Mercado Serie A

Janela de perdas para a Serie A ratifica disparidade econômica e falácia da Superliga

Você já deve ter ouvido que a pandemia de covid-19 já está agravando a desigualdade social: quem tem menos, perde mais; quem tem mais, perde menos. No futebol europeu está acontecendo a mesma coisa. Enquanto alguns clubes lutam para fazer a conta fechar ao final do mês, outros esbanjam no mercado, enfraquecendo rivais em delicada situação financeira. A Serie A, por exemplo, perdeu nomes de peso na janela de transferências recém-encerrada num momento em que as últimas edições do campeonato chamaram a atenção de muitos fãs do esporte.

O MVP (Romelu Lukaku), o melhor goleiro (Gianluigi Donnarumma), o melhor zagueiro (Cristian Romero) e o melhor atacante e artilheiro (Cristiano Ronaldo) do último Italiano deixaram a liga. O lateral/ala-direito Achraf Hakimi e o meio-campista Rodrigo De Paul, destaques do campeonato passado, também disseram adeus à Itália, tal qual o promissor treinador Roberto De Zerbi.

Enquanto Inter, Juventus e Milan penam para se reforçar e perdem peças, quase todos os seus parceiros no malfadado projeto da Superliga Europeia investem na montagem de esquadrões mesmo num cenário de incertezas e crise econômica generalizada causada pela pandemia de covid-19. O que explica essa debandada e a disparidade entre as forças?

Florentino Pérez e Andrea Agnelli: entusiastas da Superliga, mas em situações distintas (imago)

Dívidas e receitas

Em geral, os times italianos se encontram mais endividados do que os das outras grandes ligas europeias, principalmente dos seus respectivos gigantes e dos clubes agraciados com cofres repletos de petroeuros. Um relatório da Uefa sobre as finanças das agremiações do continente, publicado em 2019, revelou que a Itália é o país com a maior dívida conjunta no futebol. O valor chega a 1,37 bilhão de euros, com uma média de 67 milhões por equipe e 62% de toda a receita das sociedades.

Não por acaso a Inter, campeã da Itália depois de 11 anos, perdeu duas peças que foram essenciais à conquista do scudetto – Hakimi e Lukaku. A diretoria nerazzurra também precisou pegar 275 milhões de euros emprestados com o fundo de investimentos Oaktree para pagar os salários atrasados dos jogadores e amenizar um rombo que poderia ter sido maior se o clube não tivesse fechado a torneira por algumas temporadas, visando se adequar ao Fair Play Financeiro da Federação Italiana de Futebol (FIGC) e ao homólogo mecanismo da Uefa. O redimensionamento das ambições interistas, ocasionado pela situação econômica da agremiação, fez com que o técnico Antonio Conte decidisse pedir o boné.

As outras sociedades da Serie A, porém, não ficam muito distantes da Inter quando o endividamento está em jogo. Um levantamento do site Calcio e Finanza mostra como Juventus, Milan, Roma, Lazio, entre outros, estão com sérios problemas financeiros, decorrentes da crise do modelo de mecenato, muito popular no futebol italiano, e de anos de uma duradoura e delicada situação econômica no país, que é muito vulnerável a turbulências internas e oscilações do mercado global – e tem alternado momentos de recessão a épocas de crescimento irrisório de seu Produto Interno Bruto. Evidentemente, a ausência de dinheiro no caixa dos clubes impacta diretamente na contratação de jogadores.

Enquanto Chelsea, Manchester City, Manchester United, Paris Saint-Germain, Real Madrid pagam boladas para ter os melhores jogadores, Juve, Inter e Milan pechincham e parcelam para adquirir a maioria dos seus reforços. O exemplo mais marcante dessa janela talvez seja o de Manuel Locatelli, a grande contratação da Vecchia Signora no mercado. O meio-campista acertou por empréstimo de duas temporadas, com obrigação de compra e pagamento em até cinco anos, após longas reuniões entre dirigentes bianconeri e cartolas do Sassuolo. Ao todo, as negociações duraram cerca de dois meses.

À Sky Sport, o ex-CEO milanista Adriano Galliani analisou a mudança do mercado de transferências nos últimos anos. Agora na diretoria do Monza, sempre junto de Silvio Berlusconi, o cartola destacou a forma como o Campeonato Italiano ficou para trás no quesito dinheiro em relação a Premier League e La Liga.

