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A longa trajetória do goleiro Lamberto Boranga é uma verdadeira lição de vida

O verão, sem sombra de dúvidas, é a estação mais importante para um italiano. Calor, praia, Copa do Mundo ou Eurocopa, férias, Ferragosto, Vespas, churrasco, gelato, pôr do sol às 21h, crianças brincando nas ruas o dia inteiro… é genuinamente contagiante. Uma experiência única, que muitas vezes não acontece nas grandes cidades turísticas, por conta da presença de cidadãos do mundo todo.

Uma passagem que resume bem a estação é a seguinte: “Quando os adultos pensam na juventude, não se lembram dos anos. Se lembram dos seus verões, de seus breves amores”. Até a banda francesa Phoenix se deixou influenciar pela famosa estética do estate italiano e produziu um álbum inteiro (Ti Amo, de 2017)  em que estão evidentes a felicidade, a leveza e o amor à vida presentes neste período do ano naqueles que residem na Velha Bota. A celeridade do verão nos recorda anualmente que a vida é breve – ou como diriam os antigos, tempus fugit, carpe diem.

Lamberto Boranga, indiscutivelmente, é um exemplo deste estado de espírito e vive como se estivéssemos em um verão eterno. Contaremos a incrível e calorosa história deste jovem de 76 anos, que jamais se deixou pautar por coisas materiais ou passageiras. Lamberto nos ensina a importância de aproveitarmos as experiências que a vida nos proporciona.

Na juventude, Lamberto estreou na elite com a camisa da Fiorentina (Archivi Farabola)

Boranga nasceu em 1942, em Foligno, e foi criado em Perugia – as duas cidades ficam na Úmbria. O goleiro começou jogando pelos peruginos, na terceira divisão, até que em 1966 se transferiu para a Fiorentina, estreando na Serie A. Sem espaço, se transferiu para a Reggiana, um dos times mais importantes de sua carreira.

Depois de duas temporadas na Serie B, o goleiro foi emprestado para o Brescia e prontamente retornou quando La Regia havia sido rebaixada para a terceirona. O time logo subiu de volta, com Boranga como titular e a expressiva marca de apenas nove gols sofridos em 38 jogos – um recorde ainda não batido. Lamberto passou mais um par de anos na baliza da Reggiana, jogando a segunda divisão, até que, em 1973, resolveu decretar uma mudança de ares.

O recém-promovido Cesena queria um goleiro experiente para poderem se manter na elite italiana, e recebeu muito mais que isso. Lamberto defendeu o gol alvinegro por quatro anos, participando da temporada mais bem-sucedida do clube, na qual os bianconeri alcançaram uma vaga na Copa Uefa. Vestindo a camisa alvinegra, Boranga também viveu, segundo ele mesmo, o melhor dia de sua carreira: foi quando o Cesena ganhou por 2 a 1 da Juventus.

Antes de uma partida, Boranga faz pose com uma expressão curiosa (Arquivo/Cesena)

Quando o time romanholo foi rebaixado para a segunda divisão, Lamberto já tinha 35 anos, mas veremos mais à frente que idade nunca foi e nunca será um fator que afetou as decisões do atleta. Depois de uma temporada no Varese, também da Serie B, Boranga foi para o Parma, que jogava a terceira divisão na época.

Ali, foi companheiro de time de um jovem Carlo Ancelotti. A dupla foi protagonista de uma das sequências mais emblemáticas e bizarras da campanha que levou os ducali para a segunda divisão. Em um jogo contra a Triestina, Boranga saiu da área para tentar parar um ataque adversário e, sem piedade, agarrou o atacante rival pelos cabelos, quase no meio de campo. O goleiro, obviamente, foi expulso e Carlo precisou segurar as pontas no gol. A partida terminou empatada.

Ao invés de receber um atestado de louco, Boranga mostrou ali que não poderia nem deveria ser julgado pela sua idade, e sim pelo seu coração e gana de vitória. Depois daquela temporada, o umbro ficou mais um ano no Parma e depois mais quatro no Foligno, clube de sua cidade natal, pelo qual acabou disputando a terceira e a quarta divisões.

