Serie A

Contos da cripto: a ‘febre do ouro’ dos criptoativos e fan tokens chega à Serie A

34 clubes de futebol, 13 franquias da NBA, o UFC e organizações vitoriosas de eSports entraram no negócio de fan tokens nos últimos anos. A contratação de Lionel Messi pelo Paris Saint-Germain foi, em parte, monetizada com a venda desses criptoativos, assim como a de alguns reforços recentes do Corinthians. A Socios.com, plataforma especializada nessa operação, além de ter adquirido os naming rights da Liga Argentina, é o patrocinador master da Inter, que encerrou o seu vínculo de 26 anos com a Pirelli, e, na Itália, ainda é parceira de Juventus, Milan, Roma e Novara.

A Socios.com difundiu bastante a sua marca na Itália, mas não é a primeira empresa de blockchain a patrocinar um clube da Velha Bota. Por incrível que pareça, a tendência foi inaugurada pelo Chievo, que exibiu a Jetcoin em sua camisa durante parte da temporada 2014-15. Anos depois, a startup de fan tokens encabeça uma onda de anunciantes do setor de criptoativos na Serie A, ao lado de concorrentes como Digitalbits, Bitget e BitMEX – a primeira estampa o peitoral da camisa romanista e as mangas da interista, enquanto a segunda e a terceira adornam a parte localizada entre os ombros e os cotovelos do uniforme da Juve e do Milan, respectivamente. O Diavolo, aliás, também é parceiro da Skrill, enquanto a Lupa capitolina ainda abriu as portas para a FXORO.

Não para por aí. Bologna, Cagliari, Genoa, Sampdoria, Sassuolo, Spezia, Udinese e Verona são associadas da eToro – o Spezia também tem, como anunciante, a Bitci, que injeta recursos em clubes como Fortaleza, Sporting e Wolverhampton. Por fim, a Atalanta tem um acordo com a Crypto Millions Lotto e a Lazio com a StormGain – em 13 de outubro de 2021, a equipe celeste ainda anunciou a Binance como patrocinador master de seu uniforme. No total, 14 times da elite italiana exibem, em diferentes níveis, mídias e suportes, as marcas de empresas de blockchain.

A verdade é que qualquer um que assista a jogos da Serie A já estaria exposto à publicidade de uma corretora de criptomoedas. Afinal, a Crypto.com é uma das maiores patrocinadoras da competição e sua parceira oficial em inovação e tecnologia. O espaço publicitário que um dia foi pleiteado e, às vezes, ocupado por sites de apostas esportivas foi tomado pelo ramo dos criptoativos. É a nova “febre do ouro”.

Mas calma lá. Fan tokens? Criptoativos? Blockchain? O que significam estes termos e por que estão ganhando tanta evidência no futebol ao redor do mundo? O que está por trás dessa “febre” dos tokens de torcedor? Existe algum tipo de risco envolvido nesse sistema? A Calciopédia explica o que são estas tecnologias, como elas funcionam e os aspectos mais importantes de sua utilização.

Patrocinadora master da Roma, a Digitalbits é uma das corretoras de criptoativos que mais investiu na Serie A, ao lado de Chiliz e eToro (Getty)

Descriptografando

Primeiramente, o leitor deve saber que o prefixo “cripto” (oriundo do grego kryptós, que significa “escondido”), encontrado nos termos criptomoeda ou criptoativo, se refere a criptografia. Ou seja, recebem este nome porque códigos cifrados são utilizados para que qualquer transação seja computada e autenticada. Toda a tecnologia envolvida é digital.

Blockchain é uma tecnologia de registro descentralizada na qual os usuários, de forma compartilhada e universal, conseguem conferir a validade de uma transação. É revolucionária porque elimina a necessidade de um organismo terceiro (como, por exemplo, um cartório de notas) para certificar uma operação entre duas partes: toda a comunidade, de forma independente e dissociada, o faz. Assim, em uma negociação de uma criptomoeda, esta rede consegue assegurar a legitimidade de uma venda sem a necessidade de uma entidade, como um banco faz em transferências de valores com moeda fiduciária. O registro dessas transmissões de dados permanece em um livro contábil público.

NFT é a sigla para non-fungible token, token não fungível ou token infungível. Em bom português, um símbolo ou, mais exatamente, um código que representa um item que não podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. Um objeto de arte, videogame ou qualquer conteúdo que possa ser digitalizado que tenha caráter exclusivo ou um item numerado de uma série de cópias, por sua natureza, não são fungíveis – ou seja, não servem como moeda de troca, já que representam algo único e imutável.