“Certamente o Milan da minha época tentaria contratá-lo [Lionel Messi]”, afirmou. “Conseguimos blindar [Marco] van Basten, que era cobiçado pelo Barcelona, ​​mas naquela época os clubes italianos eram os que ganhavam mais dinheiro. Uma vez a Serie A foi o ponto de chegada, agora temo que esteja se tornando o ponto de partida”, acrescentou.

Nesta janela de transferências, a Juventus de Agnelli e a Inter de Steven Zhang tiveram de fazer ajustes nas contas (IPA)

Para Galliani, o público de outros países prefere assistir a partidas do futebol inglês e do espanhol a confrontos da Serie A. “Os direitos de TV estão nos penalizando. Perdemos o trem porque os ingleses e os espanhóis são mais difundidos no exterior do que os italianos. Esta noite assisti ao jogo [Monza-Cremonese] com o dono do Leeds e as receitas do Leeds são iguais às do Milan”, lamentou.

As informações contidas no já citado relatório da Uefa mostram que o diagnóstico de Galliani faz sentido e ajudam a explicar porque um time recém-promovido à Premier League pode ter um orçamento comparável ao de um gigante italiano. Na época, destrinchamos o parecer de maneira detalhada, mas, resumidamente, a situação está ligada às principais fontes de receita e de despesas de cada agremiação, e também a efeitos colaterais indesejados produzidos pelo Fair Play Financeiro da entidade máxima do futebol europeu.

A Premier League tem uma vantagem de partida: é disputada num país em que se fala inglês, língua franca do planeta. Isso contribui para que o campeonato tenha uma grande visibilidade, principalmente no populoso continente asiático, e consiga negociar direitos de transmissão televisiva por valores muito superiores ao dos concorrentes: o montante do contrato da PL equivale à soma dos acordos feitos por Bundesliga, La Liga e Serie A.

Na Inglaterra, a repartição dessa verba entre os times também é menos desigual do que a feita na Itália. Vale destacar que, na Europa, apenas Real Madrid, Barcelona e Juventus conseguem ganhar mais da televisão do que o último colocado da liga inglesa.

Na mesma toada, o torneio também distribui premiações polpudas para os clubes, que – pela visibilidade – ainda conseguem negociar patrocínios mais valiosos do que equipes de outros países que tenham porte equivalente ou até superior. Com maior poder aquisitivo, as agremiações da Premier League podem contratar mais e pagar salários mais generosos do que a quase todas as suas concorrentes.

Aí é que está a armadilha intrínseca ao Fair Play Financeiro – ainda que, devido à pandemia, suas regras tenham sido relaxadas por um ano. Em linhas gerais, os clubes europeus devem gastar de forma proporcional ao que arrecadam anualmente, podendo extrapolar o teto de receitas em, no máximo, 30 milhões de euros anuais – se os sócios majoritários puderem cobrir o rombo com capital próprio. Isto, em princípio, é positivo, pois dificulta que um time possa se endividar sem lastro. No entanto, um efeito colateral que tem se verificado, pela ausência de medidas complementares por parte da Uefa, é a ampliação da desigualdade entre aqueles que já ganham mais e os que recebem menos.

Atalanta e Manchester City são exemplos de projetos diametralmente opostos (Insidefoto)

A entidade europeia acabou fomentando um sistema de castas quando ela cedeu aos grandes clubes – aí se incluem também os italianos – e aumentou as bonificações por presença e triunfos em seus torneios em 228% em uma década, como forma de compensá-los pela adoção ao FPF. Times que têm se classificado constantemente à Champions League, como Real Madrid, Barcelona, Manchester City, PSG e Juventus, contam com esta receita para fazerem seus mais ousados investimentos. Na Itália, em específico, participar da UCL com frequência e ir o mais longe possível no certame virou condição sine qua non para que uma equipe possa tentar (grifo nosso) competir com os super-ricos.

O modelo atual valoriza exageradamente receitas provenientes de premiações, direitos de transmissão, patrocínios e marketing, que nunca haviam atingido patamares tão altos quanto os atuais – a ponto de aprofundarem uma desigualdade já existente no sistema futebolístico desde a sua profissionalização. Quando a Itália dominava os campeonatos da modalidade, nos anos 1980 e 1990, a diferença de poder de compra e de pagamento de salários entre os clubes do país e de outras partes do planeta não era tão grande quanto hoje.