Ícone do Cesena, o goleiro teve uma carreira bastante longeva como profissional – e não só (Getty)

Depois de sua aposentadoria no futebol profissional, aos 42 anos, o jogador teve algumas “recaídas” e voltou ao futebol, agora de divisões inferiores. Formado em medicina, Boranga era o médico do Bastardo, um time semiprofissional de sua região, quando, em 1992, a equipe ficou sem goleiros para uma partida. O médico, então com 50 anos, disputou apenas aquela partida, mas fez uma bela exibição debaixo das traves, plantando a semente para o que viria a ser, no futuro, uma volta mais sólida para os campos.

Em 2009, Lamberto assinou com o Ammeto e em 2011 com o Papiano, times também da Úmbria, participantes da oitava divisão italiana. No primeiro clube, foram modestos quatro jogos em um ano. No segundo, porém, Boranga fez admiráveis 49 jogos, distribuídos em quatro temporadas. Em 2018, se aventurou mais uma vez, agora na nona divisão, pela Marottese. Se o leitor pensa que essas passagens pelo futebol semiprofissional foram apenas uma distração na vida de Lamberto, se engana terrivelmente.

O goleiro não bebe, tem uma alimentação baseada em frutas e verduras, faz treinos com preparadores de goleiros profissionais, se exercita diariamente e, segundo o próprio, tem uma idade biológica de 52 anos. O próprio Boranga contou sua história no Planeta SporTV, em 2018, e tem compilações de vídeos que fazem com que acreditemos em suas palavras – vide estes melhores momentos de uma partida da Marottese e a grande defesa que fez contra Faustino Asprilla, no jogo comemorativo do centenário do Parma, em 2013.

Com quase 80 anos, Boranga continua participando de campeonatos de futebol na Itália (Leggo)

Enquanto defendia as cores do Cesena, o arqueiro deu uma das entrevistas mais interessantes do mundo futebolístico. Boranga, que já era formado em biologia, estava estudando para ser médico e escrevia poesias, gerando certa confusão e estranheza para vários na ocasião.

De forma brilhante, Lamberto já entendia o problema da marginalização do jogador de futebol, que era “proibido” de discutir e falar de qualquer outra coisa que não fosse o esporte – o que, desde aquela época, já criava um seríssimo problema para os ex-atletas a partir da aposentadoria dos campos. A rejeição de seu destino “natural” de ex-jogador, que acabava sendo se tornar um comentarista, treinador ou dono de comércio era já uma ideia muito bem formada e esclarecida em sua cabeça, e geraria frutos no futuro.

Em 2005, em outra importante entrevista, o ex-jogador e médico esportivo denunciou o extensivo uso de cocaína e hormônios no futebol, com possíveis danos graves à saúde dos jogadores no médio e no longo prazos. Como um genuíno atleta, Lamberto se recusou a parar somente no futebol.

Boranga participou de jogo beneficente no centenário do Parma e entrou em evidência (Getty)

Pouco tempo após largar os gramados em que aconteciam as pelejas, resolveu focar nas pistas de atletismo, nas quais possui vários recordes italianos em salto em altura, salto triplo e salto em distância. Em 2008, conseguiu um recorde mundial em salto em distância masculino entre os atletas com mais de 60 anos, em 2014 foi campeão mundial no salto em altura entre os maiores de 70 e, em 2018, chegou ao topo na categoria destinada aos idosos (?) com idade superior aos 75.

Boranga nos ensina que a vida é como uma tórrida jornada de verão: lindíssima e cheia de oportunidades. Devemos aproveitá-las ao máximo, entendendo o que for passageiro e fugaz, enquanto focamos em desfrutar a nossa caminhada. Uns falavam que ele era louco, outros falam que ele é folclórico. Ele apenas vive seus momentos intensamente, como todos nós deveríamos. Você, leitor, olhe pela sua janela e lembre-se sempre: daqui a pouco chega o inverno.

Lamberto Boranga
Nascimento: 30 de outubro de 1942, em Foligno, Itália
Posição: goleiro
Clubes: Perugia (1961-66), Fiorentina (1966-67), Reggiana (1967-69 e 1970-73), Brescia (1969-70), Cesena (1973-77), Varese (1977-78), Parma (1978-80), Foligno (1980-84), Bastardo (1992), Ammeto (2009-10), Papiano (2011-15) e Marottese (2018)
Títulos: Serie C (1971) e Campeonato Interregionale (1982)

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