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Pequenos milagres: os leões do Venezia merecem o céu

O Brasil recebeu milhões de imigrantes italianos no final do século XIX e no início do XX. A maior parte deles deixou o Vêneto, no nordeste do país, e não é à toa que existam tantas influências venezianas em nomes de cidades, na culinária e na arquitetura por aqui. Além de ser a terra de origem de muitas famílias ítalo-brasileiras, a região também foi palco de façanhas futebolísticas, como as de Verona, Chievo, Vicenza, do Padova e, claro, Venezia.

Veneza é conhecida por ser uma cidade única, já que fica situada sobre uma centena de ilhas separadas por canais e conectadas por pontes. Além disso, guarda importância gigantesca sob os aspectos político, arquitetônico, cultural, artístico e econômico para toda a construção da identidade europeia desde o período medieval. Apesar disso, poucas pessoas fora da Itália sabem que “La Serenissima” tem um time de futebol centenário e com um estádio próprio num terreno pouco provável para construções de grandes proporções por lá. Porém, como sempre, a capital do Vêneto sempre superou e continua superando adversidades.

No dia 14 de dezembro de 1907, mais ou menos 20 jovens, completamente apaixonados por futebol, se reuniram em uma noite de inverno em um restaurante vizinho a um campinho em Veneza e fundaram o Venezia Foot Ball Club, originalmente com as cores azul e vermelho. O seu objetivo era o de terem uma associação autônoma, já que eles eram também integrantes de outros times da cidade. Parece um movimento simples para a época, mas fundar uma agremiação fora do eixo Turim-Gênova-Milão significava, àquela altura, ficar distante dos palcos de sucesso. O grupo, porém, estava determinado a mudar essa história.

Dois anos depois de trocar suas cores para preto e verde, no intuito de não ter as mesmas do Genoa, o Venezia inaugurou o seu estádio em 1913 – o Pier Luigi Penzo é o segundo mais antigo do país ainda utilizado por equipes profissionais, após o Luigi Ferraris, de Gênova. Com uma casa para chamar de sua, o time passou cinco temporadas na elite italiana até o início da Primeira Guerra Mundial. Quando o futebol retornou, em 1919, a associação não conseguiu manter o nível e foi rebaixada em 1922.

Em 1941, o goleiro Fioravanti se impõe a Gino Colaussi, da Juventus, sob os olhares de Puppo, Mazzola e Gian Emilio Piazza (Arquivo/Calcio Venezia)

Em 1930, o clube mudou de nome para Società Sportiva Serenissima e, quatro anos depois, para Associazione Fascista Calcio Venezia – ambas alterações para tentar evitar que dívidas contraídas anteriormente pudessem prejudicar a agremiação. Esta última mudança também marcou a sua primeira queda para a terceira divisão e a troca na direção no time, que agora teria o apoio do partido fascista local. Os venezianos logo subiram novamente para a Serie B e voltaram à elite em 1938, com direito a uma reestruturação do estádio Pier Luigi Penzo: a arena foi modernizada e teve a sua capacidade dobrada.

A primeira divisão havia sido remodelada no final da década de 1920, dando origem à Serie A, um torneio de pontos corridos – no qual o Venezia faria o seu debute. Para a ocasião, o time também recebeu jogadores para reforçar seu elenco, como o veterano goleiro Manlio Bacigalupo, o defensor Silvio Di Gennaro, os meio-campistas Sandro Puppo e Lidio Stefanini, mas, especialmente, Valentino Mazzola. Em 1939, o meia-atacante teve de prestar seu serviço militar na Marinha em Veneza, e acabou se transferindo à equipe neroverde. Os vênetos concluíram o campeonato em uma digna 10ª posição, chamando a atenção da imprensa nacional.

Na temporada seguinte, em 1940, a diretoria ofereceu uma nova chance ao técnico ítalo-argentino Giovanni Rebuffo, que havia passado pelo time neroverde dois anos antes. Os cartolas também fecharam com o goleiro Giorgio Fioravanti e um outro importantíssimo reforço: Ezio Loik, comprado junto ao Milan. Loik e Mazzola formaram uma dupla de meias criativos que fizeram história no futebol italiano, começando pelo Venezia.

A disputa da Serie A foi novamente satisfatória para os venezianos: a equipe venceu Inter, Roma e Bologna (que conquistou o scudetto naquela temporada) e, com dois empates, terminou a campanha sem perder para Juventus e Milan. A cereja do bolo, porém, estava reservada à Coppa Italia, disputada após o fim do campeonato nacional.

