Na década de 1930, a Lazio mesclou o seu azul celeste ao verde e amarelo brasileiro para montar uma equipe que não foi multicampeã, mas ficou marcada na história do clube e do futebol: afinal, foi a primeira vez que um clube montou uma colônia de jogadores provenientes de um país estrangeiro. O esquadrão foi apelidado de Brasilazio e começou a se formar por iniciativa de Remo Zenobi, presidente laziale que tinha forte ligação com a nação sul-americana.
Zenobi tinha negócios no Brasil e passou a olhar com carinho para o futebol do país em meados de 1930, no segundo ano de sua gestão. O motivo do garimpo da Lazio era simples e ia além da qualidade técnica dos atletas. Se devia, na verdade, aos seus passaportes: o clube buscava jogadores de ascendência italiana, que tinham dupla nacionalidade e não eram considerados estrangeiros pelas leis de uma Itália marcada pela aversão ao diferente, atrelada à ascensão do fascismo. O cartola, portanto, concentrava as buscas nas regiões Sul e Sudeste do país, onde os imigrantes italianos que cruzaram o Atlântico a partir de meados do século XIX se instalaram de forma mais robusta.
As primeiras contratações ítalo-brasileiras da Lazio aconteceram em 1930 e foram as dos primos Otávio e João Fantoni, junto ao Palestra Itália de Belo Horizonte – atual Cruzeiro. Conhecidos no Brasil como Nininho e Ninão, eles foram tratados como apostas, já que naquele tempo o futebol não era tão globalizado (basta lembrar que a primeira Copa do Mundo acabara de ser realizada) e pouco se sabia sobre o nível dos campeonatos de fora da Europa. À época, o esporte sequer era profissionalizado no Brasil e os atletas do país estavam longe de terem a grife atual.
Os Fantoni chegaram com a temporada em andamento e puderam jogar na reta final do Campeonato Italiano de 1930-31, ajudando a Lazio a ficar na oitava posição do torneio. Enquanto Otávio – já italianizado como Ottavio ou Fantoni II – atuava no meio-campo, seu primo João – Giovanni ou Fantoni I – atuava na linha de frente no esquema de Ferenc Molnár.
Ninão entregou seis gols em 10 partidas da Serie A, sendo um deles em um empate por 2 a 2 contra a Roma, no quarto dérbi romano da história. Em seus primeiros meses de Itália, o atacante também se tornou pai e teve as despesas do parto da esposa bancadas pelo ditador Benito Mussolini, próximo à diretoria celeste da época. Em homenagem ao político, deu ao filho o nome de Benito Romano Fantoni – inclusive, ele se tornou o quarto da linhagem futebolística, como zagueiro, e defendeu clubes como Cruzeiro, Vasco e Atlético-MG.
Terminada a temporada, chegou a segunda leva de brasileiros. Cinco atletas deixavam o futebol paulista para se juntar à Lazio: o zagueiro Armando Del Debbio e o atacante Amphilóquio (ou, na Itália, Anfilogino) Guarisi, o Filó, foram contratados junto ao Corinthians; do Palestra Itália de São Paulo (atual Palmeiras), chegavam o meia-atacante Amílcar Barbuy e o zagueiro Pedro Rizzetti, o Pepe; e, do Santos, o meia-atacante André Tedesco foi contratado. Se engana quem pensa que os atletas desceram no aeroporto seguidos por câmeras da imprensa local e distribuindo autógrafos para os torcedores. Os jogadores embarcaram no SS Conte Verde, no porto de Santos e, depois de duas semanas a bordo, chegaram à cidade portuária de Gênova, para finalmente rumar à capital italiana.
A Lazio não era a única a buscar talentos na América do Sul. O êxodo brasileiro para o futebol europeu estava em alta, e a principal motivação da parte dos jogadores era o desejo em atuar onde o esporte era devidamente valorizado. “Vou para a Itália. Cansei de ser amador no futebol, onde essa condição há muito deixou de existir, maculada pelo regime hipócrita da gorjeta que os clubes dão aos seus jogadores, reservando-se para si o grosso das rendas. Sou pobre. Sou um pária do futebol. Vou para o país onde sabem remunerar a capacidade do jogador”, escreveu Amílcar Barbuy em um relato, logo após deixar o Palestra Itália paulistano. As várias perdas de atletas para outros mercados fizeram o futebol brasileiro caminhar para a profissionalização, que veio de fato em 1933.
