A grama já não era lá essas coisas, as arquibancadas estavam quase todas vazias, exceto por um pedacinho em que cerca de uma dezena de imigrantes africanos faziam a festa e cantavam repetitivamente: “Brera Calcio, Brera Calcio…”. Foi assim durante quase todos os noventa minutos.
Estamos na Arena Civica de Milão; um dos estádios mais antigos e tradicionais da Europa, fundado em 1807 como anfiteatro e transformado em praça poliesportiva ainda no século XIX. A arena foi o palco em que Giuseppe Meazza (que dá nome ao estádio mais famoso da cidade) anotou grande parte de seus gols e também recebeu vários dérbis entre Inter e Milan durante os anos 30 e 40.
No domingo, a arena também receberá uma espécie de clássico. Dessa vez, um pouco mais humilde. O milanês Brera vai enfrentar o Assago, equipe que leva o nome de sua cidade – também na província de Milão. Os dois jogam pela Promozione, ou seja, pela sexta divisão italiana.
Pude passar alguns meses trabalhando e ajudando o Brera, um time que surgiu em 2000 e que virou mais um projeto social do que uma equipe de futebol propriamente dita. As pretensões iniciais incluíam sim títulos e possíveis acessos a divisões mais prestigiosas do Belpaese, mas o que o clube conseguiu impulsionar, de fato, foi a transmissão de boas histórias.
O clube
O preto fazia parte do uniforme da Inter e do Milan; um time que nascia querendo ser o terceiro time da cidade decidiu também adotá-lo e para acompanhar a cor, foi escolhido o verde. Já o nome era o mesmo de um bairro boêmio de Milão: Brera. Curiosamente, o próprio nome do estádio em que o clube manda suas partidas também tem Brera no nome – mas por um outro motivo. Em 2002, a Arena Civica foi intitulada “Gianni Brera“, em homenagem ao mais importante jornalista esportivo italiano.
Logo no momento de sua fundação, o presidente pensou em uma estratégia para causar impacto e fortalecer as pretensões da diretoria. Para isso, o famoso goleiro Walter Zenga, ex-Inter e seleção italiana, foi escolhido para ser um dos primeiros técnicos da história neroverde.
A imprensa noticiou bastante, de fato, mas quando a bola rolou, não houve muitas manchetes. O time que estreou na Serie D logo acumulou alguns rebaixamentos e foi ganhando uma cara diferente.
O habitual para os times das divisões inferiores italianas é ter o elenco formado por atletas também italianos que trabalham durante o dia e treinam durante à noite. Enxergando um pouco além, o presidente Alessandro Aleotti não quis mais que o Brera enfrentasse esta realidade. Economista, jornalista, agitador cultural e ativista, o cartola decidiu fazer do clube um instrumento transformador.
Com o passar dos anos, o plantel neroverde passou a ser composto por imigrantes de diversos países: nesta temporada, por exemplo, conta com 15 nacionalidade diferentes. O grande destaque fica por conta dos jovens africanos que chegam ao país na esperança de uma vida um pouco melhor e acabam vivendo um sonho, treinando à tarde como profissionais. E não é só isso.
Uma bela camisa da Nike, um estádio tradicional, uma estrutura razoável e a sessão de fotos para o site oficial do clube ajudam a levantar o moral dos garotos. Um deles é Georges Haba, que já anotou dez gols nessa temporada e acabou se transferindo pra um time mais perto de sua casa. O atacante não escondia suas grandes pretensões:
Quero ser o maior jogador africano de todos os tempos.
Depois de receber alguns olhares dos companheiros, ele minimizou um pouco.
“Na verdade, quero ser o maior da Guiné”.
Não que superar Naby Keïta, Pascal Feindouno, Amadou Diawara, Florentin Pogba ou Ibrahima Traoré seja fácil, mas quem sabe um dia, Georges.
