Uma expressão da moda na imprensa italiana é il rientro dei cervelli — o retorno dos cérebros, em tradução literal. Trazer de volta pesquisadores e profissionais qualificados é o principal objetivo do Decreto Crescita, um decreto-lei que promove mudanças urgentes para incentivar o crescimento econômico da Itália. E a medida também terá impacto no futebol. Meio sem querer, o governo criou sua “Lei Beckham”, repetindo o que a Espanha fez no início da década ao dar benefícios fiscais para a contratação de jogadores que moravam em outro país.
Se você já sabe como funciona o tal Decreto Crescita, pule para o terceiro parágrafo. Se não, fica aqui uma explicação rápida: qualquer empresa da Itália, ao contratar um profissional que passou os últimos dois anos morando em outro país, pagará muito menos impostos do que o previsto se este profissional se comprometer a ficar ao menos dois anos seguidos na Itália. O texto já foi publicado na Gazzetta Ufficiale, o Diário Oficial de lá, e está em vigor. Agora, passa por ajustes no Parlamento.
O decreto é uma ajuda sensível para que a Serie A consiga voltar a ser competitiva no cenário europeu. Por exemplo, foi assim que a Inter conseguiu contratar Antonio Conte gastando entre €13 milhões e €14 milhões por temporada. Antes do decreto, o custo anual do técnico ficaria entre €20 milhões e €22 milhões.
O cálculo Pogba
Em resumo: a alíquota de 43% de imposto de renda será calculada apenas sobre metade do salário líquido. Assim, a empresa que pagar € 1 milhão a alguém terá de recolher €215 mil em impostos, em vez dos costumeiros €430 mil.
É por isso que a Juventus pode se dar ao luxo de sonhar com Paul Pogba. Para dar ao francês um salário anual de €15 milhões, a campeã italiana perpétua teria de desembolsar €18,2 milhões. Para pagar a ele os mesmos €15 milhões, o Real Madrid gastaria €22,2 milhões. O novo regime fiscal também poderá ajudar a atrair gente como Matthijs de Ligt, Adrien Rabiot e Romelu Lukaku. Mas, para saber se o doping financeiro realmente funcionou, será necessário esperar o fim da janela de transferências.
Agora, será muito mais conveniente contratar jogadores estrangeiros do que italianos, segundo a análise do professor de direito tributário Angelo Cremonese ao jornal Fatto Quotidiano. “Mas o futebol também merece uma ajuda, no fundo é uma das maiores indústrias do país”, disse ele.
E poderia ser melhor
Inicialmente, o decreto-lei permitia que qualquer empregador recolhesse o imposto de renda relativo a apenas 30% do salário líquido. Assim, aqueles €18,2 milhões de Pogba cairiam para €16,9 milhões.
Só quando o legislação chegou ao Parlamento é que a classe política percebeu este efeito colateral no futebol. Assim, o legislativo aprovou uma emenda para diminuir o desconto, fazendo o cálculo sobre metade do salário líquido. Os deputados também criaram uma taxa extra de 0,5% sobre esses valores. O dinheiro vai financiar um fundo estatal de desenvolvimento das categorias de base.
Outro efeito colateral é o fato de o texto original prever um desconto maior ainda para o sul da Itália. Ali, o recolhimento do importo de renda será relativo a 10% do valor líquido — só por comparação, no exemplo Pogba o valor chegaria a €15,6 milhões.
Esse incentivo beneficiaria ainda mais três times da Serie A: Cagliari, Lecce e Napoli. A emenda do Parlamento derrubou essa diferença no futebol, como forma de evitar um desequilíbrio potencial também na Serie B. Na segunda divisão, 7 dos 20 inscritos (Benevento, Cosenza, Crotone, Juve Stabia, Palermo, Salernitana, Trapani) se beneficiariam de um regime fiscal tão diferente.
A “Lei Beckham” na Espanha
O decreto real 687/2005, assinado pelo presidente conservador José María Aznar, ficou popularizado como “Lei Beckham”. Para muitos especialistas, esta lei foi decisiva para impulsionar o sucesso do Campeonato Espanhol no início do século.
Com a medida, o governo reduziu de 43% para 24% os impostos pagos para contratar trabalhadores do exterior que ganhassem mais de €600 mil anuais. O efeito foi retroativo e beneficiou o Real Madrid na contratação de David Beckham.
Pagar uma alíquota de 24% de impostos era considerado um doping financeiro porque a taxação era muito maior nos outros países — 50% na Inglaterra, 45% na Alemanha, 43% na Itália, 40% na França.
Assim, o Real Madrid conseguiu contratar jogadores como Cristiano Ronaldo, Kaká, Gareth Bale e James Rodríguez. O Barcelona também se beneficiou: levou Cesc Fàbregas, Thierry Henry, Zlatan Ibrahimovic e Neymar, entre outros. Em menor escala, o decreto também ajudou outros times, permitindo as contratações de Falcao García pelo Atlético de Madri e Giuseppe Rossi pelo Villarreal.