Nos anos 1990 e 2000, as seleções da Iugoslávia e de Sérvia e Montenegro não precisaram se preocupar com quem ocuparia o posto de centroavante. Afinal, os balcânicos contavam com Darko Kovacevic e Savo Milosevic, ambos de passagem pela Itália. A bem da verdade, o segundo citado deu poucas oportunidades para o primeiro. Também sem esconder os fatos, os dois fizeram menos na Serie A do que o que se esperava.
Nascido na parte sérvia da Bósnia e Herzegovina, Savo Milosevic começou a jogar futebol quando tinha seis anos, e aos 14, se transferiu para as categorias de base do Partizan, um dos principais clubes de futebol da antiga Iugoslávia. Jogando como centroavante, com 1,86m e canhoto, Savo impressionava a todos por conta de seu físico, faro de gol e contribuição no jogo de forma coletiva, combinação rara para atletas que costumam ser taxados como “lentos, individualistas e pouco participativos”, por conta da altura e da posição avançada.
Milosevic fez sucesso desde o início. Estreou no time de Belgrado aos 19 anos e, nas três temporadas seguintes, alcançou a incrível marca de 79 gols em 119 jogos. Isso o levou a, obviamente, ser chamado para a seleção iugoslava, pela qual estreou em solo brasileiro: na antevéspera do Natal de 1994, disputou alguns minutos do amistoso terminado com derrota por 2 a 0 para o Brasil, em Porto Alegre. No verão do ano seguinte, depois de ser duas vezes artilheiro e vencedor do Campeonato Iugoslavo, Savo se transferiu para o Aston Villa, clube em que teria o primeiro desafio em alto nível na sua carreira.
Agora jogando em uma liga muito mais difícil, Milosevic teve problemas em se adaptar e sofreu com algumas sequências de jogos sem marcar, e com chances claras de gol desperdiçadas. O jovem de 22 anos não entregou o esperado, mas fez 29 gols em 90 jogos em mais três temporadas na competitiva primeira divisão inglesa, em anos positivos para os Villains. Em 1995-96, na melhor campanha pelo clube, Savo também ganhou a Copa da Liga pelos Leões de Birmingham e fez gol na final, contra o Leeds United.
Brian Little, seu técnico no Aston Villa, o defende ferozmente de todas as críticas – que julga duras demais. Milosevic jogava enquanto havia uma guerra civil em seu país natal e, aparentemente tinha familiares e amigos envolvidos no conflito que conflagrava bósnios e sérvios. Sem saber falar inglês e ainda muito jovem, teve que lidar com problemas que deixavam sua vida dificílima; e mesmo assim, era um dos mais empenhados em campo e nos treinos, segundo seu antigo técnico.
Porém, em um jogo de janeiro de 1998, enquanto o time perdia por 5 a 0 para o Blackburn fora de casa, o jogador ouviu ofensas e várias críticas de sua torcida no setor visitante. Decidiu retribui-las com uma cusparada e teve que ser segurado por seus companheiros. Colocado na lista de transferências, sob ameaça de boicote da torcida caso a venda não acontecesse, disputou sete jogos até o fim da temporada e foi vendido ao Real Zaragoza. Infelizmente, seu legado já não era bom e foi fortemente maculado por este incidente.
Depois de 117 jogos e 33 gols pelo Aston Villa, Milosevic teve uma nova chance na liga espanhola e não a desperdiçou. O centroavante marcou 40 tentos em 79 partidas, sendo 17 deles na temporada 1998-99 de La Liga e 22 na seguinte. Em 1999-2000, inclusive, o iugoslavo foi o grande nome de uma espetacular campanha do Zaragoza, que fez 63 pontos e terminou o campeonato na quarta posição.
Os blanquillos por pouco não se classificaram para a Champions League naquela temporada. A quarta colocação daria vaga no maior torneio de clubes do mundo, mas o Real Madrid, quinto colocado, se qualificava como detentor da taça. Na Liga, o time de Milosevic ficou apenas cinco pontos atrás do Valencia, campeão, e um atrás do Barcelona, vice – ou seja, da vaga direta.
Após levar o Zaragoza à Copa Uefa, Milosevic aportou na Itália. Devido à venda de Hernán Crespo para a Lazio, o Parma estava atrás de um centroavante de calibre para o seu time, e o iugoslavo foi contratado para ser o camisa 9 parmesão. Contudo, não teve uma boa passagem pelo Ennio Tardini, contrariando todas as expectativas.
Na primeira temporada, Savo disputou posição com Amoroso, Marco Di Vaio e Patrick Mboma, além de ter sido treinado por três técnicos diferentes em poucos meses – Alberto Malesani, Arrigo Sacchi e Renzo Ulivieri. Ainda assim, o Parma conseguiu ficar com a quarta posição da Serie A. Na competição, deixou oito gols em 21 aparições, sendo os mais importantes deles os anotados nas vitórias sobre Perugia (doppietta), Atalanta e Lecce, e o de um empate por 2 a 2 com o Milan.