Num importante duelo com o Torino, o atacante Pernigo tenta dividir com o goleiro Alfredo Bodoira (Arquivo/Calcio Venezia)

Depois de eliminar Ternana, Udinese, Bologna e Lazio, o time do Vêneto chegou à decisão, realizada em jogos de ida e volta, contra a Roma. Amedeo Amadei marcou três vezes seguidas para os giallorossi, mas o Venezia buscou o empate na capital e, com gol de Loik, ganhou pelo placar mínimo em casa. De forma surpreendente, os neroverdi adicionavam o primeiro título à sua galeria, em 1941: assim, a equipe ganhou o direito de costurar, no peitoral de suas camisas, um scudetto estilizado com um fascio littorio, símbolo do fascismo.

Superado o status de surpresa, o Venezia entrou na temporada 1941-42 com objetivos maiores. Jogando no mais alto nível, Loik e Mazzola potencializaram os seus companheiros: além de combinarem 11 gols (seis e cinco, respectivamente), deram passes para que o uruguaio Juan Alberti anotasse sete e o centroavante Francesco Pernigo, 12. Vindos de trás, Puppo (3) e Stefanini (2), também deram as suas contribuições. Com tais números, a dupla de craques chegou à seleção italiana e o time vêneto brigou pelo título.

O Venezia fez um brilhante campeonato e chegou à 23ª rodada – eram 30 na época – com 28 pontos, um atrás da Roma e a dois do Torino. Naquela jornada, no Penzo, ocorreu o confronto direto entre lagunari e capitolinos terminou de forma melancólica para os donos da casa: os neroverdi perderam um pênalti e a partida para a Roma.

Dali em diante, o time do Vêneto ganhou quatro jogos (bateu, inclusive, o Toro), mas dois empates e uma derrota lhe impediu de alcançar os romanos, que se sagraram campeões: os leões alados concluíram o certame no terceiro lugar, quatro pontos abaixo da Loba. Os neroverdi também tiveram uma bela participação na Coppa Italia e avançaram até a semifinal, fase em que foram derrotados por 2 a 1 pelo Milan.

Mazzola, Loik, Bruno Novello, Pernigo e Piazza relaxam na concentração dos vênetos (Un Secolo di Calcio Venezia)

Em 1942, o time não conseguiu segurar seus craques. No verão, Loik e Mazzola foram vendidos para o Torino por 1 milhão de liras, valor exorbitante para a época. Os dois viriam a construir as bases do que seria o Grande Torino dos anos 1940, uma das maiores equipes do futebol de todos os tempos. O Venezia, por sua vez, prosseguiu com Alberti, Pernigo, Puppo e Víctor Tortora como destaques, só que caiu de rendimento: brigou para não cair e só se salvou após jogos-desempate com Triestina e Bari. Na Coppa Italia, o desempenho foi melhor, mas parar o Toro era impossível. Os neroverdi avançaram até a final, perdida por 4 a 0 para os grenás – com requintes de crueldade, Mazzola marcou o último da peleja.

Depois de uma pausa no campeonato nacional por motivos bélicos, o Venezia novamente teve contratempos que se sucederam a uma Guerra Mundial. O clube não se reencontrou após o conflito que chacoalhou o planeta e foi rebaixado em 1947, num processo que deu início a mais uma sequência de problemas financeiros e culminou em quatro anos de calvário na Serie C em meados da década de 1950.

O decênio seguinte foi um pouco melhor para o time vêneto, que se portou como um ioiô entre as duas primeiras divisões. Isso durou até 1968, quando os lagunari caíram para a Serie C, durante mais uma crise na direção do clube. Para piorar, dois anos depois, o estádio Pier Luigi Penzo foi atingido por um tornado e acabou parcialmente destruído. Por causa da severa situação financeira que o Venezia atravessava, a reconstrução dos setores danificados só foi feita em 1991.

Essa demora para a reforma ocorreu porque o clube não conseguia se reerguer. O Venezia caiu para a quarta divisão em 1977 e, seis anos depois, entrou em processo de falência para ser refundado sob uma nova administração – o que não foi o suficiente para conseguir elevar a sua performance de imediato. O empresário Maurizio Zamparini, que estava à frente do projeto dos lagunari, adquiriu o pequeno Mestre em 1987 e efetuou a fusão das agremiações. Dessa forma, o laranja mestrino foi incorporado ao preto e verde veneziano. Agora, a equipe era arancioneroverde.

