Os nossos assíduos leitores, amantes do futebol italiano, com certeza se lembram de como se deu a década anterior no país. Entre 2000 e 2010, tivemos times históricos de Milan, Juventus e Inter, em nível europeu, além de fortes equipes de Roma, Lazio e Parma, em nível nacional. Inclusive, é bem provável que grande parte dos jovens que nos seguem se encantaram com as atuações de Kaká no Milan de Carlo Ancelotti ou de Júlio César na Inter de José Mourinho. E é exatamente sobre a situação dos gigantes da Lombardia que iremos discutir neste texto.
Após a Tríplice Coroa da Inter, a primeira e ainda única conquistada por um time italiano, o futebol da península entrou em grave crise. Os times de Milão trocaram de técnicos inúmeras vezes, e ainda tiveram alterações em suas diretorias e até mesmo no que tange à suas propriedades: os donos mudaram, e mais de uma vez. Dez temporadas depois, assistimos atualmente a uma Inter sob a batuta de Antonio Conte e com reforços de grande calibre, enquanto o Milan demitiu Marco Giampaolo depois de sete partidas oficiais, fez contratações menos certeiras e pagou altas quantias em jogadores não consolidados. Como isso aconteceu?
Até 2010, Internazionale e Milan viviam realidades muito semelhantes. Ambos contavam com elencos altamente competitivos e técnicos de primeiro escalão. Seus presidentes – respectivamente, os italianos Massimo Moratti e Silvio Berlusconi – eram figuras consagradas e bastante prestigiadas na Velha Bota.
Entretanto, com níveis altos de endividamento e baixa produtividade, a Itália foi um dos países mais afetados quando a Crise da Zona do Euro de 2009 aconteceu. E, consequentemente, o futebol não consegue ficar ileso ao contexto nacional: os patrocinadores não conseguem injetar tanto dinheiro, as cotas de TV não atingem valores tão altos e o público em geral tem menos poder aquisitivo para pagar o salgado preço dos ingressos. Neste mesmo ano, por exemplo, mesmo com Ronaldinho e Thiago Silva no time, a média de público do Milan (que tinha menos sócios-torcedores já fidelizados do que a Inter) caiu em assustadores 17 mil pagantes em relação a 2008.
Além disso, mesmo com ótimas equipes, as diretorias de ambos os times não enxergaram (ou não quiseram enxergar) o perigoso envelhecimento de seus jogadores. Na época, tínhamos Dida, Nesta, Seedorf, Gattuso e Inzaghi de um lado; Zanetti, Lúcio, Milito e Stankovic de outro. Todos eram excelentes jogadores, mas tinham mais de 30 anos, suas equipes eram altamente dependentes deles e o plano de substituição destes veteranos não poderia ter dado mais errado. Os clubes não conseguiram contratar jovens que conseguissem absorver conhecimento dos jogadores mais vividos e, a partir do momento que a velha guarda saísse do clube – por conta da idade, eles já se aposentariam ali ou sairiam ao fim de contrato, de graça, para jogar em ligas inferiores –, assumissem seus lugares.
Apostas fracassadas, como Bojan e Belfodil, simbolizaram a fase de ambos os times, que ainda tiveram atletas de grande potencial jamais convertido no sucesso esperado – a exemplo de Pazzini, Alexandre Pato, Balotelli, Ricky Álvarez e Ranocchia. Com o time envelhecendo e os jovens não estando à altura dos seus antecessores, os cartolas tinham duas saídas.
A primeira seria retomar um plano dispendioso, arriscado e irresponsável, com grandes quantias de dinheiro investidas em jogadores que viviam seu auge, aumentando as chances de títulos mas praticamente garantindo o endividamento em médio prazo. A outra opção seria continuar com o planejamento a longo prazo e investir na base, provavelmente não ganhando títulos por alguns anos, mas garantindo a saúde financeira e até um bom futuro para o time – tentando segurar os bons jogadores o máximo possível, para também manter o núcleo da equipe.
Os dois times da capital lombarda entraram na segunda década do presente milênio com a corda no pescoço: qualquer movimento em falso poderia ser fatal para o futuro próximo de ambas as equipes. Perderam seus experientes jogadores, o núcleo do time desmontou-se rapidamente e rápidas ações eram necessárias.
A diretoria rubro-negra optou pela contratação de Massimiliano Allegri para comandar reforços como Robinho, Ibrahimovic e Kevin-Prince Boateng, que deram mais um scudetto para a equipe e uma sobrevida no alto escalão, em troca de desastrosos resultados financeiros. A Inter, por sua vez, nem conseguiu reunir forças para contratações, por conta de seus salários altíssimos e queda nas receitas. Rafa Benítez não conseguiu concluir a temporada 2011-12, mas a equipe foi vice-campeã da Serie A e faturou a Coppa Italia. O encerramento dessas campanhas marcou a transição entre o sucesso e os tempos sombrios em Milão.
Já em 2012 o Milan teve de vender Ibrahimovic e Thiago Silva para cobrir altíssimas dívidas e o dinheiro praticamente não foi reinvestido, já que as contratações de reposição foram Acerbi e Niang, no mercado de verão, e Balotelli no inverno. Com isso, os dois clubes entraram juntos em um ciclo vicioso de aumento de dívidas e de simultâneas quedas de receita e de nível técnico dos elencos.