Mas, antes disso, ainda na temporada 1931-32, a Lazio não se contentou com “apenas” cinco contratações ítalo-brasileiras. Em agosto de 1931, outros três brasileiros atravessaram o Oceano Atlântico para jogar na capital italiana: o meia José Castelli, ou Rato, e Alexandre De Maria, ex-corintianos e Henrique Serafini, que deixava o Palestra de São Paulo. Em apenas seis meses, dez brasileiros e a sua técnica encorparam o plantel da equipe romana: era quase a metade do elenco, que contava com 21 atletas.
Até mesmo o comando técnico da equipe o presidente Zenobi decidiu confiar a um ítalo-brasileiro. O presidente dispensou o húngaro Molnár e entendeu que o veterano Amílcar era capaz de acumular as funções de jogador e treinador, ao lado do paulista Matturio Fabbi, seu auxiliar. Essa dupla jornada não era novidade para o atacante, que já havia se desdobrado em ambas as atribuições quando atuava no Brasil, tanto no Corinthians quanto no futuro Palmeiras. Estava, portanto, formada a equipe mais brasileira fora de seu país de origem e a imprensa não demorou a cunhar o termo Brasilazio – que, hoje, se refere ao período que compreende a história do time biancoceleste entre 1931 e 1935.
Antes mesmo de a Brasilazio entrar em campo, a repercussão do time em São Paulo era grande. Il Littoriale, diário esportivo oficial do Partido Fascista, publicou uma reportagem bastante exagerada, no fim de agosto de 1931, na qual os novos contratados pelo clube romano, liderados por Del Debbio, se declaravam “absolutamente italianos” e, supostamente, exibiam os sotaques regionais que aprenderam com seus pais. Na capital paulista, o Jornal dos Sports não poupou críticas: chamou os atletas de “vendidos”, “renegados”, “ingratos” e “repugnantes”. Amílcar até tentou colocar panos quentes, mas os jornalistas brasileiros mantiveram o tom elevado, alegando que seu brio patriótico havia sido atingido.
Depois dessa confusão extracampo, a Brasilazio teve uma primeira temporada discreta. O foco era todo na Serie A, afinal era a única competição a ser disputada, e mesmo assim, a equipe lutou contra o rebaixamento até o final: acabou se livrando do descenso e assegurando a 13ª posição no torneio. Com sete brasileiros entre os titulares, os principais destaques foram os homens de frente: Filó foi o artilheiro da equipe, com 12 gols marcados, e teve a contribuição de Ninão e do gigante Alexandre De Maria. O trio concentrou 75% dos tentos anotados pela Lazio na temporada.
No ano seguinte, Amílcar se aposentou dos gramados e voltou para o Brasil, para treinar o Corinthians, dando lugar ao técnico austríaco Karl Stürmer. Tedesco também fez as malas e foi servir a Barbuy no Timão, já que recebeu pouco tempo de jogo na sua única temporada no Belpaese. A Lazio tratou de buscar um substituto também no Brasil: o atacante Leonídio Fantoni (também conhecido como Niginho ou Fantoni III), revelado pelo Palestra mineiro e irmão mais novo de Ninão. A equipe romana também contratou o meia Duilio Salatin, mas problemas em seu registro fizeram com que ele ficasse inelegível para disputar a Serie A e pudesse entrar em campo apenas em amistosos.
A temporada 1932-33 até começou bem para a Lazio, que na sexta rodada, conseguiu derrotar a Roma. Os gols de Rato e De Maria – italianizado como Alessandro De Maria e, às vezes, chamado erroneamente de Alejandro Demaría – garantiram o triunfo por 2 a 1, naquela que viria a ser a primeira vitória laziale em dérbis romanos. Pouco depois, a dupla brasileira voltaria a marcar, na expressiva vitória conquistada sob o Alessandria, por 6 a 0. No entanto, apesar do bom começo, a Lazio não alçou grandes voos e terminou apenas na décima posição do certame nacional.
