – mas sem deixar de efetuar marcação individual sobre Cruyff. Aos 25, já nesse novo contexto tático, os comandados de Kovacs tiveram uma grande chance para abrir o placar. Blakenburg tocou para Ruud Krol, o lateral-esquerdo arrematou de longa distância e acertou o pé da trave direita. Logo em seguida, mais uma chegada perigosa: Keizer cobrou falta e assustou o arqueiro nerazzurro.

Após tanto sofrer na defesa, a Inter criou oportunidade de gol aos 32 minutos. Boninsegna caiu pela direita, achou uma brecha em meio à marcação de Barry Hulshoff e chutou em diagonal; a finalização quase pegou o goleiro Heinz Stuy desprevenido. Na reta final do primeiro tempo, o Ajax balançou as redes da Beneamata, mas o tento acabou invalidado pelo árbitro francês Robert Héliès. Na jogada, o atacante Sjaak Swart ajeitou com a mão antes de escorar um cruzamento para o barbante. O intervalo chegou, com a sensação de ampla superioridade dos neerlandeses na etapa inicial.

Apesar da marcação efetuada pela Inter, Cruyff brilhou na etapa final (Anefo)

No entanto, se havia faltado bola na rede durante o primeiro tempo, Cruyff resolveu esse problema no segundo. E não demorou muito para fazê-lo. Dois minutos depois de Héliès apitar o reinicio do embate, o camisa 14 abriu o placar. E, se por baixo, Oriali estava sendo um marcador implacável, o jeito era mudar a estratégia.

Assim, o lateral-direito Wim Suurbier alçou bola à área e Bordon não conseguiu cortar o cruzamento – em sua saída em falso, acabou trombando com Oriali. A redonda sobrou nos pés de Cruyff e o craque, finalmente livre da marcação do camisa 4 nerazzurro, só empurrou para o gol vazio. A torcida presente no De Kuip entrou em êxtase.

O Ajax tentou criar suas jogadas pelo chão, mas só teve sucesso quando levantou bolas na área (Anefo)

Cruyff estava a fim de jogo, de modo que era um dos jogadores que mais davam trabalho à forte defesa italiana – ou a Oriali, melhor dizendo. Ele partia partia para cima dos defensores, escondia a bola, girava sobre os marcadores, costurava na entrada da área… O gênio holandês estava infernizando a Inter, embora o “carrapato” continuasse grudado.

Os nerazzurri, após o Ajax abrir o placar, tentaram responder à altura: Boninsegna teve uma chance e arriscou o chute, que morreu pelo lado de fora da rede. Invernizzi tentou dar gás novo à equipe interista, com a entrada de Sergio Pellizzaro na vaga do apagado Jair da Costa. A alteração, no entanto, não surtiu efeito, e os holandeses marcaram mais uma vez, novamente em jogada pelo alto: no lado esquerdo do ataque, Keizer levantou bola à área, Cruyff saltou e cabeceou firme, no ângulo esquerdo de Bordon, que ficou sem reação.

A festa do Ajax pelo primeiro gol: trombada entre Bordon e Oriali foi decisiva para Cruyff abrir o placar (Anefo)

O gol selou a vitória do Ajax, ainda que faltassem cerca de 15 minutos para o fim do duelo. A Inter estava entregue em campo. O time de Amsterdã, aliás, quase anotou o terceiro, em chute potente de longa distância de Arie Haan. Conforme ia se aproximando o fim da partida, a torcida dos Godenzonen se empolgava cada vez mais com os gritos de vitória. O apito final soou, os torcedores invadiram o gramado e a festa do campeão invicto estava completa.

Na temporada seguinte, o Ajax voltaria a conquistar a Copa dos Campeões superando outra adversária italiana na final: a Juventus, em Belgrado. Tricampeão consecutivo praticando um futebol total. Após o período mágico, a equipe neerlandesa só tornaria a ganhar a competição em 1995, vencendo (advinha só?) mais um time do Belpaese: o Milan. Os Godenzonen chegariam novamente à decisão no ano posterior, mas perderiam para a Juventus, nos pênaltis, 4 a 2.

Após a derrota para o Ajax, a Inter perdeu forças no âmbito continental e teve de esperar quase duas décadas para voltar a uma decisão europeia – a da Copa Uefa de 1991, contra a Roma. Os nerazzurri disputaram quatro finais do torneio, vencendo três delas, mas precisaram de 38 anos para tornarem à finalíssima da maior competição de clubes do mundo.

O fim do jejum se deu em 2010, quando os comandados de José Mourinho varreram a Europa, bateram o Bayern Munique na final e conquistaram a Tríplice Coroa, repetindo um feito obtido, por exemplo, por aquele Ajax de 1972. Curiosamente, essa Inter superou o Barcelona de Pep Guardiola, discípulo de Cruyff, nas semifinais, adotando um sistema de jogo baseado no catenaccio.

Ajax 2-0 Inter

Ajax: Stuy; Suurbier, Hulshoff, Blankenburg, Krol; Haan, Neeskens, Mühren; Swart, Cruyff, Keizer. Técnico: Stefan Kovács.
Inter: Bordon; Bellugi, Burgnich, Giubertoni (Bertini), Facchetti; Bedin, Oriali; Jair da Costa (Pellizzaro), Mazzola, Frustalupi; Boninsegna. Técnico: Giovanni Invernizzi.
Gols: Cruyff (47′ e 78′)
Árbitro: Robert Héliès (França)
Local e data: estádio De Kuip, Roterdã (Países Baixos), em 31 de maio de 1972

Compartilhe!

Deixe um comentário