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Pequenos milagres: Pescara, um ioiô com orgulho

Nesta semana, o Pescara foi rebaixado para a Serie B e cumpriu sua sina: quase todas as vezes que disputou a primeira divisão acabou voltando imediatamente para a segundona. Na única temporada em que conseguiu a salvezza, os delfini eram treinados por Giovanni Galeone e tinham o “capacete” Júnior no elenco. Foi o pequeno milagre na história da modesta equipe do Abruzzo, a única da região que já participou da elite do futebol italiano.

O Abruzzo é uma região localizada no centro da Itália, com saída para o litoral leste do país. Banhada pelo Mar Adriático, a praiana Pescara é a sede administrativa desta subdivisão da Bota, mas é bastante pacata e, atualmente, tem apenas 120 mil habitantes – há 45 anos, sua população praticamente não muda. Somente o fato de ter a oportunidade de disputar a Serie A e enfrentar potências como Juventus, Inter e Milan já é motivo de orgulho para a equipe. Uma honra conquistada pela primeira vez em meados da década de 1970.

Quando estreou na elite do Belpaese, o Pescara já tinha mais de 40 anos de vida e poucas glórias. O clube foi fundado em 1936, aproveitando a estrutura de uma antiga agremiação da cidade, e passou grande parte de sua existência na Serie C e nas divisões regionais. Em 1977, a reviravolta: os golfinhos subiram para a Serie A juntamente a Vicenza e Atalanta, após levarem a vantagem sobre o Cagliari em jogos-desempate pelo acesso.

A equipe treinada por Giancarlo Cadè e conduzida pelo habilidoso meia-atacante Bruno Nobili, italiano nascido na Venezuela, festejou muito de início, mas logo sentiu a retumbante realidade. Ao contrário de biancorossi e nerazzurri, que fizeram grande Campeonato Italiano em 1977-78, o Pescara ocupou a zona de rebaixamento em quase todo o certame e, como lanterna, caiu para a segundona. No ano seguinte, venceu o spareggio contra o Monza e subiu de novo, mas o efeito ioiô voltou a atuar e o rebaixamento, em 1980, se revelou inevitável. Aquelas ocasiões dariam o gostinho da elite para a torcida do Abruzzo e constituiriam o prelúdio da época de ouro azul e branca, que atingiria o auge cerca de uma década depois.

Sliskovic, Galeone e Júnior: os protagonistas da salvação dos golfinhos (Forza Pescara)

Cantando de Gal…eone

A temporada 1985-86 foi muito dura para a torcida do Pescara. A equipe treinada por Enrico Catuzzi não conseguiu repetir o bom futebol demonstrado na edição anterior da Serie B e terminou o campeonato na 17ª posição, o que significava rebaixamento para a terceirona. No entanto, a falência do Palermo mudaria tudo: a federação italiana repescou os golfinhos para a segunda divisão 1986-87. A notícia aliviava os biancazzurri, mas havia um problema, pois a decisão da FIGC fora tomada quando a diretoria do Pescara já havia construído um elenco compatível com a disputa da antiga Serie C1 e, teoricamente, fraco para a segundona. Mas a cavalo dado não se olha os dentes, certo?

A missão de fazer uma Serie B digna à frente da equipe do Abruzzo estava nas mãos de Giovanni Galeone, técnico de 45 anos, que havia feito carreira como jogador na Udinese e só havia treinado times de divisões inferiores – seu melhor trabalho havia sido na Spal, na C1, entre 1983 e 1986. O comandante napolitano tinha à disposição um elenco curto e bastante jovem, mas surpreendeu e colocou o Pescara na briga pelo topo da tabela. Foi exatamente na parte mais alta da classificação que os golfinhos ficaram, pois faturaram o primeiro título de sua história.

Em uma Serie B apertadíssima, na qual Bari, Messina, Parma, Genoa, Cremonese e Lecce brigaram até o fim e em que somente quatro pontos separaram o nono colocado do acesso, o Pescara garantiu título e vaga na elite graças à fundamental vitória contra os parmenses na última rodada – Cesena e Pisa também subiram. O estilo de Galeone, ofensivo para o contexto da época, ganhou o apelido de “calcio champagne” e deu resultado, pois o time do Abruzzo teve o segundo melhor ataque e o artilheiro do campeonato. Ainda assim, o centroavante Stefano Rebonato, autor de 21 gols, não marcaria época no Adriatico: se transferiu para a Fiorentina ao fim da campanha e nunca mais teve sucesso em sua carreira. Os jogadores que participaram da conquista e realmente seriam importantes nos anos seguintes foram os zagueiros Andrea Camplone e Giacomo Dicara, o lateral direito Cristiano Bergodi e os meias Rocco Pagano e Gian Piero Gasperini – este último, capitão do time.

