Alec Stock, o “primeiro cavalheiro do futebol”, apelido que recebeu ao longo da carreira, teve um roteiro no esporte marcado por duas fases: a de jogador, interrompida por conta da Segunda Guerra Mundial, e a de treinador, que o tornou uma figura respeitada dentro da Inglaterra pelos bons trabalhos desenvolvidos em diferentes times. Ele teve a oportunidade de comandar a Roma no final da década de 1950, e os números estavam longe de serem considerados ruins. Porém, foi vítima de um boicote arquitetado por um cartola e, quatro meses depois, já estava demitido do clube giallorosso.
Jogador, treinador e uma guerra no meio
Stock nasceu em Peasedown St. John, no coração de um campo de carvão, onde seu pai trabalhava. Após a Greve Geral de 1926, um movimento organizado por operários em protesto à redução salarial aplicada aos mineiros, sua família se mudou para Kent. Na escola, Alec se revelou um promissor jogador de rugby e também de críquete. Após concluir os estudos, foi funcionário de um banco, algo que ele detestava. Um de seus hobbies era jogar futebol, na posição de centroavante.
O garoto buscou oportunidades e, depois de realizar um teste para o Tottenham, o empresário Jimmy Seed se interessou por ele e o contratou como atleta amador. Pouco tempo se passou, e ele foi para o Charlton acompanhado de seu pai, que foi contratado pelo clube como assistente de jardinagem; um “trabalho horrível”, segundo o próprio Alec.
Dois anos mais tarde, transferiu-se para o Queens Park Rangers, mas uma lesão no tornozelo e a intensificação da Segunda Guerra puseram fim à sua carreira de atleta. Stock teve de se juntar a um regimento de infantaria, foi promovido a capitão e participou da Batalha de Caen, em agosto de 1944, quando foi atingido indiretamente por tanques alemães e, dali em diante, passou a conviver e carregar consigo pedaços de estilhaços cravados em algumas partes do corpo.
Com o fim da guerra, um dia, ao ler o Daily Herald, um clássico tablóide inglês, viu que o Yeovil Town estava em busca de um jogador-treinador. Foi a oportunidade para que ele pudesse se reconectar com o futebol. Alec fez parte da histórica campanha da FA Cup, em 1949, tendo eliminado o forte time do Sunderland, base da seleção inglesa, e chegado à quinta fase da competição. Isso ajudou a colocar o clube no mapa, e Stock foi um dos primeiros técnicos na Europa que adotaram o sistema 4-4-2, em uma época onde a maioria jogava com três ou quatro homens na linha de frente.
Seu próximo destino foi o Leyton Orient, onde permaneceu durante sete temporadas e estabeleceu forte vínculo com Harry Zussman, presidente do clube. Por lá, ficou conhecido como alguém que montava times tecnicamente sólidos e taticamente fortes, além de ter uma boa atuação no mercado de transferências. Stock obteve bons resultados em copas e uma promoção à segunda divisão, o que lhe rendeu um convite para se tornar assistente no Arsenal, em 1955.
A experiência durou apenas 53 dias e nada deu certo por lá, de modo que retornou ao Leyton Orient. Um exemplo cristalino foi quando Stock falou com Danny Clapton, um jovem jogador, para ir até dois veteranos, o goleiro Jack Kelsey e o lateral e capitão Dennis Evans, com um cinzeiro e pedir-lhes que apagassem os cigarros. Os atletas bateram as cinzas no recipiente e continuaram a fumar.
A chegada em Roma e o descortês Busini
Em 1957, Stock soube que diversos jornais noticiavam um suposto interesse da Roma em seu trabalho, mas nenhuma pessoa ligada ao clube italiano o havia contactado. Certa vez, enquanto aproveitava alguns dias de folga ao lado da família, leu uma manchete dizendo que tudo já estava acertado para ele viajar para a Itália. Não tardou para que recebesse um telefonema de um homem que se dizia amigo do presidente romanista, Renato Sacerdoti, que perguntou: “Você aceitou a nossa oferta?”. Stock respondeu :”Que oferta?”, e a conversa terminou.