Nessas duas décadas, clubes italianos quebraram o recorde de transferências nove vezes. Seis delas ocorreram entre 1984, com a compra de Diego Maradona pelo Napoli, por valor equivalente a 5 milhões de libras esterlinas, e 1992, quando o Milan pagou 12 mi para ter Gianluca Lentini – um preço 2,4 vezes maior do que o acertado por El Pibe. Em 2000, a Lazio adquiriu Hernán Crespo por 35,5 mi e, 17 anos depois, já sob a vigência do Fair Play Financeiro, o PSG fechou com Neymar por um montante quase seis vezes superior, correspondente a 198 mi. Apesar de proteger as agremiações do risco de falência por gestão temerária, a Uefa (obviamente) não conseguiu controlar a inflação puxada pelos supertimes.

Leilões por jogadores, recordes de transferências batidos e salários cada vez mais altos geram um incremento insustentável de despesas que chega até a base da pirâmide. Na Serie A, por exemplo, as equipes precisam desembolsar, em média, dois terços de toda sua arrecadação para pagar os rendimentos de técnicos e atletas. A tendência, sem que as agremiações consigam diversificar suas receitas, ainda muito dependentes da televisão, da venda de ativos e de bilheteria, é de que a proporção aumente enquanto a bolha inflacionária perdurar. Até estourar – como ocorreu na virada do século, período em que clubes tradicionais da Itália faliram por conta dos gastos elevados.

Esse ambiente tóxico chega a produzir diferenças abissais mesmo entre os mais entusiasmados clubes defensores da Superliga – que pertencem ao grupo dos mais ricos do futebol europeu. Enquanto a Juventus manobrou para ter Locatelli, como falamos no início do texto, e não fez força para evitar a saída de Cristiano Ronaldo porque, entre outros fatores, a sua venda ao Manchester United aliviaria sobremaneira a folha salarial, o Real Madrid pretendia gastar mais de 200 milhões de euros para ter Kylian Mbappé, cujo vínculo com o PSG acaba em 2022 e, a partir de janeiro, poderia assinar um contrato como agente livre.

Ofertas chegaram a ser feitas por Florentino Pérez – o mesmo dirigente que afirmara, entre abril e maio de 2021, que seria imperativo reformar o futebol europeu para evitar o fechamento de agremiações e que “a pandemia está destruindo os clubes”. Mostrando sua tradicional incoerência, o cartola merengue consumou a sua ânsia de gastança ao pagar mais de 30 milhões para levar para a Espanha o meio-campista Eduardo Camavinga, que mantinha, com o Rennes, situação contratual idêntica àquela entre Mbappé e o Paris.

Visibilidade conferida por Ronaldo não mudou um fato: direitos de transmissão da Premier League são muito maiores que os da Serie A (imago)

Seguindo o mestre, todos os times ingleses anteriormente envolvidos no projeto da Superliga (ainda que menos empolgados com a ideia do que o patrão madrilenho) investiram mais de 100 milhões na janela de verão. Para muita gente, esta foi a maior sessão do mercado de transferências em toda a história do futebol. Em plena pandemia de covid-19.

Para efeitos de comparação, dos 20 clubes que hoje disputam a Serie A, cinco encerraram o mercado com saldo positivo, considerando apenas os montantes de vendas e aquisições. São eles: Inter (161 milhões de euros), Udinese (53), Empoli (19), Torino (6) e Genoa (3). A maior parte dos integrantes da liga teve gastos de simples administração – como a Juventus, que teve um déficit de apenas 500 mil.

Na outra ponta da tabela, encontram-se Roma (-95,5 milhões de euros), Milan (-69), Atalanta (-30), Napoli (-19,6) e Spezia (-19). Destaca-se, porém, que estes investimentos também foram sustentáveis. Por terem trocado recentemente de donos, tanto os spezzini quanto os romanistas podem se valer de aporte de capital, enquanto o Milan se calçou na premiação pelo retorno à Champions League após sete anos de ausência. Atalanta e Napoli, por sua vez, ainda contam com o acúmulo de receitas por desempenho distribuídas por Uefa e Serie A, além de não terem dívidas e operarem no azul. No caso da Dea, não foi contabilizada a transação que levou Cuti Romero ao Tottenham, que só entra no cômputo da próxima temporada.

O balanço da Serie A, em comparação com as outras grandes ligas europeias, foi negativo nas últimas três janelas de transferências – isto é, com a covid-19 já espalhada pelo mundo. A subtração entre as vendas e as aquisições de jogadores na elite da Velha Bota resultou num montante de -298 milhões de euros. Assim, o Italiano só perde para a endinheirada Premier League (-1,942 bilhão), cujos clubes despejam grana no mercado como se não houvesse pandemia. Os dados são do relatório do Observatório de Futebol do Centro Internacional de Estudos de Esporte (CIES Football Observatory, em sigla em inglês).