Para o desafio na Serie A, o Pescara teria um novo presidente e modificações importantes no elenco. No verão de 1987, o clube foi adquirido pelo empresário Pietro Scibilia, dono da Gis, fabricante de sorvetes, e habituado à administração esportiva: no futebol, foi presidente da Giulianova (1979-82), e à época, ainda estava à frente da importante equipe de ciclismo Gis Gelati, fundada por ele próprio. Nos primeiros atos como cartola biancazzurro, Scibilia colocou a mão no bolso: fez contratações pontuais, como a do goleiro Giuseppe Zinetti (Bologna) e do meio-campista Stefano Ferretti (Ancona, já treinado por Galeone na Spal). No entanto, fez barulho ao assegurar a chegada de dois bigodudos: Blaz Sliskovic, um meia bósnio com passagens pela seleção da Iugoslávia, contratado junto ao Marseille, e principalmente a do experiente Júnior, que deixava o Torino.

Galeone precisou mexer na equipe para acomodar os novos contratados. A primeira mudança foi simbólica, com a passagem da faixa de capitão de Gasperini para Júnior, ao passo que Sliskovic assumiu a titularidade improvisado como centroavante, devido às más condições físicas de Nicola Zanone. Os biancazzurri surpreenderam a Itália no início da temporada 1987-88, ao estrearem com uma vitória por 2 a 0 sobre a Inter em pleno San Siro, e por ocuparem a liderança do campeonato na segunda rodada.

Apesar do início interessante, o futebol ofensivo dos golfinhos era de altos e baixos. Vitórias comemoradas, como diante de Juventus e Verona, se intercalavam a goleadas acachapantes, como as sofridas para Napoli (6-0), Fiorentina (4-0) e Roma (5-1). Ainda assim, com muito espírito coletivo e atuações importantes de Sliskovic (artilheiro do time, com oito gols), Gasperini (autor de sete), Júnior, Zinetti, Camplone, Bergodi e Pagano, o Pescara conseguiu se manter na elite. O conjunto do Abruzzo se beneficiou de uma punição de cinco pontos dada ao Empoli antes de a temporada começar e da redução de rebaixados na competição de três para dois times, uma vez que a Serie A posterior teria o número de participantes aumentado de 16 para 18 equipes. Com isso, a 14ª e antepenúltima posição foi suficiente para evitar a queda e sacramentar o milagre.

Júnior, Edmar e Tita confraternizam com Alemão e Careca, do Napoli, antes de goleada histórica (Twitter)

Canarinhos e golfinhos

O sucesso de Júnior no Adriatico fez com que Scibilia decidisse investir em mais dois brasileiros com passagens pela Seleção: Tita, que militava no Bayer Leverkusen e havia feito sucesso com as camisas de Flamengo, Grêmio e Vasco; e Edmar, que brilhou por Guarani e Corinthians. A dupla de atacantes já tinha bastante experiência quando chegou ao litoral italiano (o primeiro tinha 30 anos e o segundo, 28) e deveria substituir Sliskovic, que fora liberado para retornar à França e assinar com o Lens. Assim como o bósnio, Edmar e Tita alcançaram boas marcas individuais: respectivamente, quatro e nove gols, além de atuações regulares. Júnior, que atuou em todas as partidas, também se doou muito ao longo da temporada.

Com os brasileiros comandando o elenco biancazzurro juntamente a Gasperini, o Pescara chegou a ocupar o meio da tabela até a pausa de inverno, entre dezembro de 1988 e janeiro de 1989. O segundo turno também começou bem, com uma vitória diante da Roma, mas dali em diante a equipe não se acertou e o fim da temporada não reservou um doce resultado para os golfinhos.

O desequilíbrio defensivo continuava a atrapalhar a equipe, que chegou a levar 8 a 2 do Napoli e 6 a 1 do Milan no campeonato, mas o fator realmente determinante para a queda foi a falta de vitórias a partir da 18ª rodada. O Pescara terminou a Serie A na 16ª posição, com 27 pontos, dois a menos que Lazio, Verona, Ascoli, Cesena e Bologna, primeiros times fora da zona de rebaixamento. Por detalhes, Galeone e seus comandados voltaram à segunda divisão.

