No ano de 1985, a Sampdoria alcançava o título da Coppa Italia, o primeiro da gestão do presidente Paolo Mantovani. A conquista que deu início à era de ouro da agremiação foi uma espécie de catarse, um regozijo por finalmente sair da fila e estar entre os grandes. Quase uma década depois, em 1994, o conto de fadas blucerchiato tinha seu último capítulo, na decisão da mesma copa, contra o valente Ancona. O adeus a Mantovani, morto em outubro de 1993, meses antes do jogo, causava seus ecos. Afinal, o que poderia vir pela frente sem a presença do sujeito que, com todos os seus esforços, proporcionou esse período vitorioso, regado de taças?
Com esse sentimento de indefinição, a Sampdoria, presidida por Enrico Mantovani, chegava à final da Coppa Italia de 1994, na temporada em que o clube conseguiu um terceiro lugar na Serie A. Depois do scudetto de 1991, vencido com o técnico Vujadin Boskov, que saiu para a Roma um ano depois, o esquadrão sofreu uma renovação. Sven-Göran Eriksson foi contratado para ocupar o cargo, enquanto o inglês David Platt, o sérvio Vladimir Jugovic e o holandês Ruud Gullit, a grande estrela, reforçariam a formação genovesa, ainda forte, capitaneada por Roberto Mancini.
O complicado caminho doriano até a final
Na primeira fase daquela Coppa Italia, o time de Eriksson tinha pela frente o Pisa, militante da Serie B. Dois 0 a 0 resultaram na disputa por pênaltis, vencida pelos genoveses. Nas oitavas, a Samp derrotou a Roma por 2 a 1 no Marassi; a repetição do placar no segundo jogo, agora em favor da Loba, levaria os dorianos, novamente, às penalidades máximas. Gullit pararia no goleiro Giovanni Cervone, mas as boas cobranças de Platt e Mancio confirmariam a passagem dos blucerchiati às quartas de final.
O confronto com a Inter de Dennis Bergkamp, que se sagraria campeã da Copa Uefa naquela temporada, prometia ser disputado. E assim foi. Attilio Lombardo fez o único gol da primeira partida, deixando o time genovês na frente. No jogo realizado em San Siro, o nerazzurro Davide Fontolan marcou aos 70 minutos. Tudo indicava mais uma prorrogação, quando, aos 44 do segundo tempo, Giovanni Invernizzi cruzou para Gullit. Com uma cabeçada perfeita, o holandês não deu chances para Walter Zenga e anotou um golaço.
Para chegar à sua sexta final de Coppa Italia, a Sampdoria precisaria bater o forte Parma. Dois anos antes, uma doppietta do artilheiro Alessandro Melli havia eliminado os blucerchiati da competição – e justamente na semifinal. No disputadíssimo primeiro jogo, uma cabeçada de Faustino Asprilla abriria o placar para os crociati. Lombardo empatou para a Samp, e, logo em seguida, Platt assinou uma obra de arte: desempatou, de meia-bicicleta. Já na partida de volta, o único tento foi de Gullit, que, impiedosamente, driblou o goleiro e marcou. Uma surpresa esperava os genoveses na decisão.
Uma fábula marquesã
No outro lado, o Ancona também vivia seu único – e incomparável – conto de fadas. Patrono da agremiação e responsável direto pelas suas maiores glórias, o empresário Edoardo Longarini chegou ao time da região das Marcas ainda na década de 1980. Em 1988, os dorici retornaram à Serie B após 37 anos de ausência. Quatro campeonatos, apenas, seriam necessários para a equipe conquistar uma histórica promoção à primeira divisão.
Comandados pelo ofensivo Vincenzo Guerini, os atacantes Mauro Bertarelli e Sandro Tovalieri dividiram a artilharia com nove gols cada, o que possibilitou aos biancorossi atingirem o terceiro lugar na Serie B de 1991-92. Mesmo com a contratação do húngaro Lajos Détári e dos argentinos Sergio Zárate e Oscar Ruggeri (este, campeão mundial), a primeira excursão dos dorici à elite não foi tão venturosa.
Nas 10 primeiras rodadas, a equipe sofreu goleadas de Fiorentina (7 a 1), Juventus (5 a 1) e Torino (4 a 1). Mas também conseguiu placares elásticos contra Foggia (3 a 0) e Brescia (5 a 1) e, jornadas mais tarde, contra a Inter (3 a 0). Em toda a Serie A, sofreram 73 gols, amargando a penúltima posição. Apesar da queda, o Ancona viveria uma aventura quixotesca na temporada seguinte.
