Outros torneios

Lega Pro: o espelho de uma parca estrutura

Reprodução do site de torcedores do Rimini, incrédulo após a desistência oficial do clube:
várias outras torcidas derrubaram, ou ainda irão derrubar, as mesmas lágrimas (riminivai.com)

Quando o presidente Mario Macalli alterou o nome da antiga Serie C (que reunia as divisões C1 e C2) para Lega Pro, procurava dar uma sacudida moral em um campeonato historicamente desprovido de atrativos. No calor de entusiasmo, cogitou-se medidas inverossímeis, como realizar as rodadas da Lega Pro antes daquelas da Serie A, para evitar concorrência e divisão de audiência. Depois que os primeiros ímpetos de revolução passaram, sobrou a realidade: 90 clubes, divididos em cinco grupo de 18 equipes cada, espalhados por dois campeonatos dispendiosos, de nível semi-profissional, com estádios vazios, baixo interesse das praças esportivas e gestões cada vez mais amadoras.

Amadorismo que se revela fortemente a cada novo período de inscrições nos campeonatos. Nas últimas duas temporadas (fora as falências temporãs de Pro Patria, Pescara, Pro Sesto e Igea Virtus), Lucchese, Spezia, Massese, Treviso, Avellino, Venezia e Pisa (considerando apenas a Prima Divisione) não conseguiram a admissão e caíram entre os amadores. Hoje, a maioria deles já está entre os profissionais, mas seus casos estão longe de serem exceções.

O trâmite de inscrição

O site italiano CalcioPress.net apresenta um relato simplificado sobre os prazos e exigências, a maioria ligada a aspectos financeiros, que as propriedades dos clubes devem seguir para conseguir a admissão nos campeonatos da Lega Pro na temporada 2010-11.

25 de junho é o último dia para o depósito da liberatória, o saldo entre os salários pagos e devidos. Entre 19 e 30 de junho, deve ser apresentada a documentação necessária para o pedido de inscrição, aliada aos depósitos da taxa de inscrição (31 mil euros) e da fidejussione, a garantia de que a sociedade arcará com os compromissos assumidos perante seus dependentes – uma contribuição obrigatória, presente no Código Civil Italiano, e fixada em 400 mil e 200 mil euros para os clubes da Prima e da Seconda Divisione, respectivamente.

7 de julho é data-limite para que a Covisoc, comissão da federação italiana (FIGC) responsável por avaliar a situação financeira dos clubes, declare quais foram os clubes aceitos nas competições. Nessa fase, iniciam-se, ou são concluídos, muitos processos de falência, já que o julgamento da Covisoc é amplamente baseado na apresentação (ou não) dos depósitos anteriores. Os clubes julgados inaptos têm até o dia 10 para recorrer das decisões – que dificilmente são revertidas. Um novo veredicto, este em definitivo, é dado no dia 16 de julho. Para que no dia seguinte seja concedida a Licença Nacional, que dá direito à disputa do campeonato.

Quem deve morrer?

2010-11 será a terceira temporada da antiga Serie C com sua nova nomenclatura como Lega Pro e, por enquanto, os recordes são apenas negativos. Até aqui, oito clubes não conseguiram apresentar o pedido de inscrição para os campeonatos da categoria. São eles: Rimini, Mantova e Gallipoli (Prima Divisione) e Scafatese, Itala San Marco, Pescina e Monopoli (Seconda). Além do Perugia, que foi à falência e não encontrou nenhum comprador.

Outras propriedades, como Olbia, Legnano, Cassino, Pescina e Potenza, à beira da falência, estão virtualmente excluídas. Entre os clubes que apresentaram o pedido incompleto, é provável que Arezzo, Villacidrese e Manfedonia não sejam confirmados. Outros deverão começar o campeonato com penalização de pontos: seriam os casos de Catanzaro (pela terceira temporada seguida), Cavese, San Marino, Foggia e da recém-formada Real Casertana, resultado da fusão entre Real Marcianise (Prima Divisione) e Casertana (Serie D).

Outros, ainda, conseguiram a inscrição completa, mas não têm perspectivas mínimas de futuro. É caso da Pro Vercelli, que arrecadou o montante necessário através de uma coleta entre empresários da cidade, mas tem menos de um time completo sob contrato. Tudo isto significa que, nesta temporada, se as regras forem observadas sem quaisquer exceções ou abrandamentos, existem mais de 20 clubes sem condições reais de disputar qualquer torneio da categoria. Nunca, como agora, a terceira e quarta divisões italianas haviam enfrentado uma baixa tão grande de sociedades em um espaço tão curto de tempo.