Imagine uma série de 30 gravuras de um pintor, para a qual ele gera um código único para cada item criado por ele. Com a tecnologia do NFT, o artista pode guardar essa combinação criptografada em um token e, por meio do blockchain, vendê-lo. E, mesmo depois da negociação, consegue registrar todos os movimentos desses 30 NFTs por toda a eternidade. Em tese, a possibilidade de rastreio pelo histórico de compra e venda respalda a sua propriedade intelectual, uma vez que ainda convivemos com a dificuldade de proteger os direitos autorais na internet.

O Milan é patrocinado por duas empresas de blockchain: a BitMEX, presente na manga de suas camisas, e a Skrill, que anuncia em San Siro (Getty)

Os fan tokens diferem dos NFTs pelo simples fato de serem fungíveis – ou seja, servem como moeda de troca. Assim como dinheiro, podem ser trocados entre torcedores e têm o potencial de, tal qual títulos negociados na bolsa de valores, renderem dividendos ao longo do ano. Além disso, provêm benefícios àqueles que os possuem: com determinadas quantias de tokens, seus detentores podem participar de ações de merchandising e terem experiências VIP, ou, como acabou de acontecer com o Corinthians, participarem de votações exclusivas. Os corintianos puderam escolher qual jogador iria ser homenageado com um busto no Parque São Jorge, por exemplo – Ronaldo ganhou a enquete.

Por um lado, parece que os clubes acharam uma maneira de proporcionar uma experiência exclusiva para seus torcedores, que ganham recompensas ao investirem, mesmo pequenos valores, em suas paixões futebolísticas. Ao mesmo tempo, o fan tokens permitiriam às agremiações se conectarem com apoiadores que não têm costume de irem ao estádio e que também vivem em cidades e países distantes de suas sedes – principalmente no mercado asiático, uma vez que as excursões de amistosos em agosto já não se mostram suficientemente rentáveis.

Sob um ponto de vista mais romântico, os tokens de torcedor ainda poderiam potencializar a conexão altamente emotiva entre um fã e o clube que apoia. Afinal, os torcedores não querem necessariamente ter um pedaço da agremiação, mas simplesmente contribuir e receber algo em troca: nessa relação, dividendos ao final do ano valeriam menos do que uma camisa autografada por seu ídolo. Para os frequentadores da Curva Sud do Olímpico, por exemplo, valeria mais uma camisa autografada por Daniele De Rossi ou Francesco Totti ou um retorno anual de 3% do capital investido?

CEO do Socios.com, Alexandre Dreyfus afirma que a iniciativa de sua startup pretende exatamente isso: monetizar a paixão do torcedor. De fato, parece um belo negócio gerar receita para a empresa e para os clubes por algo intangível e, por alguns dólares, oferecer aos usuários recompensas únicas em troca. No entanto, a sua popularização abre alguns precedentes controversos e até perigosos – como mostra esta ótima reportagem da Trivela, dedicada exclusivamente à plataforma. Afinal, o risco é intrínseco aos fan tokens por um motivo simples: a sua íntima ligação com um mercado de ativos cuja regulação é muito incipiente.

A Digitalbits investiu 85 milhões de euros num contrato plurianual com a Inter, que também é patrocinada pela Socios.com (Getty)

Os pés invisíveis do mercado

Os fan tokens também funcionam como criptoativos, mas não necessariamente são baseados no blockchain ou ligados a princípios aplicados nos sistemas Bitcoin ou Ethereum – ainda que o Socios.com seja mantido pela Chiliz, empresa que negocia neste ramo e é listada abertamente como uma criptomoeda comum nas maiores bolsas do mercado. O lastro do token do torcedor é a $CHZ – também grafada CHZ.

Sediada em Malta, um paraíso fiscal europeu, a Chiliz montou um sistema em que não é possível comprar fan tokens diretamente, através de dólares ou euros, por exemplo. Para adquiri-los, o usuário precisa comprar uma criptomoeda com o índice $CHZ, e depois trocar os seus $CHZ em tokens de torcedor. Isto deveria acender um sinal de alerta em todos, já que algo tão simples como um “código de torcedor especial” não deveria precisar ser comprado indiretamente, através de outro criptoativo.