Em longo prazo, o fortalecimento excessivo de qualquer liga nacional pode ser prejudicial à própria Uefa – afinal, as competições continentais poderiam perder valor de mercado e serem fagocitadas. Deveria ser de interesse da entidade propor uma distribuição mais equilibrada de poder entre clubes de mais países, de forma análoga ao que faz a Premier League.

Ao mesmo tempo, apoiar a Fifa na guerra às vultosas comissões abocanhadas por empresários e, mirando em exemplos de sociedades de outros esportes, dialogar com a União Europeia e os governos dos países filiados à confederação para facilitar a introdução de mecanismos mais eficientes de controle inflacionário, como tetos salariais e incentivos fiscais a jogadores e clubes que cumpram contratos celebrados. Por enquanto, segue a divisão entre os times que conseguem lucrar nos moldes do paradigma contemporâneo e aqueles que, em busca de avanços na diversificação de receitas, precisam revelar e vender atletas para sanar débitos e pensar em saltos somente em médio ou longo prazo.

Fechamento dos estádios devido à pandemia de covid-19 gerou forte impacto nas finanças dos clubes italianos (imago)

Os efeitos da covid-19

Se a pandemia de covid-19 não fez cócegas nos clubes da Premier League, no PSG e no Real Madrid, ela agravou ainda mais a situação dos times da Velha Bota. Uma vez que o torcedor não poderia ir ao estádio para apoiar sua equipe, o dinheiro gerado com receitas de “matchday” deixaram de entrar no caixa das agremiações. Assim, instaurou-se uma preocupação geral.

Segundo o 11º Relatório de Futebol, divulgado em agosto pela FIGC, as receitas totais na temporada 2019-20 diminuíram 434 milhões de euros, passando de 3,897 para 3,463 bilhões, considerando todos os níveis da pirâmide da modalidade na Itália. Sem a presença de público nos jogos, os clubes da elite deixaram de ganhar 75 milhões de euros com o faturamento oriundo do ingresso da torcida aos estádios, aponta o estudo.

A Velha Bota tem um sério problema com estádios, já que quase todos são públicos e o governo gastou muito para construir praças esportivas do zero ou reformar as já existentes para a Copa de 1990, poucos anos antes de o corrente conceito de arena multifuncional entrar em voga. Mesmo com a modernização brecada e contando com estádios obsoletos, os clubes da Itália – principalmente os menores – ainda necessitam fortemente da renda gerada pela bilheteria e pela venda de carnês anuais de ingressos para assinantes de programas similares ao de sócios-torcedores. Por sua vez, as equipes da elite da Inglaterra, país que tem o maior tíquete médio da Europa, sofreram menos com as arenas fechadas porque são menos dependentes dessa fonte de recursos.

O relatório da FIGC ainda estima que, nas duas primeiras temporadas pandêmicas (2019-20 e 2020-21), o futebol profissional na Itália tenha perdido cerca de 1 bilhão de euros em receitas em relação aos efeitos negativos gerados pela covid-19. A situação poderia ser ainda pior, não fosse por uma lei promulgada meses antes de o coronavírus virar o planeta pelo avesso.

Para tentar aquecer a economia do Belpaese, o governo projetou o Decreto Crescita, que consiste num incentivo fiscal para a contratação de profissionais oriundos do exterior. A medida, que também abrange italianos repatriados, consiste na desoneração de encargos trabalhistas para aqueles que se comprometerem a ficarem ao menos dois anos seguidos na Itália. A lei teve impactos no futebol e aliviou, por exemplo, a carga tributária sobre os salários de Conte, Lukaku, Ronaldo, Matthijs De Ligt e Zlatan Ibrahimovic.

Ainda vigente, o Decreto Crescita teve impacto reduzido por causa da pandemia, mas mostrou resultados imediatos para os clubes de futebol do país. A promulgação da lei permitiu, por exemplo, que mais estrelas internacionais disputassem a Serie A e que equipes como Atalanta, Inter e Roma tenham podido contratar peças importantes de suas boas campanhas em solo continental.

Sem dúvidas, a janela de transferências do verão de 2021-22 serviu como uma espécie de freio de arrumação para a Serie A. Porém, o prestígio que o campeonato vinha readquirindo não vai sumir por causa dos astros que perdeu para torneios concorrentes. Afinal, a liga tem motivos para confiar que a competitividade de seus integrantes continuará a crescer, que os craques remanescentes ainda têm margem de evolução e que outros grandes jogadores serão revelados. O futebol do país que se sagrou vitorioso na Eurocopa quando poucos acreditavam no título sabe o que é se reinventar.

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