Novellino foi o artífice do acesso do Venezia à elite, em 1998, e de sua permanência no ano seguinte (Arquivo pessoal)

Esta fusão proporcionou uma melhoria tremenda na performance do clube, que subiu imediatamente para a Serie C1 e três anos depois, foi promovido à segunda categoria. Com essa volta às divisões nacionais relevantes, o Venezia deixou de utilizar o estádio da cidade de Mestre (no qual jogou de 1987 a 1991) e reformou a sua lendária arena, eliminando a pista de atletismo. Ali, os neotricolores conseguiriam garantir a volta à elite em 1998, após uma ausência de mais de três décadas.

Além de Zamparini na presidência, aquele Venezia tinha Giuseppe Marotta como diretor de futebol e era treinado por Walter Novellino, que permaneceu no comando para a temporada 1998-99. A missão do técnico era muito complicada, uma vez que o time vêneto já era tido como rebaixado na Serie A, pelas condições em que o certame era disputado: além de ser o melhor e mais competitivo campeonato do mundo, o Italiano tinha quatro vagas de descenso para 18 participantes.

Frente a adversários poderosos, que contavam com jogadores como Alessandro Del Piero, Ronaldo, Oliver Bierhoff, Hernán Crespo, Christian Vieri, Francesco Totti, Márcio Amoroso e Gabriel Batistuta, o modesto Venezia precisaria se reforçar e torcer por um milagre. No primeiro turno, o time cumpria seu suposto destino e perambulava pela parte inferior da tabela: contratações como as de Filippo Maniero, Tuta, Fábio Bilica, Daniele Carnasciali e Massimo Taibi não conseguiam agregar valor, de forma robusta, a um elenco cujos destaques eram o defensor Gianluca Luppi e os volantes Giuseppe Iachini e Sergio Volpi.

A situação se manteve até janeiro de 1999, quando um jovem meia-atacante canhoto, então com 23 anos, aportou na cidade das gôndolas. O uruguaio Álvaro Recoba estava sem espaço na Inter e foi emprestado para o Venezia apenas para jogar mais. Afinal, quando ficou à disposição do time vêneto, na última rodada da Serie A, os arancioneroverdi ocupavam a lanterna do campeonato. Os lagunari tinham enorme dificuldade de marcar gols (eram sete em 15 jornadas, com uma partida a menos que os rivais) e somavam apenas 11 pontos, graças a duas vitórias e cinco empates, sendo quatro por 0 a 0.

A contratação de Recoba foi fundamental para que o Venezia escapasse do rebaixamento, em 1999 (Wikipedia)

Recoba fez a situação virar pelo avesso. No segundo turno, os leões alados marcaram 27 gols, venceram oito partidas e obtiveram 53% de aproveitamento no período. O uruguaio, sozinho, anotou incríveis 10 tentos em 19 jogos, incluindo uma tripletta na goleada por 4 a 1 sobre a Fiorentina. Além disso, El Chino municiou o centroavante Maniero, que fechou sua temporada de estreia com 13 bolas nas redes. O atacante, ademais, protagonizou o momento mais icônico da campanha, no 3 a 2 contra o Empoli: depois de um levantamento na área feito pelo craque sul-americano, Pippo não deixou a bola cair e, de chaleira, a colocou no ângulo.

Com a boa performance nos campos, o modesto Venezia conseguiu produzir uma média de público de quase 11 mil pessoas por jogo (ocupando quase toda a capacidade do estádio Penzo) e, em simbiose com a torcida, concluiu sua campanha de volta à Serie A na 11ª posição, com 42 pontos – quatro a menos que a gigante Inter, contra a qual, na penúltima rodada, a salvação foi confirmada. Os arancionerovrdi estabeleceram a mesma distância para a zona de rebaixamento, ocupada por Salernitana, Sampdoria, Vicenza e Empoli.