Eis que, passado algum tempo, o renomado agente Gigi Peronace, famoso por intermediar transações entre Itália e Grã-Bretanha, interveio e entrou em contato diretamente com Stock, que recebeu a oferta e tratou de levá-la aos dirigentes do Leyton Orient, com quem tinha um longo contrato firmado. Após conversarem, todos decidiram que o melhor seria que ele aceitasse a oferta. Primeiro, por conta das altas cifras oferecidas, e segundo porque acreditavam que a aventura internacional capacitaria Alec, então com 40 anos, tornando-o um treinador ainda melhor e com a perspectiva de reassumir o time britânico no futuro. Na época, um fator preponderante ajudou com que essa decisão fosse tomada: a derrota da Inglaterra em Wembley por 6 a 3 para a Hungria, em 1953, criou a ideia de que talvez fosse melhor se aprimorar fora do país.
Acertado com a Roma, Stock passou a ser o quarto treinador inglês na história dos giallorossi. O primeiro foi William Garbutt em 1927, no ato de fundação do clube, o segundo foi Herbert Burgess, responsável por montar o primeiro grande time da Loba, vice-campeão da Serie A em 1931, e o terceiro foi Jesse Carver, dois anos antes de Alec.
A Roma vivia anos especialmente turbulentos. Em 1951, a equipe da capital sofreu o primeiro – e único – rebaixamento em sua história, mas logo retornou à elite, sagrando-se campeã da Serie B. As temporadas seguintes foram marcadas por campanhas na primeira metade da tabela, sendo dois sob a batuta de Carver, até um 14º lugar, em 1956-57. Stock chegava com uma certa pressão, pois tinha de fazer o time apresentar melhores resultados.
Em solo italiano, Alec logo se viu em meio a um problema: a barreira do idioma. Por não saber falar a língua local, a comunicação com os jogadores passou a ser feita através de um intérprete, de 16 anos, que se fazia presente em todos os momentos, dos treinamentos às coletivas de imprensa. O jovem era filho de Romulo Raggi, dirigente do clube.
Na pré-temporada, Stock deixou sua marca ao comandar intensos treinamentos com o objetivo de deixar todos na melhor forma possível. Apesar das dificuldades, seu relacionamento com o elenco era profissional e respeitoso. O mesmo, todavia, não podia ser dito a respeito de sua convivência com os dirigentes, em especial Antonio Busini, diretor técnico e vice-treinador. Como sabemos, no futebol, quando as coisas não fluem bem internamente, é difícil ter continuidade no trabalho.
Aos poucos, Stock foi se aborrecendo com algo que se tornava cada vez mais comum. Diversas figuras, que se denominavam diretores do clube, frequentavam os treinos do time, misturando-se com os jogadores e chamando alguns para conversar de forma reservada, como se estivessem contando algum segredo. O treinador inglês sentiu que estavam tentando minar sua autoridade. Os atritos com Busini se estenderam a contratações feitas pelo cartola sem o seu aval.
O boicote
Dentro de campo, os giallorossi tiveram um início interessante na Serie A, com quatro vitórias, cinco empates e somente uma derrota nas 10 primeiras rodadas. O destaque foi o triunfo por 3 a 0 diante da rival Lazio, no Derby della Capitale. O compromisso pela 11ª rodada era contra o Napoli, fora de casa, e Stock não fazia ideia do boicote que viria a sofrer.
No dia 17 de novembro, a delegação da Roma se encontrou às 7h30 para pegar um trem na estação Termini. Todos estavam presentes, incluindo o elenco, o presidente Sacerdoti, os conselheiros e o diretor Busini. Todos exceto Alec Stock. Mesmo com a ausência do treinador, embarcaram pontualmente, às 8h15. O inglês, na verdade, apareceu na estação, mas seu intérprete, de forma deliberada indicou uma plataforma de embarque errada. Sem perceber o complô que estava sofrendo, e tendo percebido que todo mundo já havia partido, optou por embarcar no trem seguinte.
Stock chegou ao estádio Vomero poucos instantes antes do início da partida, mas ao adentrar nos vestiários teve uma amarga surpresa: o treino de aquecimento já havia sido dado por Busini, que também determinou a escalação do jovem Alfredo Orlando, de 17 anos, na vaga do veterano Gunnar Nordahl, de 36. Isso tudo sem o consentimento do inglês, que ficou indignado com a situação e se recusou a sentar-se no banco de reservas, preferindo ficar na arquibancada. Se o jogo em si não teve grandes emoções (terminou empatado, sem gols), só faltou sair faísca no trem de retorno a Roma.