Planejamento é a palavra-chave para sair deste cenário caótico e as agremiações não entenderam este recado por alguns anos. Entre 2010 e 2019, a Inter teve doze técnicos diferentes, e o Milan, onze. Com essa constante troca no comando, quem mais sofre são as joias da base, que precisam de tempo e paciência, coisa que treinadores na “fogueira” jamais terão. Philippe Coutinho, Sokratis e Aubameyang são exemplos de talentos desperdiçados – ou sequer considerados, no caso do gabonês – nesta confusão causada pelos próprios times. Justo aqueles que deveriam fazer de tudo para criar o ambiente mais favorável possível para que o talento de jovens craques tenha a oportunidade de florescer. Daí, a saída mais simples seria vender alguns deles para tentar trilhar o caminho da recuperação financeira.
Em 2013, depois de um sexto e um nono lugar no campeonato, a Inter cedeu 70% de suas ações para um grupo de investimentos indonésio, liderado por Erick Thohir, para poder injetar mais dinheiro no clube e dar mais possibilidades à equipe. Porém, foi só em 2016 que a maré começou a virar, depois da violação do Fair Play Financeiro e com a vinda do grupo Suning, de origem chinesa. Desde então, foram dois anos de Luciano Spalletti e agora, Antonio Conte. Ambos auxiliados pela gestão de futebol de Giuseppe Marotta, multicampeão com a Juventus. Ou seja, a diretoria nerazzurra parece ter finalmente captado a mensagem: planejamento e continuidade.
Neste mesmo período, o Milan também foi comprado. Primeiramente, pelo investidor chinês Li Yonghong, que um ano após sua assunção como presidente não cumpriu as obrigações contratuais, violou o Fair Play Financeiro e estabeleceu as condições para que o time tivesse de negociar sua própria exclusão da Europa League – no intuito de limpar sua ficha de débitos com a Uefa.
Sua gestão temerária – e, de fato, falta de capital para comandar um clube do porte do Milan – lhe rendeu o afastamento da presidência e a entrega do controle financeiro para o grupo de investimentos Elliott, fiador do negócio entre o asiático e Berlusconi. Contratações como André Silva, Çalhanoglu, Biglia e Musacchio foram caríssimas e não deram um retorno futebolístico proporcional ao investimento, fazendo o Milan retroceder o pouco que avançou nos anos anteriores.
Uma das únicas esperanças para o torcedor rossonero hoje em dia, em termos de gestão, é a figura de Ivan Gazidis, contratado pelo presidente Paolo Scaroni – executivo nomeado pelo fundo Elliott. O sul-africano, é CEO do Milan há pouco menos de um ano e vem de trabalhos reconhecidos na Major League Soccer e no Arsenal, que lhe renderam prestígio nos bastidores do futebol europeu. Seu plano de reestruturação da equipe engloba curto, médio e longo prazo, mesclando contratações do nível atual do time, sem gastar mais do que a agremiação pode. Com isso, o cartola visa criar um ciclo virtuoso, no qual jovens possam ser conduzidos por Zvonimir Boban e Paolo Maldini, diretores de futebol, sem jamais esquecer a história e grandeza do Milan.
Para 2019, a Internazionale fechará o balanço da última temporada com o dobro das receitas do período pré-Suning e aumento do endividamento em apenas 48 milhões de euros, fruto do pesado investimento na última janela, com Lukaku e Barella – as duas maiores contratações de sua história. Já o Milan terá um aumento do endividamento de 150 milhões de euros, com diminuição das receitas e custos altos, por conta de seu plantel que ainda gera altas despesas.
Atualmente, a Inter tem uma equipe jovem, bem equilibrada, com um dos melhores técnicos do mundo, dívidas equacionadas e poderio financeiro, enquanto o Milan continua patinando, com troca de técnico após sete rodadas, apostas em jogadores ainda não estabelecidos – mesmo que já tenham mostrado potencial, como Rafael Leão e Léo Duarte – e a prematura venda de Patrick Cutrone ao Wolverhampton. Um negócio que soa absurdo do ponto de vista emocional, mas que tem alguma justificativa no profissional, visto que o clube precisava lucrar com atletas provenientes da base. Tecnicamente, contudo, o jovem centroavante, milanista de coração, ainda poderia mostrar muito mais do que deixaram ele produzir saindo do banco de reservas nos últimos anos.
Sim, pode-se argumentar que a demolição do San Siro e a construção de um novo estádio, mais lucrativo, possa ajudar nas receitas de ambas as equipes. Mas vimos que existem inúmeras razões para o declínio de Inter e Milan, e a fraca receita de bilheteria é apenas uma delas. Contratações equivocadas, trocas frequentes de técnicos e modelos de administração do século passado, que perduraram até serem revistos, também fazem parte da questão e o San Siro jamais deverá ser usado como bode expiatório.
Talvez o início desta nova fase dos nerazzurri prove a nossa tese de que o lendário estádio não é o problema central. Afinal, se existe uma palavra que consiga responder à pergunta “Por que a Inter está num patamar mais alto que o Milan atualmente?”, ela não é “estádio”. É “planejamento”.