Milosevic também apareceu nas copas, mas não contou com a sorte. O sérvio marcou gols no confronto contra o PSV Eindhoven na Copa Uefa, quando o time foi eliminado pelo critério do gol fora de casa, e na final da Coppa Italia, quando o time apenas empatou com a Fiorentina e perdeu por 2 a 1 no agregado.
Depois de um outro começo decepcionante do Parma, no meio de sua segunda temporada na Emília-Romanha, o atacante foi emprestado ao Zaragoza. Na volta à Espanha, marcou seis gols em 16 jogos e salvou os maños do rebaixamento.
Sucessivamente, Milosevic foi emprestado pelo Parma por mais dois anos, sempre a clubes espanhóis. No início uma crise financeira que culminaria em rebaixamento, o clube crociato optou por ceder um atleta que não havia rendido na Itália e que custava caro aos combalidos cofres emilianos – Savo fora adquirido por um valor equivalente a 25 milhões de euros e recebia um vultoso salário.
Primeiro, o sérvio passou pelo Espanyol, que ajudou a salvar da segundona com seus 12 gols marcados. Depois, defendeu um Celta de Vigo empolgado pela estreia na Champions League. Milosevic já não marcava tantos gols desde sua saída da Itália, mas ainda liderava os times que defendia e, assim, conseguiu levar os célticos às oitavas da Liga dos Campeões, às quartas da Copa do Rei e marcar 14 gols em La Liga. Contudo, a gestão celeste não era boa e a equipe acabou sendo rebaixada.
Aos 30 anos, em fim de contrato com o Parma, Savo se transferiu ao Osasuna, onde jogou de 2004 até 2007. O sérvio liderou a equipe de Navarra em anos muito positivos, sob o comando do técnico Javier Aguirre. Pelos rojillos, foi vice-campeão da Copa do Rei e quarto colocado em La Liga, o que rendeu ao time uma classificação para os playoffs da Liga dos Campeões. Nesta última campanha, em 2005-06, Milosevic marcou 11 gols.
Já comandado por José Ángel Ziganda, o Osasuna foi eliminado na fase preliminar da UCL pelo Hamburgo. Os espanhóis, então, disputaram a Copa Uefa – e com louvor. Após baterem o Bayer Leverkusen por 4 a 0 no agregado, foram até a semifinal, quando perderam para o Sevilla, campeão com Daniel Alves, Luís Fabiano, Renato e Jesús Navas.
Milosevic deixou o clube de Navarra logo após a bela campanha continental e ficou seis meses parado. O veterano chegou a negociar com o Toronto, recém-chegado à Major League Soccer, mas decidiu concluir sua carreira jogando no Rubin Kazan, da Rússia. Aos 35 anos de idade, teve sucesso em sua derradeira temporada e se viu coroado como campeão russo.
Além de ter vivido alguns momentos gloriosos por clubes, Milosevic teve sucesso genuíno na seleção – em aparições que realmente demonstraram a sua qualidade como centroavante. Desde sempre, teve que disputar um lugar no time titular com Kovacevic, companheiro com o qual compartilha, curiosamente, uma história quase idêntica.
Com a mesma altura, idade e posição, começaram na Sérvia e foram para a Inglaterra no mesmo ano. Não jogaram muito bem por lá e se transferiram para a Espanha, onde tiveram melhor rendimento e viram as portas serem abertas para o futebol da Itália, o melhor da época. Na Bota, não conseguiram repetir os bons jogos e retornaram à Espanha para tempos melhores. Os atacantes divergiram apenas no final da carreira: se Milosevic foi se aposentar na Rússia, Kovacevic encerrou seu trajeto profissional na Grécia.
Como eram quase gêmeos, futebolisticamente falando, Milosevic e Kovacevic disputavam o mesmo espaço na seleção. Savo, porém, nunca teve seu lugar realmente ameaçado por Darko, que teve de amargar o banco de reservas ou atuar improvisado em outras funções pela Iugoslávia e por Sérvia e Montenegro. A hegemonia do ex-atacante do Parma ficou nítida durante a Eurocopa de 2000, justo quando o técnico Vujadin Boskov experimentou começar a partida contra a Eslovênia com o seu “rival” em campo.
Os iugoslavos perdiam por 2 a 0 quando, pouco depois do intervalo, o treinador sacou Kovacevic para a entrada de Milosevic. Logo depois, a Iugoslávia sofreu o terceiro gol. Contudo, em uma verdadeira blitz comandada pelo ex-jogador do Partizan, os plavi conseguiram empatar com dois gols do centroavante. No jogo seguinte, já como titular, Savo conseguiu o gol crucial da campanha do time no campeonato: aos 8 minutos, marcou contra a forte Noruega, garantindo a vitória e classificação para as quartas de final, já que os dois times empataram em todos os critérios e o confronto direto serviu como critério desempate.