Allegri foi o destaque dos biancazzurri em sua última participação na elite nos anos 1990 (Wikipedia)

Últimos suspiros e tentativas de renascimento

Nos três anos seguintes, o Pescara disputou a Serie B; em dois deles contando com a presença de Edmar no elenco. Galeone, que teve uma breve experiência no Como, voltou ao Abruzzo no final de 1990 e, em 1992, devolveu os golfinhos à primeira divisão. No elenco havia alguns remanescentes da histórica campanha da salvezza na Serie A, como Camplone, Dicara e Pagano, e novos pilares, como o zagueiro Ubaldo Righetti (vice-campeão europeu e campeão italiano com a Roma) e os meias Ottavio Palladini e Massimiliano Allegri.

Para mais uma disputa do Campeonato Italiano, Scibilia novamente não poupou esforços para dar a Galeone jogadores de nível internacional. No entanto, se investiu em medalhões, não formou um elenco equilibrado: o retorno de Sliskovic e as chegadas dos experientes defensores Roger Mendy (da seleção senegalesa) e John Sivebaek (ex-Manchester United, Saint-Étienne, Monaco e campeão europeu pela Dinamarca); do futuro capitão do tetra brasileiro, Dunga, e do atacante Stefano Borgonovo, contratados junto à Fiorentina, não evitariam a queda para a segunda divisão.

Galeone foi demitido após a 25ª rodada e o Pescara chegou a ensaiar uma reação, vencendo o Napoli e aplicando 5 a 1 na Juventus, com dois de Allegri. Apesar disso, o rebaixamento e a lanterna se consumariam, com larga desvantagem para os concorrentes. Em uma época em que a vitória valia apenas dois pontos, os delfini concluíram a campanha de 1992-93 com 13 a menos que os primeiros times que se salvaram: foram 23 derrotas e apenas cinco empates e seis vitórias.

O ano seguinte foi duro para o Pescara, que se perdeu na gestão do futebol e ofereceu aos torcedores um aperitivo do que estava por vir: embora o elenco tenha mantido peças importantes, os golfinhos lutaram para não caírem para a Serie C1. Isto viria a acontecer em 2001, três anos antes de Pietro Scibilia deixar a presidência. Dali em diante, foram quase 20 anos perambulando entre a segunda e a terceira divisões.

O Pescara faliu em 2009 e, refundado, voltou a brigar para voltar à Serie A depois que o atual presidente, Daniele Sebastiani, assumiu o controle acionário. Em 2012, finalmente começou a encantar: com Zdenek Zeman no comando e os jovens Lorenzo Insigne, Ciro Immobile e o prata da casa Marco Verratti em campo, a equipe conquistou seu segundo título da Serie B. No ano seguinte, a equipe sofreu com um desmonte, penou, e nem mesmo os milagres do goleiro Mattia Perin a mantiveram na primeira divisão, e o tal “efeito ioiô” se fez presente, tal qual na atual temporada.

A torcida biancazzurra está acostumada ao sobe e desce, mas não esconde que sonha com a possibilidade de desfrutar mais tempo na elite. Alguns radicais, mais exaltados, não pouparam o presidente Sebastiani em 2016-17: o pressionaram com ameaças e destruição de parte de seu patrimônio (teve carros queimados e casa apedrejada). Hoje, o dirigente pensa em deixar o esporte.

Ficha técnica: Pescara

Cidade: Pescara (Abruzzo)
Estádio: Adriatico – Giovanni Cornacchia
Fundação: 1936
Apelidos: Biancazzurri, Delfini
As temporadas (apenas séries A e B): 8 na Serie A e 35 na B
Os brasileiros: Douglas Packer, Dunga, Edmar, Gabriel Appelt, Jonathas, Júnior, Leandro Guerreiro, Lucas Chiaretti, Rômulo Togni, Tita, Victor da Silva e Vito.
Time histórico: Mattia Perin; Cristiano Bergodi, Andrea Camplone (Ubaldo Righetti), Giacomo Dicara, Júnior; Ottavio Palladini (Stefano Ferretti), Gian Piero Gasperini (Dunga), Bruno  Nobili; Massimiliano Allegri (Stefano Borgonovo); Tita, Blaz Sliskovic (Edmar). Técnico: Giovanni Galeone.

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