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Pequenos milagres: com garra, o Catania se tornou sinônimo de surpresa na Itália

Quando se fala de futebol na Sicília, principalmente nas duas últimas décadas, muita gente pensa logo no grande Palermo que marcou época entre 2004 e 2011, com protagonistas como Fabrizio Miccoli, Josip Ilicic, Javier Pastore e Edinson Cavani. Porém, existe um outro tradicional time na ilha localizada ao sul da Península Itálica, sediado em uma cidade fundada há quase três milênios, aos pés do Monte Etna. Trata-se do Catania, que teve duas ótimas passagens pela Serie A, na década de 1960 e em meados dos anos 2000 e 2010.

O futebol já era praticado na Sicília desde o início do século XX, mas apenas por times amadores. No final da década de 1920, a publicação da Carta de Viareggio pelo Comitê Olímpico Italiano gerou uma onda de profissionalização de clubes no país e, então, foi criado o Catania, uma fusão entre várias agremiações diletantes da cidade homônima. A equipe passou bons anos alternando entre as categorias inferiores, até ser refundada no pós-guerra e recomeçar da terceira divisão.

Três anos após a reorganização, o Catania já estava na Serie B e, em mais cinco, teve sua primeira breve experiência na elite italiana. O time comandado pelo ponta dinamarquês Karl Aage Hansen foi 12º colocado na temporada 1954-55, mas acabou sendo rebaixado no tapetão, por conta da comprovação do suborno da diretoria a um árbitro. Depois de passar o resto da década de 1950 no segundo escalão nacional, a equipe siciliana retornou à máxima categoria em 1960, nos meses iniciais da gestão do presidente Ignazio Marcoccio.

Aquele Catania recebia um investimento muito pequeno e era, inclusive, um espelho de sua própria região – que, historicamente, não ganha a atenção devida do governo italiano. Mesmo assim, os anos 1960 foram de bons momentos para o time siciliano. A equipe subiu sob o comando do técnico Carmelo Di Bella e, tendo o meia ofensivo Adelmo Prenna como destaque até 1964, passou a maior parte daquela década na Serie A.

Pizzul, do Catania, marca Omar Sívori, da Juventus: em 1961, a equipe siciliana acabou ajudando a Velha Senhora a ser campeã (Il Giornale del Ricordo)

Logo no primeiro ano dessa sequência na elite, o Catania entrou para a história. No dia 4 de junho de 1961, se disputava a última rodada do campeonato e o etnei venceram a Inter de Helenio Herrera, Giacinto Facchetti e Armando Picchi por 2 a 0. O resultado tirou as chances de título dos milaneses e fez a Juventus celebrar a conquista de seu 12º scudetto.

No primeiro turno, a Inter havia vencido o Catania em casa por 5 a 0, com direito a quatro gols contra dos rossazzurri – sendo dois de Franco Giavara. Em tom de brincadeira, Herrera declarou que os etnei mais pareciam “um time de operadores de telégrafo”. O elenco da equipe siciliana não digeriu bem aquelas palavras e as utilizou como motivação para o jogo de volta, no estádio Cibali.

Mordidos, os jogadores do Catania entraram em campo determinados a humilharem a Inter, utilizando a seu favor as péssimas condições do terreno – naquela época, havia mais areia do que grama no Cibali. No fim das contas, uma bomba de Mario Castellazzi e um tento fortuito do argentino Salvador Calvanese (que anteciparia uma forte relação dos rossazzurri com os portenhos) garantiram um resultado bastante inesperado nesse fatídico dia. O desfecho foi tão surpreendente que, durante a partida, o narrador romano Sandro Ciotti cunhou uma frase que até hoje é repetida na Itália quando alguma zebra se verifica numa peleja: “Clamoroso al Cibali”, exclamou o cronista, repetidas vezes.