Mesmo sem resultados expressivos, a Brasilazio viveu o seu ápice em 1932-33 e 1933-34, período em que oito dos 10 ítalo-brasileiros do elenco costumavam atuar como titulares. É o que foi registrado na foto que abre este texto, na qual o onze inicial da Lazio enverga o uniforme de visitante para um amistoso de pré-temporada contra a Sampierdarenese. Da esquerda para a direita temos, de pé, Fantoni III, o meia italiano Giovanni Battioni, Rato e De Maria; ajoelhados, encontram-se Filó, Serafini, o defensor Armando Bertagni e o goleiro Ezio Sclavi, além de Del Debbio, Nininho e Duilio.
Dentre estes brasileiros, De Maria e Filó ganharam um lugar especial. O primeiro, por ter anotado uma tripletta e feito a Lazio empatar um clássico contra a Roma, que perdia por 3 a 0 – com cinco gols, Alexandre é o terceiro maior goleador celeste no dérbi. O segundo, pela relevância: após a saída de Sclavi, se tornou a principal referência do elenco e, por isso, herdou a faixa de capitão. Também correspondeu dentro de campo, sendo o grande nome da Lazio na temporada que antecedeu a Copa do Mundo de 1934, que seria disputada em plena Itália. O time capitolino novamente terminou o campeonato na décima posição, mas Guarisi colaborou com 12 gols em 33 partidas e manteve o posto na seleção italiana, treinada por Vittorio Pozzo.
O atacante foi o único laziale chamado para o Mundial, na condição de suplente, e atuou na estreia da Squadra Azzurra na competição, ante os Estados Unidos. No fim das contas, ao lado de craques como Giuseppe Meazza, Angelo Schiavio e Giovanni Ferrari, faturou a Copa. Foi o primeiro jogador da Lazio a ter esta honra e, ainda por cima, acabou sendo o primeiro brasileiro a levantar a Taça Jules Rimet.
O ano de 1935 foi o de melhor desempenho da Brasilazio, mas marcou também o último capítulo dessa história. Depois da Copa, o presidente Eugenio Gualdi fechou com o meia Attilio Ferraris, campeão do mundo com a Nazionale, e com um Silvio Piola ainda garoto – o atacante faria história na capital, uma vez que ainda hoje é o maior artilheiro do clube, com 159 gols, e da história da Serie A, com 274. Com a saída de Rato para o Corinthians e as aposentadorias de Pepe e Duilio, o número de brasileiros no elenco biancoceleste caiu para sete.
A Lazio, treinada pelo checoslovaco Walter Alt, deu liga e chegou até a liderar a Serie A, na quinta rodada, mas no fim das contas, concluiu o torneio na quinta colocação. Alguns altos e baixos afetaram aquela campanha, sendo o principal deles uma tragédia: a morte de Otávio Fantoni, no final do primeiro turno. Durante empate por 1 a 1 contra o Torino, Nininho sofreu uma pancada forte no nariz e foi levado imediatamente ao hospital. O jogador passou quase três semanas no hospital, desenvolveu sepse e acabou falecendo em virtude da grave infecção, já que ainda não existiam medicamentos à base de penicilina. A sua morte mobilizou todo o futebol italiano.
A Brasilazio chegou ao fim em 1935, quando à exceção de Filó, todos os seus compatriotas retornaram para atuar no já profissionalizado futebol brasileiro. Naquele mesmo ano, a Lazio adquiriu o ponta Benedicto, mas é consenso entre especialistas de que ele não pode ser considerado como integrante do período histórico em que o celeste ganhou traços em verde e amarelo.
Em março de 1936, houve um último encontro entre os principais nomes daquele esquadrão laziale em Belo Horizonte. Uma equipe recheada de brasileiros que passaram pela Lazio – Del Debbio, Pepe, Duilio, Serafini, Rato, Tedesco e De Maria – enfrentou, em amistoso, o Cruzeiro de Ninão, Niginho e Orlando Fantoni – que jogaria na Lazio no final da década de 1940. O encontro, que teve a arbitragem de Amílcar Barbuy, terminou com vitória dos ex-celestes, por 4 a 1. A renda foi doada para o sustento dos dois filhos de Nininho, num gesto que definiu o sentimento comunitário e de forte amizade que movia a Brasilazio.