Mudança estrutural

Para entender a crise da Lega Pro (que, em menor escala, se refletirá também na Serie B), é preciso analisar não só a concepção de seus campeonatos, mas o sistema divisional e a formação do futebol no Belpaese. Já dissemos algumas vezes que o futebol é um espelho da sociedade em que se desenvolve. A Itália, embora esteja às vésperas de comemorar os 150 anos de sua unificação nacional, continua dividida em seus nativismos citadinos e provincianos, seus dialetos, suas culturas e, como não poderia deixar de ser, em seu esporte.

À parte os grandes clubes nacionais (Juventus, Milan, Inter e, emergentemente, Roma) o futebol italiano é basicamente composto por clubes provincianos que, obviamente, contam apenas com suas cidades para angariar torcida e sobreviver. Uns poucos, como Hellas Verona, Cremonese, Pescara e Spezia, possuem torcida em praticamente todos os municípios da província e podem expandir um pouco o leque de ações.

A luta pela preferência é árdua, na província: os clubes devem concorrer com o assédio dos grandes nacionais, com o peso do time da capital (em se tratando de um clube do interior) e com os diversos outros times das demais cidades, mesmo que sejam amadores. Cada ponto em que já exista um clube esportivo é um local a menos para que o pequeno provinciano desenvolva suas atividades. Os exemplos são muitos: a torcida do Jesina só existe em Jesi, município de Ancona; na província de Salerno, apenas Eboli torce para a Ebolitana; na província de Varese, a Pro Patria só tem torcida em Busto Arsizio, e o Verbano só recebe apoio em Bezzoso.

À medida que esses clubes, de cidades pequenas ou não-capitais de província, fechados nos confins de suas cidades, foram obtendo sucesso nos campeonatos amadores, tiveram de ser aceitos obrigatoriamente na Lega Pro, a porta de entrada do profissionalismo italiano. Consequentemente, puxaram o nível dos campeonatos para baixo, não apenas tecnicamente, mas em termos de negócios e visibilidade. E fizeram da categoria o que ela é hoje: uma soma de identidades diversas, sem apelo nacional. Mais do que um campeonato italiano, criou-se em torneio interprovinciano.

Como poucos times pequenos não suplantariam a estrutura necessária, começou-se a inflar a categoria de clubes, chegando a inacreditáveis 90 equipes (36 na Prima e 54 na Seconda Divisione). A falta de preocupação estrutural com o movimento de divisões é claríssima. Não existem parâmetros que determinem o porte que um clube profissional deve ter – patrimônio, torcida, apoio das instituições locais, possibilidades de exploração e prestígio da marca junto à cidade, à província ou a região, entre tantos outros.

Vincular a possibilidade do profissionalismo a uma mera conquista esportiva ou repescagem é assumir que o terreno de jogo comanda os bastidores do campeonato. Não se trata de fazer uma ode ao futebol moderno ou desmerecer os esforços dos clubes menores, proibindo-os de ascender ao profissionalismo. Trata-se de esclarecer outras coisas. Enquanto o Vado (primeiro campeão da Coppa Itália) não oferecer garantias expressivas de que possa voltar a ser profissional, garantias que devem ir além do terreno de jogo, então deverá continuar jogando, no máximo, até a Serie D.

A Lega Pro está à deriva, a ponto de cometer mais erros com os pedidos de repescagem que virão da Serie D. Dentre as muitas possibilidades, a única aceitável é a da Pro Belvedere Vercelli, rebaixada nos play-outs da última temporada. A Carrarese, também recém-rebaixada, está em crise financeira. Avellino, Venezia, Casale e Vigor Lamezia estão longe de seus melhores dias. Matera, Carpi e Pianura são incógintas. Melhor do que repescar clubes na Serie D seria forçar uma diminuição do número de equipes dos grupos da Lega Pro. Ou ainda regionalizá-los ao extremo, subdividindo-os ainda mais.

Não existe solução em curto prazo, e a ramificação do futebol italiano em ligas interdependentes cuidando de seus próprios interesses – Lega Serie A, Lega Serie B, Lega Pro e LND (amadora) – certamente não ajudará em nada para que os clubes da terceira e quarta divisões italianas deixem de morrer. É preciso que o trabalho comece de baixo e que as categorias provincianas sejam as primeiras a adotar critérios para a admissão de times e cidades em disputas federadas. Assim, com o passar dos anos, a estrutura pode ser saneada. Até lá, ainda serão necessários muitos lenços e muita hemoglobina – pois muitas torcidas chorarão suas lágrimas de sangue.

Compartilhe!

Deixe um comentário