O fato é que aquele Catania passava longe de ser um time de telegrafistas. Afinal, Di Bella e sua trupe, formada por Prenna, Calvanese, Castellazzi, Giorgio Michelotti e Bruno Pizzul (este se tornaria, posteriormente, um dos maiores narradores esportivos do país) conseguiram o oitavo lugar na Serie A. Nos anos seguintes, a equipe siciliana também ganhou, sempre no Cibali, de rivais como Milan e Juventus – e ficou famoso por isso. Até 1965, os rossazzurri sempre ficaram entre os 11 primeiros colocados do Italiano, repetindo o oitavo posto duas vezes. Em 1964, foram vice-campeões da Copa dos Alpes.

Di Bella foi o comandante do Catania durante os grandes momentos na década de 1960 (Quelli del 46)

Nesse período de sucesso esportivo, o Catania contou com participação brasileira. Sem dúvidas, o habilidoso meia Chinesinho, ídolo de Roberto Baggio, foi o grande nome dos elefantes nas temporadas de 1963-64 e 1964-65, mas os atacantes Roberto Battaglia e Miranda também deram uma pequena contribuição no bom quinquênio rossazzurro. A equipe de Di Bella também foi auxiliada pelo goleiro Giuseppe Vavassori e pelo meia Horst Szymaniak, que tiveram passagem pelas seleções da Itália e da Alemanha Ocidental, respectivamente.

Com elenco enfraquecido, o time siciliano não resistiu e caiu em 1965-66. O Catania até retornou à elite em 1970, mas não conseguiu permanecer na categoria e foi rebaixado depois de apenas uma temporada. Depois disso, foram 35 anos perambulando pelas divisões inferiores, com direito a uma passagem pelo sexto nível do futebol italiano, no fim da década de 1990.

O ponto mais alto – e excepcional – desse período nefasto ocorreu em 1983-84, quando os rossazzurri disputaram a Serie A com um plantel formado por nomes como Claudio Ranieri, Giuseppe Sabadini, Aldo Cantarutti e os brasileiros Pedrinho e Luvanor. No entanto, o Catania teve um desempenho mixuruca e, com apenas uma vitória, foi lanterna da competição, sendo rebaixado com quatro rodadas de antecedência.

Curiosamente, apesar de todo o insucesso esportivo, o Catania ganhou popularidade na Sicília e no mundo esportivo durante esse período. Isso se deu por conta de seu folclórico presidente, Angelo Massimino, conhecido pelo estilo vulcânico e falastrão. Il Presidentissimo faleceu em 1996, vítima de um trágico acidente automobilístico – seis anos depois, o Cibali foi rebatizado com o seu nome.

Na primeira campanha de seu retorno à elite nos anos 2000, o Catania precisou superar contratempo em clássico siciliano (New Press/Getty)

Em 2004, quando estava na Serie B, o Catania foi adquirido por Antonino Pulvirenti, um filho da terra. O empresário do ramo alimentício, que já fora presidente do Acireale, bolou um plano de recuperação do clube e, tendo o administrador Pietro Lo Monaco como seu braço direito, teve sucesso em sua execução. Comandados pelo ofensivo técnico Pasquale Marino e pelos atacantes Gionatha Spinesi e Giuseppe Mascara, os elefantes voltaram à primeira divisão em 2006.

Durante a gestão Pulvirenti, o Catania conseguiu permanecer mais tempo na elite do que na época do presidente Marcoccio – foram oito anos, dois a mais do que conseguira o antecessor. Porém, ao contrário da continuidade que distinguiu a primeira “milagrosa” passagem dos rossazzurri pela Serie A, quase totalmente conduzida por Di Bella, este período ficou marcado pela instabilidade gerada pelas decisões tomadas pelo vulcânico dirigente: 11 treinadores comandaram os etnei do início da temporada 2006-07 ao fim de 2013-14.

A trajetória dos sicilianos começou com Marino garantindo a salvezza em 2007, num contexto complicado. Naquela temporada, o acirradíssimo dérbi com o Palermo voltava a ser disputado na elite após 44 anos – acontecera em 1961-62 e 1962-63 – e, depois de derrota por 5 a 3 numa emocionante peleja ocorrida no início do primeiro turno, os rossazzurri queriam dar o troco. O clássico do returno ocorria em meio aos festejos de Santa Ágata, padroeira de Catania, mas o que ocorreu naquela noite de inverno no estádio Angelo Massimino nada teve de religioso.