O ano seguinte se revelou bem mais complicado para a equipe de Veneza, que não repetiu o pequeno milagre. Novellino deixou La Serenissima para treinar o Napoli e foi substituído por Luciano Spalletti, ao passo que a diretoria não conseguiu manter Recoba no plantel e foi até o Vitória, clube com o qual tinha bom relacionamento, buscar Dejan Petkovic para substitui-lo. No entanto, Pet não correspondeu às expectativas e foi vendido poucos meses depois, enquanto o vulcânico Zamparini efetuou três trocas de técnicos durante 1999-2000. Os leões alados amargaram o descenso, 13 pontos atrás do primeiro time fora da zona da degola, e ainda foram humilhados nas semifinais da Coppa Italia – foram eliminados pela Lazio, campeã, por um placar agregado de 7 a 2.

Cesare Prandelli assumiu o time na Serie B 2000-01, com o dever de devolver o Venezia à elite, e prontamente cumpriu a missão. Porém, com poucos reforços e planejamento incipiente, a equipe vêneta fez uma campanha vexatória: só conseguiu a sua primeira vitória em dezembro de 2001 e foi rebaixada matematicamente em março de 2002.

Alívio no Penzo: Novellino e Recoba comemoram a salvação dos leões alados (Un Secolo di Calcio Venezia)

Nos anos seguintes, o Venezia viveu alguns dos momentos mais terríveis de sua história: faliu três vezes, chegou a jogar a Serie D e só em 2015, com a chegada de um grupo liderado pelo norte-americano Joe Tacopina, ex-vice-presidente da Roma e ex- mandatário do Bologna, é que o clube entrou nos eixos. Desde então, os arancioneroverdi têm apostado quase sempre em técnicos promissores, como Filippo Inzaghi – com o qual venceu a terceirona e a copa da categoria, em 2017 –, Alessio Dionisi e Paolo Zanetti.

Meses após Tacopina ceder o controle ao compatriota Duncan Niederauer, o resgate dos lagunari se completou: o Venezia retornou à Serie A para tentar permanecer por mais tempo do que na última vez em que disputou a categoria. A volta dos leões alados deve significar, também, o regresso à elite do velho e pitoresco estádio Penzo, que só pode ser acessado por barco ou a pé. Nuno Gomes, centroavante da Fiorentina em 2002, confessou que utilizou a tradicional gôndola para ir ao duelo entre violetas e tricolores daquele ano.

Para receber partidas da Serie A, o Penzo será modernizado e terá sua capacidade ampliada de 7 mil para 12 mil assentos – por isso, inicialmente o Venezia mandará os seus jogos no Paolo Mazza, em Ferrara. A estrutura do estádio não é das maiores, pelas limitações geográficas do terreno, mas as arquibancadas ficam bem próximas ao campo e são intimidadoras para os visitantes. Outra curiosidade da arena cercada pelas águas é que, a 20 metros de um dos setores, está localizada a bela Igreja de Santa Helena, construída em 1515.

O Pier Luigi Penzo jamais será abandonado, já que ele simboliza toda a resiliência do Venezia e da própria cidade. Tornados destruíram parte do estádio em duas ocasiões – a última em 2012 – e as inúmeras inundações em Veneza também contribuem para que a manutenção de sua estrutura seja permanente. A praça esportiva, porém, é a mais contundente prova material da história do Venezia Football Club. Apesar de tudo e de todos que tentaram destruir a antiga república situada ali, a arena e o clube, Veneza, o Penzo e o time seguirão firmes.

Ficha técnica: Venezia

Cidade: Veneza (Vêneto)
Estádio: Pier Luigi Penzo
Fundação: 1907
Apelidos: Arancioneroverdi, Leoni Alati, Lagunari
As temporadas (apenas séries A e B): 12 na Serie A e 37 na B
Os brasileiros*: Ânderson Luís, André Sangalli, Babú, Barreto, Bruno Bertinato, Bruno Siciliano, Diego Oliveira, Eliomar Marcon, Fábio Bilica, Jefferson Oliveira, Mancini, Marcelo Mateos, Marco Antônio, Marcone, Robert Anderson, Roberto Camata, Tácio e Tuta.
* Além dos citados, o brasileiro naturalizado belga Luís Oliveira também jogou no Venezia.
Time histórico: Giovanni Bubacco (Giorgio Fioravanti); Gianluca Luppi (Mario Ardizzon), Víctor Tortora, Sergio Carantini, Silvio Di Gennaro; Ezio Loik, Gianni Grossi (Mario Tesconi), Sandro Puppo; Álvaro Recoba (Paolo Poggi); Valentino Mazzola (Juan Alberti), Francesco Pernigo (Filippo Maniero). Técnico: Giovanni Battista Rebuffo.

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