De volta à Cidade Eterna, Stock sabia que a direção iria preparar um anúncio para comunicar sua demissão, mesmo tendo bons números e um contrato de dois anos pela frente. Querendo se antecipar a isso, rapidamente fez as malas e voou para Londres. O anúncio do clube giallorosso dizia: “A AS Roma anuncia que resolveu amigavelmente o seu contrato com o treinador Sr. Alec Stock e isso porque o próprio Sr. Stock pediu para ser exonerado do cargo, encontrando sérias dificuldades nas tarefas que lhe foram confiadas devido ao fato de não poder se expressar bem em italiano”. O escolhido para ocupar o cargo foi Nordahl, um dos raros jogadores-treinadores da Velha Bota em tempos modernos.
Uma das coisas que mais incomodaram Stock na passagem pela Bota foi a diferença de percepção acerca da função do treinador. Na Inglaterra, o técnico tinha papel central na tomada de decisões. Nada se fazia sem seu consentimento, pois ele definia as diretrizes e a forma de atuação do clube em que está inserido – e assim é, até hoje.
Na Itália, o inglês encontrou um cenário diferente e, logo em um dos primeiros momentos no país, se aborreceu por não ter recebido auxílio para encontrar um apartamento para viver com a esposa e suas duas filhas. A família morou em um hotel durante cinco semanas antes de comprar uma casa próxima ao Vaticano. Sem participar das reuniões do conselho, Stock também era deixado de fora em outras ocasiões, como numa cerimônia em que a diretoria presenteou alguns jogadores com relógios de pulso. Magoado, disse que um dos grandes problemas do futebol italiano era a falta de gestão adequada, apontando Helenio Herrera como uma exceção.
Menos de 24 horas depois do ocorrido, Zussman ligou para Stock e o convidou para retornar ao Leyton Orient, quatro meses após sua saída. Ficou por lá até 1959 e acertou a volta ao Queens Park Rangers, onde tinha atuado nos tempos de atleta. Como técnico dos hoops por nove anos, participou de feitos inesquecíveis, como o épico título da Copa da Liga Inglesa (1967), contra o West Bromwich. Na partida, seus comandados saíram perdendo por 2 a 0, mas arrancaram uma inesperada virada por 3 a 2 e deram, pela primeira vez, um título do torneio a uma equipe da terceira divisão. A taça ficou guardada no cofre de um banco, porque o clube não tinha uma sala de troféus.
No mesmo período, Stock conduziu o QPR da terceira à primeira divisão, mas um forte ataque de asma após uma vitória por 4 a 0 sobre o Bournemouth fez com que ele ficasse afastado do trabalho durante três meses. “A asma foi causada por anos de gritos com os jogadores, ou assim me disseram os médicos”, escreveu Alec em sua autobiografia, intitulada “Little Thing Called Pride”. Tendo recebido alta e esperando voltar ao posto na agremiação, soube que seria demitido por Jim Gregory, mandatário do clube, que falsamente alegou que sua doença era incurável, mesmo que nenhum laudo médico comprovasse isso.
Alec Stock ainda comandou Luton Town e Fulham (onde chegou à decisão da FA Cup, perdida para o West Ham) antes de retornar ao QPR como diretor técnico, por pouco tempo. Seu último trabalho como treinador foi no Bournemouth, em 1980, e ele veio a falecer em 2001, aos 84 anos de idade.
Alec William Alfred Stock
Nascimento: 30 de março de 1917, em Peasedown St. John, Inglaterra
Morte: 16 de abril de 2001, em Wimborne Minster, Inglaterra
Posição: atacante
Clubes: Charlton (1936-38), Queens Park Rangers (1938-39) e Yeovil Town (1946-49)
Clubes como treinador: Yeovil Town (1946-49), Leyton Orient (1949-55, 1956-57 e 1958-59), Roma (1957), Queens Park Rangers (1959-68 e 1978), Luton Town (1968-72), Fulham (1972-76) e Bournemouth (1979-80)
Títulos: Terceira Divisão Inglesa (1967) e Copa da Liga Inglesa (1967)
Coitado do cara. Quanta filhadaputagem fizeram com ele, hein?