O princípio de uma briga de torcidas na área externa da praça esportiva teve a reação de policiais e se tornou uma batalha campal, que deixou 71 feridos e um morto – o inspetor Filippo Raciti. Quando o pelotão de choque tentava conter o início da confusão, o gás lacrimogêneo das bombas lançadas foi levado pelo vento para as arquibancadas e o gramado do antigo Cibali. Isso provocou pânico entre os torcedores que acompanhavam o jogo, alheios ao conflito que acontecia, e obrigou o árbitro Stefano Farina a interromper a partida por conta do ar irrespirável.

Silvestre e Álvarez fizeram parte da colônia argentina do Catania (AFP/Getty)

Quase uma hora depois, o clássico foi retomado e terminou com vitória do Palermo, por 2 a 1. Contudo, as consequências para o Catania foram além da derrota: o time teve de mandar seus compromissos em campo neutro pelo restante da Serie A. Também precisou fazê-lo com portões fechados até a 35ª rodada, até que um recurso do clube foi aceito pelo júri esportivo e a presença de público foi liberada nas duas jornadas remanescentes. Em Bolonha, diante de alguns poucos torcedores, os etnei arrancaram empate com o Milan e venceram o Chievo em confronto direto pela permanência. Os rossazzurri celebraram às custas do clivensi, rebaixados.

Os sustos continuaram no campeonato seguinte, após Marino rumar à Udinese. Silvio Baldini assumiu o seu lugar e entregou um rendimento inferior, compensado pela classificação às semifinais da Coppa Italia. Por conta dos riscos de rebaixamento, em março de 2008, a diretoria decidiu mudar o comando do time e contratou Walter Zenga. O ex-goleiro da Inter não conseguiu superar a Roma e levar o Catania à decisão da copa, mas somou oito pontos em sete rodadas na Serie A e evitou a queda para a segundona.

Zenga foi confirmado no cargo para a temporada seguinte e inaugurou uma época memorável para a torcida rossazzurra: o Catania passou a quebrar, anualmente, seu recorde de pontuação na Serie A. Em 2009, o ex-arqueiro levou o time à 15ª colocação, com 43 pontos; em 2010, Sinisa Mihajlovic corrigiu o rumo equivocado de Gianluca Atzori e somou 45, na 13ª posição; em 2011, Diego Simeone também pegou o bonde andando, depois da demissão de Marco Giampaolo, e fez os etnei concluírem a competição em 13º, com 46.

Por fim, Vincenzo Montella, em 2012, e Rolando Maran, em 2013, chegaram a colocar a modesta equipe siciliana na briga por vagas europeias. Ainda que não tenham atingido o feito, os dois levaram o Catania a campanhas muito respeitáveis: respectivamente, 11º lugar, com 48 pontos, e oitavo, com 56. Em ambos os anos, os elefantes ficaram à frente do Palermo na tabela. O rival, aliás, foi rebaixado à segundona em 2013, completando a festa dos etnei.

Simeone foi um dos técnicos que passaram com sucesso pelo Catania do baixinho Mascara (Getty)

Com 49,1% de aproveitamento na temporada 2012-13, os rossazzurri ficaram próximos de igualarem o desempenho de 1960-61, quando as vitórias ainda valiam 2 pontos. Com 36 somados em 68 disputados, o time treinado por Di Bella obtivera rendimento equivalente a 52,9% – que ainda é o maior da história dos elefantes.

A história desse Catania jamais teve craques incontestáveis ou medalhões já estabelecidos como protagonistas – o que torna os seus feitos ainda mais louváveis. Na construção do elenco, o diretor esportivo Lo Monaco priorizava dois filões. Inicialmente, buscou italianos rodados nas categorias inferiores e, assim, buscou atletas como os já citados Mascara e Spinesi, mas também Giovanni Marchese, Francesco Lodi e o capitão Marco Biagianti. Os veteranos Andrea Sottil, Lorenzo Stovini e Nicola Legrottaglie foram felizes exceções.