“Outro criptoativo?”, o leitor pode se perguntar. Sim. É que fan tokens têm um valor em si e uma lógica de funcionamento similar a das ações: podem se valorizar, de tal modo que os seus detentores podem lucrar no futuro, com a flutuação de preços e a especulação.

A especulação predatória pode afetar tanto o mercado de $CHZ quanto o de fan tokens. Nos últimos anos, o “pump and dump” vem se tornando uma prática comum no ramo de criptomoedas, e consiste em um grupo de investidores com poder econômico atuando em conjunto, comprando grandes quantidades de um ativo para gerar um burburinho suficiente para que outros investidores sejam incentivados a comprarem mais ativos. Quando o preço cresce o suficiente, o grupo de manipuladores do mercado consuma a fraude, vendendo sua parte e ficando com o lucro – enquanto aqueles que não fizeram parte do esquema amargam prejuízos.

O pump and dump acontece em vários tipos de investimentos, não apenas no ramo das criptomoedas. O famoso filme “O Lobo de Wall Street” retrata uma empresa que praticou esse tipo de fraude por anos e lucrou milhões de dólares. Porém, os criptoativos tendem a ser mais vulneráveis ao ardil daqueles que almejam perpetrar falcatruas por constituírem um mercado novo, com pouca regulação e terem uma grande base de usuários iniciantes, com informações limitadas sobre o tema.

Recentemente, os rumores da ida de Messi para o PSG lançaram luz sobre as oscilações desse mercado.  partir dos boatos da transferência, o valor do fan token do time francês flutuou violentamente, mesmo que os “dividendos” – ou seja, as recompensas que o código proporciona – tenham permanecido inalterados. Com ou sem o craque argentino, quem possuísse o ativo do Paris poderia votar na frase que ficaria exposta na braçadeira de capitão e no design do ônibus da equipe.

Sem motivo aparente, apenas pela notícia de que o argentino chegaria ao clube, a especulação tomou conta do mercado do respectivo fan token por alguns dias, até quando os investidores perceberam que, por sua relativa simplicidade (ao contrário das nebulosas criptomoedas), não valia a pena nem existia muito espaço para se especular ali. Assim, o valor voltou a descer. No entanto, houve impacto no índice $CHZ: como os tokens de torcedor são negociados via Chiliz, a moeda virtual utilizada pela Socios.com chegou a ter um acréscimo de cerca de sete vezes em seu volume de transações e quase duplicou de valor. Duas semanas após a febre, no entanto, o valor do criptoativo era equivalente a apenas 57% de quando atingiu o seu ponto mais alto.

Isso é relativamente normal em um mercado recém-criado, e a sensação de que os fan tokens podem se valorizar é um ponto positivo em questão de marketing – já que cria uma sensação de escassez e exclusividade para quem o possui, e assim, pode conferir mais valor ao código. Mas, ao mesmo tempo, uma imoderada e vigorosa flutuação de preços por um serviço que deveria ter uma ligação emocional com o clube, trazendo os torcedores distantes fisicamente para perto da agremiação, são conceitos um tanto incongruentes.

Muitos torcedores querem apenas ajudar o seu time, e precisar entender conceitos como blockchain e ICO (Initial Coin Offer, o evento que acontece quando um fan token é lançado) pode ser difícil para vários deles, levando-os, inclusive, a perderem dinheiro nestas empreitadas. Isso deveria fazer parte da relação entre uma agremiação esportiva e seus apoiadores?

Chiellini e Szczesny se cumprimentam: na manga esquerda da camisa da Juventus, a Bitget exibe a sua marca (Getty)

Cripto ou cripta?

O advento de regulamentações mais robustas no mercado de criptomoedas ainda é um tema embrionário e, ao mesmo tempo que alguns países tentam já aumentar a marcação em cima destes ativos, outros não só relaxam suas leis como criam outras para atrair empresas do ramo a abrirem seus escritórios em seus países – Malta, a sede da Chiliz, é um deles. A ausência de regras internacionais bem definidas, a não ser as estabelecidas pelos próprios investidores – ou seja, pelo próprio mercado –, pode ser perniciosa e deveria afastar diletantes, como o torcedor médio de times de futebol.

Lavagem de dinheiro também não é algo alheio a criptomoedas, pois, como já explicamos, o blockchain elimina uma entidade terceira que valida a transação e tudo é feito sem necessidade alguma de governos. Não há qualquer controle sobre a origem dos recursos aplicados em tais mercados, portanto. O GAFI, Grupo de Ação Financeira Internacional, também alerta que, atualmente, até mesmo as stablecoins – criptoativos mais estáveis, sujeitos a menor variação cambial – têm alto potencial não só para serem utilizados para esconder capital obtido de maneira ilícita como também para o financiamento de grupos terroristas.

