Alessandro Costacurta, Paolo Maldini, Franco Baresi, Francesco Totti, Daniele De Rossi, Giuseppe Bergomi, Javier Zanetti e Alessandro Del Piero são exemplos recentes de jogadores do futebol italiano que sempre demonstraram um verdadeiro amor às suas próprias camisas. Garra, suor e respeito à instituição se unem de uma maneira singular, de tal forma que jogador e time se tornam palavras intrinsecamente relacionadas entre si.
Quando alguém menciona a história do Cesena, é imperativo que o nome de Giampiero Ceccarelli seja citado. Em sua caminhada, Giampiero transcendeu o conceito de jogador e entrou no limitadíssimo rol de atletas que se conectarão por toda a eternidade pelos clubes que defenderam.
Nascido em abril de 1948, em Cesena, Ceccarelli jamais entrou em campo com uma camisa que não fosse alvinegra, nem nas divisões de base. Desde quando tinha 9 anos, o mínimo para poder ser federado, o garoto romanholo já defendia o time de sua cidade. Um ano depois, sua família se mudou para uma casa ao lado do estádio, como se encenasse um filme no qual um personagem é feito para o outro e o destino conspira para a união de ambas as partes. Para Giampiero, esse empurrãozinho foi mínimo.
O defensor passou por todas as equipes de base até ser integrado à principal, em 1966-67. O time era bastante modesto e a empreitada do presidente Dino Manuzzi havia acabado de começar. Naquele momento, o cartola pretendia levar o Cesena à primeira divisão e, ao mesmo tempo, manter suas raízes entrelaçadas à Romanha.
Ainda na Serie C, Ceccarelli foi o personagem principal desta missão audaciosa, mesmo com 18 anos. O jogador entendeu o seu papel e assumiu com maestria o dever de liderar o movimento que ligava o time à sua torcida, sabendo os frutos que isso poderia gerar no futuro. Já em seu segundo ano como profissional, foi eleito o melhor jogador da terceira divisão por jornalistas e o time finalmente subiu para o segundo escalão do futebol italiano.
Sempre com tino para jogar defensivamente, Ceccarelli jogou em várias posições durante os quatro anos sucessivos do Cesena na Serie B. Estava pronto para encarar qualquer posição em que os técnicos precisavam lhe escalar. Embora fosse um destro que, de origem, atuava como lateral-esquerdo, Giampiero jogou muitas vezes também na direita. E não só. Lateral ou ala – com atribuições mais defensivas ou ofensivas –, volante, zagueiro, líbero: todos os papeis foram ocupados pelo romanholo. Com tanta importância no elenco, o prata da casa foi presenteado com a faixa de capitão, que usou pela primeira vez aos 23 anos.
A leitura de uma entrevista com Ceccarelli é deveras prazerosa e nela conseguimos perceber que a relação do jogador com seu clube sempre foi muito diferente do comum. “Jogar no time da minha cidade é uma satisfação dupla”, declarava nos anos 1970. Giampiero também teorizava sobre sua função primordial: “para ser capitão é preciso de qualidades extracampo, conectadas ao caráter”. Ao longo de sua carreira, desenvolveu muito respeito por parte dos colegas, seja por não expor os companheiros a críticas ou por sua presença justa e com bravura no vestiário bianconero.
Quando o time finalmente subiu para a Serie A, em 1973, Ceccarelli teve a oportunidade de deixar o cavalluccio e jogar por um clube maior. Contudo, no momento em que o jogador soube que existiam times querendo contratá-lo, foi à sala de Manuzzi imediatamente avisá-lo que nenhuma proposta seria aceita. Para ele, jogar na elite da Itália com o Cesena era o máximo que ele poderia querer em sua carreira.
A escolha de Ceccarelli não foi em vão. O defensor jogou seis temporadas pelo Cesena na elite – mais do que qualquer outro jogador –, ajudou a equipe a fazer suas melhores campanhas na Serie A e ainda disputou uma Copa Uefa. Em 1985, com 37 anos de idade e 28 de clube, Giampiero se aposentou pelo time que lhe fez aprender, conhecer, amar e sofrer com o esporte. Sua vida e a história do Cesena se misturam e continuaram vinculadas após sua aposentadoria como jogador profissional.
Depois de pendurar as chuteiras, Ceccarelli assumiu o cargo de assistente técnico do time alvinegro por mais 11 anos. Nesse período, trabalhou com grandes figuras do futebol italiano, como Marcello Lippi, Alberto Bigon, Azeglio Vicini e Marco Tardelli. Após uma breve passagem no Olympiacos, na Grécia, como assistente técnico de Bigon, se tornou olheiro da seleção italiana, a convite de Lippi. Foram dois ciclos de Eurocopa e mais dois de Copa do Mundo, entre 2003 e 2010, completando sete anos a serviço da Nazionale – pela qual pode comemorar o tetracampeonato, em 2006, já que integrava a comissão técnica.
Depois do fiasco na África do Sul, já com 62 anos, Ceccarelli voltou para onde se sentia definitivamente em casa e fez parte, por alguns anos, do conselho administrativo do Cesena. Giampiero também ajudava o estafe técnico, fazendo relatórios semanais sobre como os próximos adversários jogariam. Neste último emprego, inclusive, se recusava a receber salários e apenas aceitava um reembolso de seus custos para poder ajudar o time. O motivo era a delicada condição financeira na época, que veio a culminar em uma falência poucos anos depois.
Esta foi apenas uma das milhares provas de amor que Ceccarelli já demonstrou pelo seu clube do coração. Se entrarmos em sua página no Facebook, o autointitulado aficionado por fotografia compartilha com certa regularidade vários de seus registros enquanto jogava pelo Cesena, sempre contando como tem saudades e amava poder vestir a camisa preta e branca. Muitas das imagens são de sua autoria: ele próprio chegou a ganhar um prêmio num concurso que tinha Fulvio Roiter, importante fotógrafo italiano, como jurado.
Giampiero faz questão de falar no dialeto da região e de contar histórias de tudo que viveu, de tal modo que o resto dos habitantes de Cesena consiga saber o que aconteceu em todos esses anos. É como se ele fosse um representante do povo, prestando contas à população da principal cidade romanhola. Hoje, ele prepara um livro de fotos com sua própria curadoria: seu acervo tem cerca de 13 mil imagens que contam sua trajetória e, por consequência, parte da própria história do clube.
Obviamente, não por mera coincidência, Ceccarelli esteve presente nos momentos mais importantes do clube da Romanha. Era o capitão quando o Cesena jogou a Copa Uefa. Quando Walter Schachner foi contratado. E até quando o estádio do time foi reformado e aumentado, junto com a ascensão de nível da equipe.
Foram 19 temporadas jogando pelo Cesena, sendo as duas iniciais na Serie C – recorde superado apenas por Maldini (25), Totti (25), Costacurta (20) e Bergomi (20). Depois disso, foram incríveis 17 entra a primeira e segunda divisão: no total 591 jogos pelo time, que lhe fazem recordista absoluto em presenças pelos bianconeri. Ceccarelli passou 10 anos com a braçadeira de capitão e teve apenas uma expulsão em sua carreira, por um segundo cartão amarelo.
Como disse Isabel Allende, as raízes não são paisagens, países ou pessoas, estão dentro de nós. Giampiero não recusou propostas e convites por razões financeiras ou visando sua carreira. Ele recusou porque Cesena nunca saiu e nem sairá dele.
Giampiero Ceccarelli
Nascimento: 22 de abril de 1948, em Cesena, Itália
Posição: defensor
Clubes: Cesena (1966-85)
Títulos: Serie C (1968, grupo B)