Além das quatro linhas
Além dos treinos e das partidas, a curta história do Brera ganha destaque pelas iniciativas que transcendem o esporte e têm repercussão no extracampo. Se abrir as portas para imigrantes e refugiados já é uma atitude nobre, atuar junto a projetos sociais se transformou em uma das missões da equipe, que coleciona um portfólio interessante. Uma matéria sobre o time feita pelo jornal Corriere della Sera definiu bem a situação neroverde: “pouco dinheiro, mil ideias”.
Uma das principais causas defendidas pelo Brera foi auxiliar na reintegração de presidiários à sociedade, através do futebol: em 2003-04, o elenco neroverde foi formado totalmente por detentos do instituto penitenciário Opera, de Milão. Para a disputa da Terza Categoria da Promozione – equivalente à nona e última divisão do futebol italiano –, o clube assumiu a alcunha de FreeOpera Brera.
Embora os detentos fossem liberados de suas celas para treinar três vezes por semana, a equipe não podia jogar fora de casa. Os adversários (todos de Milão, já que a competição é regionalizada) é que iam até o campo da prisão e enfrentavam a equipe e os seus torcedores, que cantavam e incentivavam os companheiros mesmo de dentro das alas do cárcere.
Em 2011-12, o Brera chegou a participar da Copa Viareggio, tradicional competição sub-20 da Itália: sob o nome Brera Emergence Gabon, os neroverdi deram oportunidade para que jovens gaboneses disputassem a competição. Quatro anos depois, em colaboração com a atriz e ativista política Dijana Pavlovic, sérvia naturalizada italiana, o Brera começou a fazer um projeto para dar espaço à “identidade cosmopolita da população Rom”.
Os romani (conhecidos vulgarmente como ciganos) constituem a minoria étnica mais populosa da Europa, com cerca de 12 milhões de pessoas espalhadas pelo continente. É um povo que sofre enorme preconceito, especialmente na Itália, onde vivem pelo menos 200 mil rom. A seleção, que o Brera ajudou a formar, até se classificou para a Copa do Mundo ConIFA, para países, povos minoritários ou apátridas não afiliados à Fifa, mas não participou por causa de trâmites burocráticos.
Uma outra iniciativa, esta sem tanto sucesso, foi a tentativa de fazer os torcedores (ou simplesmente simpatizantes) gerirem o time juntos – o que virou uma grande confusão. O projeto mais atual consiste na criação de uma casa, a “Casa Brera”, para abrigar seus atletas imigrantes e deixá-los mais concentrados no futebol.
Muitos planos e uma mesma linha de raciocínio para ligar todas elas: fazer do futebol um agente de conexão e transformação social. Por uma bola, onze pessoas que vieram de lugares diferentes e que, por vezes, falam línguas totalmente distintas, conseguem se entender bem. E isso é posto à prova em cada uma das ações ou até mesmo em cada um dos jogos.
É claro que o dia a dia do clube não é assim tão inventivo e bonito. O Brera passa por aqueles mesmos problemas que as grandes sociedades futebolísticas conhecem bem: briga com patrocinadores, pressão por resultados, intervenções no vestiário, entre tantos outros. Mas mesmo enfrentando tudo isto, o time ainda consegue, ao fim de cada jogo, trazer o significado da esperança àquele verde presente em seu uniforme.
O juiz apita, algumas cervejas se abrem e jogadores e dirigentes conversam sobre o que acabou de acontecer no campo. Um africano, um italiano, um sul-americano e um asiático: todos comendo do mesmo pote de batatinhas e tentando se comunicar. Isso só reforça um dos lemas internos do time: “comunque vicenti”. Ou seja, “apesar de tudo, vencedores” – não importando as circunstâncias.
Eduardo Galeano começa seu livro “Futebol ao Sol e à Sombra” lembrando de alguns garotos que, após o joguinho do bairro, saíam cantando:
Gañamos, perdimos,
igual nos divertimos.
E assim viajamos de um pequeno bairro uruguaio para o italiano bairro de Brera. A mensagem que os garotos passam é a mesma do time: o futebol é universal, não importando quem vence, quem perde, quem joga.
Que os torcedores continuem cantando infinitamente.
Agora posso dizer sem hesitação:
O futebol respira!
Kkk