Lo Monaco também soube garimpar mercados periféricos. A aquisição do japonês Takayuki Morimoto chamou a atenção do país asiático para o clube siciliano, mas foi no continente sul-americano que o dirigente se especializou. No além-mar, descobriu o lateral-esquerdo peruano Juan Manuel Vargas e o ponta uruguaio Jorge Martínez, mas fez os seus principais negócios na Argentina: a colônia albiceleste do Catania chegou a ter 11 integrantes em 2009-10 e 2012-13; 13 em 2010-11 e 14 em 2011-12 e 2013-14.

Em terras portenhas, o diretor fez ou encaminhou, através da rede de intermediários que construiu, algumas das contratações mais interessantes do Catania – até romper com Pulvirenti, em maio de 2012, e encerrar a sua primeira passagem pelos etnei. Lo Monaco pescou o goleiro Mariano Andújar; os zagueiros Matías Silvestre e Nicolás Spolli; o lateral-direito Pablo Álvarez; os meio-campistas Mariano Izco, Ezequiel Carboni, Cristian Llama e Pablo Ledesma; e os pontas Alejandro “Papu” Gómez, Pablo Barrientos e Lucas Castro. Além disso, os já rodados “hermanos” Albano Bizzarri, arqueiro, Sergio Almirón, volante, e Gonzalo Bergessio e Maxi López, atacantes, encorparam o grupo rossazzurro nesses anos.

Com Maran e Papu Gómez, o Catania quase garantiu vaga na Liga Europa, em 2013 (Getty)

Tudo isso teve um fim dramático, como um tango argentino, em 2014. O Catania foi rebaixado para a Serie B depois de oito anos seguidos na elite e, ao contrário do que se esperava, não lutou para retornar à primeira categoria na temporada seguinte. O elenco perdeu peças importantes e, para piorar, foi se desmanchando ao longo da segundona.

No fim das contas, se salvou do descenso à terceirona por poucos pontos. Ou melhor, quase: foi descoberto que o presidente Pulvirenti subornou adversários para conseguir cinco vitórias (a 100 mil euros cada) e, assim, livrar os rossazzurri da queda. Preso, Nino confessou e foi banido por cinco anos. O Catania, obviamente, foi rebaixado com efeito imediato.

Depois da queda para a terceira categoria, o Catania jamais se recuperou. A holding de Pulvirenti ficou à beira da falência e a falta de liquidez impediu o dirigente de investir em elencos capacitados para objetivos mais ambiciosos. O time até brigou para voltar à Serie B, mas não conseguiu superar os playoffs de acesso em quatro oportunidades. No final de 2021, o clube foi declarado falido e, em março de 2022, ganhou um novo presidente. Agora, os torcedores depositam as suas esperanças na gestão do empresário Benedetto Mancini.

Ficha técnica: Catania

Cidade: Catania (Sicília)
Estádio: Angelo Massimino – Cibali
Fundação: 1929
Apelidos: Etnei, Rossazzurri, Elefanti
As temporadas (apenas séries A e B): 17 na Serie A e 34 na B
Os brasileiros*: Adriano Mezavilla, Babú, Bruno Vicente, Caetano Calil, César, Chinesinho, Claiton, Dráusio, Felipe Estrella, Fernando Menegazzo, Gladestony, Guly do Prado, Inácio Piá, Jeda, Luvanor, Marcelinho, Miranda, Pedrinho, Raphael Martinho, Reginaldo, Roberto Battaglia e Wellington.
* Além dos citados, o brasileiro naturalizado belga Luís Oliveira também jogou no Catania.
Time histórico: Mariano Andújar (Giuseppe Vavassori); Claudio Ranieri (Pablo Álvarez), Giorgio Michelotti (Nicola Legrottaglie), Matías Silvestre (Nicolás Spolli), Giovanni Marchese (Juan Manuel Vargas); Mariano Izco (Lucas Castro), Francesco Lodi (Sergio Almirón), Marco Biagianti (Adelmo Prenna); Giuseppe Mascara (Jorge Martínez), Gionatha Spinesi (Gonzalo Bergessio), Alejandro Gómez (Pablo Barrientos). Técnico: Carmelo Di Bella.

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