Com mais dois gols nos dois jogos seguintes, ante Espanha e Holanda, chegou a cinco no torneio continental. A Iugoslávia foi eliminada após uma goleada de 6 a 1 para a Oranje, dona da casa, mas isso não impediu Milosevic de entrar na seleção da Euro e de ganhar a Chuteira de Ouro da competição – já que teve menos jogos do que Patrick Kluivert, também autor de cinco tentos. Apenas Savo, Pep Guardiola e Raúl González integraram o time ideal do certame sem terem alcançado as semifinais.
Milosevic também disputou duas Copas do Mundo: a de 1998 e a de 2006, esta última já com a camisa de Sérvia e Montenegro. No total, defendeu sua nação por 102 partidas, sendo o recordista no quesito de 2004 até 2011 – Dejan Stankovic e Branislav Ivanovic, com 103 e 105 jogos, respectivamente, o superariam. Com 37 tentos, ficou a apenas um gol do recorde máximo iugoslavo/sérvio, de Stjepan Bobek, e provavelmente será ultrapassado em poucos anos por Aleksandar Mitrovic, hoje centroavante do Fulham.
Fora dos campos, Savo teve uma breve experiência como auxiliar da seleção de Montenegro, entre 2011 e 2012. Muitos anos depois, virou treinador do clube que o projetou. O ex-atacante começou sua jornada no Partizan Belgrado em março de 2019, e foi demitido em setembro de 2020, depois de apenas ganhar a Copa da Sérvia de 2019 e sofrer constantes derrotas para o Estrela Vermelha. Também comandou, sem muito sucesso, o Olimpija Ljubljana, da Eslovênia, e a seleção de Bósnia e Herzegovina.
Em sua vida pessoal, Milosevic teve de superar muitas tragédias. A primeira tem a ver com seu próprio sobrenome, originário de uma tribo situada em Montenegro que se dissipou em extensa descendência. Savo é um parente distante de Slobodan Milosevic, ex-presidente da Iugoslávia e indiciado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra: o genocida envolveu os povos da antiga Iugoslávia em conflitos étnicos e sangrentos, que deixaram milhares de mortos, e acabou indo a óbito enquanto estava preso e aguardava julgamento.
Essas guerras foram fatores fundamentais para que o ex-centroavante vivesse altos e baixos na parte inicial de sua carreira. Oscilações são normais e esperadas na carreira de um jogador, com uma infinidade de fatores capazes de afetar a produtividade, cada um deles de um jeito diverso. Milosevic, porém, teve que conviver com um país em guerra civil enquanto jogava no exterior, saindo de uma realidade muito diferente do que era a Europa Ocidental nos anos 1990. Vale dizer que, desde cedo, Savo era opositor do regime comandado por seu parente e militava pelo Partido Democrático, ao qual se filiou em 2003.
Em 2011, a segunda tragédia ocorreu no âmago de sua família. Nas redondezas de sua cidade natal, seu pai, Stevan, foi assassinado. E não foi um crime qualquer: foi um filicídio. Após uma briga, o avô do ex-atacante, que também se chamava Savo, deu um tiro de carabina no peito do seu próprio filho. O patriarca, então com 83 anos, foi preso e acabou falecendo na cadeia, poucos meses depois.
Dá para perceber quantas dificuldades Milosevic teve de superar para ser um vencedor. Comparando o seu rendimento na seleção, sempre constante e de alto nível, com o obtido pelos clubes em que jogou, fica claro que aqueles times que conseguiram criar um cenário favorável para o desenvolvimento e aceleração do processo de adaptação do jogador colheram os vários frutos que Savo lhes proveu enquanto mitigava suas dores.
Savo Milošević
Nascimento: 2 de setembro de 1973, em Bijeljina, na Iugoslávia (atualmente Bósnia e Herzegovina)
Posição: atacante
Clubes como jogador: Partizan (1992-95), Aston Villa (1995-98), Zaragoza (1998-2000, 2002), Parma (2000-02), Espanyol (2002-03), Celta de Vigo (2003-04), Osasuna (2004-07) e Rubin Kazan (2008)
Títulos como jogador: Campeonato Iugoslavo (1993 e 1994), Copa Iugoslava (1994), Copa da Liga Inglesa (1996) e Campeonato Russo (2008)
Carreira como treinador: Partizan (2019-20), Olimpija Ljubljana (2021) e Bósnia e Herzegovina (2023-24)
Títulos como treinador: Copa da Sérvia (2019)
Seleção iugoslava: 71 jogos e 32 gols
Seleção sérvio-montenegrina: 30 jogos e 3 gols
Seleção sérvia: 1 jogo e 2 gols
Total por seleções: 102 jogos e 37 gols