Quando falamos de talentos desperdiçados por problemas extracampo, o primeiro nome que nos vem à cabeça é o de Antonio Cassano. Fantantonio certamente não foi o craque que todos esperavam, mas não é o único exemplo de promessa não cumprida na Itália. Curiosamente, quando foi viver seu auge na Sampdoria, o atacante barês substituiu um outro ídolo doriano que não alcançou o máximo de seu potencial. Francesco Flachi é o terceiro maior artilheiro blucerchiato, mas o uso de cocaína comprometeu sua trajetória profissional.
Flachi nasceu em Florença e começou numa pequena equipe de bairro na capital da Toscana. Após marcar mais de 150 gols pelo Isolotto, Francesco chamou a atenção de várias agremiações pela Itália. Uma delas foi o Napoli, que se mexeu para levá-lo aos pés do Vesúvio. Ciccio passou alguns dias na Campânia, viu Diego Armando Maradona treinar in loco, mas sua mãe se sentiu mal com a ideia de mandar um filho adolescente para longe. Assim, seu pai se apressou para negociar com a Fiorentina, que também se interessou pelo garoto. No fim das contas, o garoto de 13 anos fechou com seu time do coração por 120 milhões de velhas liras.
O prolífico atacante concluiu sua formação na equipe violeta e estreou profissionalmente antes de completar 18 anos, graças a Claudio Ranieri. Flachi disputou 10 partidas da Serie B 1993-94 e, com dois gols, contribuiu para o título gigliato. Depois da volta da Fiorentina para a elite, dividiu seu tempo entre os profissionais e os juvenis da Viola. Embora tenha jogado 21 partidas na Serie A 1994-95, no ano seguinte recebeu muito menos espaço por parte de Ranieri, que o utilizou apenas cinco vezes. De qualquer forma, o atacante participou da conquista da Coppa Italia com o time principal e também pelo sub-20. Atingida a idade limite para atuar na formação Primavera, Ciccio foi emprestado ao Bari para ganhar experiência.

Depois de três passagens pela Fiorentina e de rodar pela Itália, Flachi virou ídolo da Samp (LaPresse)
Francesco Flachi fez uma boa Serie B pelo Bari e ajudou o time treinado por Eugenio Fascetti à voltar para a elite imediatamente após a queda. As atuações positivas convenceram a diretoria da Fiorentina a aproveitá-lo na temporada 1997-98, mas o técnico Alberto Malesani quase não concedeu espaço ao atacante, que tinha bastante concorrência na posição – Gabriel Batistuta, Luís Oliveira, Anselmo Robbiati e, depois, Edmundo.
A falta de oportunidades fez Flachi ser emprestado novamente, em janeiro de 1998. Seu destino foi o Ancona, que lutava para não cair na segundona. Mesmo tendo chegado ao clube marquesão no meio da temporada, o atacante conseguiu ser o artilheiro dos biancorossi, com 10 gols em 17 partidas. Apesar disso, não salvou a equipe do rebaixamento para a Serie C1. Ao fim da temporada, retornou à Florença, mas não foi nem mesmo considerado por Giovanni Trapattoni durante a ótima campanha dos gigliati, que foram terceiros colocados na Serie A e finalistas da Coppa Italia.
Depois de um ano de completa inatividade, Flachi foi negociado em definitivo pela Fiorentina, que o mandou para a Sampdoria, então na Serie B. Era um momento muito complicado para o clube de Gênova, que via seu ciclo de ouro se encerrar em definitivo: afinal, a equipe blucerchiata teria de jogar novamente a Serie B após 18 anos seguidos de conquistas e boas campanhas na elite.
O jogador nascido em Florença chegou à Samp para compor elenco, mas aceitou a transferência de bom grado, pois gostava dos uniformes dos blucerchiati, da atmosfera do estádio Luigi Ferraris e também nutria o sonho de seguir os passos de Roberto Mancini, um de seus ídolos. Ciccio só ganhou a titularidade no ano seguinte, depois da contratação do técnico Luigi Cagni e das saídas dos atacantes Francesco Palmieri e Carmine Esposito. Em 2000-01, Flachi finalmente deslanchou e, com 17 gols, ficou entre os três primeiros colocados na artilharia da segundona. Destro, mas muito bom com a canhota, era habilidoso e ficou famoso por marcar gols acrobáticos.