Reside aí, então, um motivo de preocupação quanto ao fato de que 14 times da Serie A e a própria liga tenham abraçado de forma calorosa tantas plataformas que operam com criptoativos e têm suas próprias criptomoedas. Para veicularem suas marcas e tornarem seus serviços mais conhecidos, as empresas de blockchain fizeram ofertas vultosas a instituições que viram suas receitas minguarem por conta da pandemia de covid-19 a Digitalbits, por exemplo, acertou o pagamento de 85 milhões de euros para ocupar as mangas das camisas da Inter, num contrato plurianual. Do ponto de vista financeiro, os patrocínios são bem-vindos. Mas a que custo?

Nesse momento, a Serie A e 70% dos integrantes da edição 2021-22 do torneio são vitrines para empresas de blockchain e chancelam o desregulado mercado de criptomoedas, passível de ser utilizado para crimes lesivos ao sistema financeiro ou coisa pior. Dado o histórico negativo de muitas agremiações, que já tentaram burlar regras da Uefa e da Fifa com nebulosos acordos de patrocínio e malabarismos contábeis, este com certeza não é um sinal positivo no caminho do compliance e da clareza de ações dos clubes. Ao tentarem passar a impressão de que estão atentos a novas tecnologias, a liga e as equipes correm o risco de arranharem sua credibilidade.

Não há duvidas de que criptoativos e fan tokens representam temas polêmicos e que ainda irão gerar várias discussões nos próximos meses e anos. Por um lado, é bem-vindo que os clubes tenham um novo mecanismo para gerar mais receita sem precisarem cobrar mais em planos de sócio-torcedor ou subirem os preços dos ingressos das partidas e, simultaneamente, conseguir se aproximar da grande parte dos torcedores que morem longe de suas sedes. De outro, vale abrir as portas para negócios enigmáticos como forma de arrecadar fundos, seja através da venda dos fan tokens ou de patrocínios?

Ao mesmo tempo, ter de pagar para escolher qual será a música do aquecimento de seu time com certeza é uma decisão duvidosa. Por que só alguns torcedores têm direito a participar de enquetes básicas? De um certo modo, os clubes e a plataforma de fan tokens conseguiram monetizar até uma pesquisa inofensiva: qual será o próximo passo? É correto tratar apoiadores de modo diferenciado simplesmente pelo fato de que alguns deles compraram um ou mais códigos exclusivos?

Mais uma vez, nos deparamos em uma situação criada pelo futebol moderno, no qual clubes mais se parecem empresas, e para sobreviver no ambiente de negócios, inovações precisam ser executadas. O formato dessa iniciativas, porém, gera uma série de questionamentos. Além das indagações que deixamos nos parágrafos anteriores, muitas outras podem ser feitas. Para o torcedor ter o simples direito a votar no design do ônibus de seu time, ele precisaria mesmo utilizar uma plataforma baseada em blockchain, com uma prévia compra de criptomoedas? Será que não existe um modo mais simples, ortodoxo e claro para se aproximar destes apoiadores que não se encaixam no perfil daqueles que frequentam o estádio, compram camisas ou assinam programas de sócio? O clubes realmente precisam monetizar até a última gota?

Este texto infelizmente não trará respostas definitivas sobre os fan tokens e as criptomoedas, mas gostaria de trazer reflexões sobre as inovações em que os times estão mergulhando – alguns de cabeça; outros, indiretamente. Nos últimos anos, costumamos falar sobre o Fair Play Financeiro e de um futebol em que exista igualdade de oportunidades entre os clubes e no qual todos possam disputar no mesmo patamar, sem que o dinheiro dite o ritmo do esporte. Ou, de forma mais realista, que as atuais desigualdades sejam reduzidas.

Os tokens de torcedor não parecem seguir este caminho. O mercado de criptoativos também não opera nesta lógica – e grande parte de seus maiores entusiastas sequer concorda com tais premissas. No que tange diretamente ao futebol, esperamos que os apoiadores não sejam excluídos de importantes discussões ou relegados a uma espécie de “Série B da torcida” por não possuírem seus códigos. Os times provavelmente deveriam olhar este assunto com mais carinho, tentando achar um ponto de equilíbrio.

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