Ciccio ajudou a Sampdoria a sair da Serie B e a levou para as competições europeias em pouco tempo (LaPresse)
Em 2001-02, Flachi ganhou de vez o respeito da torcida após marcar 16 gols e ter sido o principal responsável por evitar um desastre: a queda do time à Serie C. Após a temporada vexatória para a agremiação, mas positiva para o atacante, surgiu uma proposta do Monaco. Ciccio, porém, recusou nove milhões de euros por um contrato de quatro anos e permaneceu no clube, que foi comprado pelo empresário Riccardo Garrone. Fez bem, pois a Samp logo retornou à elite, sob o comando de Walter Novellino. No acesso, Flachi teve participação mais discreta no número de tentos (foram nove), mas serviu como garçom para o centroavante Fabio Bazzani, que fez 16.
Com a chance de atuar na Serie A 10 anos depois de ter estreado pela Fiorentina, Flachi acabou relegado ao banco por desentendimentos com Novellino. Porém, era claro que um jogador tão habilidoso e importante não poderia ficar de fora daquele time e as rusgas se resolveram ainda na parte inicial do campeonato.
Após ganhar a posição de volta, Flachi se tornou o principal receptor das jogadas criadas pelos meias, ao lado de Bazzani e, depois Emiliano Bonazzoli. O ataque da Samp de Novellino não era dos mais prolíficos, mas Ciccio sempre acabava ultrapassando os dois dígitos na artilharia: foram 11 em 2003-04 e 2005-06 e 14 em 2004-05. Em seu ano mais exitoso, o toscano foi o grande responsável por garantir à Sampdoria uma histórica classificação à Copa Uefa, o que não acontecia havia quase uma década. Nesta temporada, até foi chamado para a seleção italiana, na primeira convocação do trabalho de Marcello Lippi, mas não foi utilizado pelo treinador.
A partir de 2006, começou a derrocada do atacante. Em setembro daquele ano, Flachi foi suspenso por dois meses, acusado de tentar ajudar apostadores a obterem vantagens ilícitas e lucrarem com um dérbi romano, algo que ele sempre negou. Após retornar aos gramados, o toscano conseguiu atingir a marca de 110 gols pela Sampdoria, tornando-se o terceiro maior artilheiro da história doriana – atrás apenas dos mitos Gianluca Vialli e Roberto Mancini.
Em fevereiro de 2007, porém, veio o baque: Flachi foi pego num exame antidoping. As amostras colhidas após uma partida contra a Inter registravam a presença de benzoilecgonina, um metabólito da cocaína. O atacante foi suspenso preventivamente e, em março, as contraprovas reafirmaram o uso da substância. Francesco pegou um gancho inicial de 16 meses, mas o Comitê Olímpico Italiano acabaria aumentando a pena para dois anos de exclusão do esporte. Posteriormente, Ciccio afirmou que passou a consumir drogas por ter entrado em depressão devido à punição anterior – que considerava injusta, uma vez que alegava ser inocente.
No período de suspensão, Flachi ficou treinado com o Pietrasanta, clube que militava na Eccellenza da Toscana – o equivalente à quinta divisão do país, que é dividida em grupos regionalizados. Em 2008, o atacante assinou com o Empoli, mas só pode entrar em campo em fevereiro de 2009, por conta dos problemas com a justiça desportiva. Ciccio ajudou a equipe azzurra a fazer uma boa Serie B, mas não renovou contrato e assinou com o Brescia para a temporada seguinte.
Flachi começou bem pelo Brescia, que conquistaria o acesso à elite ao fim da temporada. O atacante, porém, interrompeu sua contribuição no início de 2010. O toscano foi flagrado novamente por uso de cocaína antes da derradeira partida do ano anterior, contra o Modena – na ocasião, decidiu a peleja com um gol aos 88 minutos. Como era reincidente em doping, Ciccio corria o risco de ser banido do esporte, mas a justiça preferiu condená-lo a 12 anos de suspensão. Para um jogador de quase 35, dava na mesma.
Obrigado a deixar o futebol, Flachi voltou para Florença, consciente de que havia jogado no lixo tudo que havia conquistado. Ao perceber onde havia se metido, conseguiu ter a iniciativa de tentar começar de novo em outra profissão. Dessa forma, juntou algum dinheiro que havia conseguido como profissional e adquiriu, juntamente ao amigo e também ex-atacante Luca Saudati, uma paninoteca. Além de vender panini, transformou o local num restaurante e conseguiu colocar a vida no lugar.

No Brescia, o atacante recebeu a punição que abreviou a sua carreira nos mais altos níveis do futebol italiano (LaPresse)
Enquanto cumpria suspensão, Ciccio disputava partidas beneficentes, atuando por um time de veteranos da Fiorentina. Porém, quis o destino que ele tivesse a oportunidade de deixar a suspensão para trás e entrar em campo por equipes que integram a pirâmide do futebol italiano. Em 2021, assinou com o Signa, da divisão toscana da Eccellenza, sexta categoria nacional, e aguardou cinco meses para que o gancho terminasse e pudesse estrear pelo clube. Em seguida, ainda defendeu a Praese, de Gênova, no sétimo nível nacional.
Afinal, apesar de ser toscano e amar sua terra, Ciccio adotou a capital da Ligúria como sua segunda casa. Em Gênova, aliás, iniciou sua trajetória como dirigente, na própria Praese, e nas cercanias da cidade também teve funções de bastidores em outros clubes amadores, até se tornar técnico do PSM Rapallo. Algo que durou pouco, já que um princípio de infarto lhe fez rever suas prioridades.
Flachi preferiu conservar sua posição de ídolo blucerchiato e curtir a aposentadoria em paz. Pode até ser que Ciccio não tenha se tornado uma grande estrela do futebol italiano e esteja longe de ser conhecido pelo grande público fora da Itália, mas é fato que seus gols continuam vivos na memória da fanática torcida da Sampdoria, que realmente valoriza suas lendas.
Francesco Flachi
Nascimento: 8 de abril de 1975, em Florença, Itália
Posição: atacante
Clubes como jogador: Fiorentina (1993-96, 1997 e 1998-99), Bari (1996-97), Ancona (1998), Sampdoria (1999-2007), Empoli (2008-09), Brescia (2009-10), Signa (2022) e Praese (2022-23)
Títulos como jogador: Serie B (1994), Coppa Italia Primavera (1996) e Coppa Italia (1996)
Clubes como treinador: PSM Rapallo (2024)