Sem os estrangeiros citados anteriormente e também sem a dupla de atacantes, o Ancona parecia não ter a magia de outrora – apesar de o time, na temporada 1993-94, ser cotado como uns dos favoritos para lutar pelo acesso à primeira divisão. A esperança estava depositada nos gols de Massimo Agostini, que não decepcionaria: com 18 tentos, foi o artilheiro da segundona, à frente de atletas como Oliver Bierhoff, Gabriel Batistuta, Giuseppe Galderisi, Andrea Carnevale, Enrico Chiesa, Filippo Inzaghi, Christian Vieri, Dario Hübner e o já citado Tovalieri. Os biancorossi não subiram, mas fizeram história na Coppa Italia.
Na primeira fase da copa, os dorici precisaram da prorrogação para derrotar o Giarre, militante da terceira divisão. Os gols de Sebastiano Vecchiola e Nicola Caccia encaminharam o time à etapa seguinte, na qual o Napoli de Marcello Lippi entrou no caminho do clube das Marcas. Um 0 a 0 no San Paolo causaria uma tensão nos napolitanos, que teriam de conseguir a classificação no tenso estádio Del Conero, onde uma torcida apaixonada iria acompanhar o Ancona. A equipe biancorossa conseguiu abrir vantagem de 3 a 0, com Massimo Gadda e dois tentos de Agostini, e viu os azzurri descontarem apenas no final (3 a 2).
O Avellino, carrasco da Lazio, foi o adversário seguinte. Curiosamente, seis dos 16 times que disputavam as oitavas de final não estavam na Serie A – incluindo o adversário do Ancona, que estava na C1. No jogo de ida contra os lobos, o cabeludo Felice Centofanti marcou um gol no último minuto, dando a vantagem aos dorici. Na partida de volta, os biancoverdi anotaram duas vezes ainda no primeiro tempo, enquanto Gianluca De Angelis descontaria. Aos 80 minutos, um tento de pênalti de Agostini deu a classificação aos anconitanos.
Nas quartas de final, o Ancona teve mais um confronto com um adversário que não militava na primeira divisão – o Venezia. Para ver mais um show da surpreendente equipe comandada por Guerini, cerca de 16 mil torcedores compareceram ao estádio Del Conero. O jovem atacante Vecchiola anotou uma doppietta, e o time completou os dois jogos sem levar gols – na ida, os biancorossi haviam segurado um empate por 0 a 0.
O Torino, campeão da edição anterior, buscava defender o troféu. Ora, se na outra parte da semifinal encontravam-se dois times fortíssimos, Parma e Sampdoria, pegar a zebra da vez, o Ancona, parecia o melhor caminho. Mas não foi assim. No Del Conero, sua legítima fortaleza localizada na região central da Itália, os dorici defenderam, mais uma vez, com maestria, e um gol oportunista de Agostini lhes deu a vitória. Na volta, mais uma ótima exibição defensiva e outro 0 a 0 fizeram com que a equipe marquesã alcançasse uma histórica final de Coppa Italia.
O encontro entre narrativas: a finalíssima da copa
Em 6 de abril de 1994, quase 17 mil pessoas estiveram no Del Conero, o castelo do Ancona, onde o time não havia levado um gol sequer em toda a competição. Torcedores da Samp ocupavam uma pequena parte das arquibancadas, mas a maioria biancorossa que fazia a sua festa. Algum nervosismo, mas sem desespero. “Depois de tudo, o que temos a perder?”, dizia o técnico Guerini.
A Samp vinha com força total, na estrelada formação de Eriksson. Gianluca Pagliuca era o goleiro; na defesa, Pietro Vierchowood era o grande nome; os já citados Gullit e Jugovic integravam o meio de campo, sustentados por Alberico Evani e Lombardo. Na frente, Mancio, o capitão, e Platt. Já o Ancona não tinha nenhuma estrela, mas se destacavam alguns jogadores, como o arqueiro Andrea Armellini, os defensores Sean Sogliano e Centofanti, e os atacantes Agostini e Vecchiola.
Os grandes nomes da partida seriam os goleiros. No primeiro tempo, a Samp arriscou, diversas vezes, chutes de longe, com Mancini e Gullit. Armellini defendeu todos. Os dorici repetiriam a fórmula a seu favor na segunda etapa: duas tentativas de longe de Centofanti pararam em Pagliuca. Mas, antes disso, Armellini havia defendido uma ótima cabeçada de Gullit. O jogo acabou sem que ninguém conseguisse ir às redes; e o Ancona terminaria a competição, ganhando-a ou não, sem gols sofridos dentro de casa.
A escassez de gols do primeiro jogo seria compensada, até em demasia, com os do segundo. 39 mil pessoas compareceram ao Marassi, mas apenas 2 mil representavam os dorici. Isso porque as duas cidades, Gênova e Ancona, ficam relativamente distantes. Por parte dos visitantes, apenas Armellini foi substituído por Alessandro Nista. Na Samp, Mancini, lesionado, deu lugar a Bertarelli, ex-biancorosso.
Novamente, a Sampdoria só ameaçava com chutes de longe, que pouco causavam perigo à baliza de Nista. E isso resume todo o primeiro tempo. Até os 50 minutos, o Ancona bloqueava o melhor ataque da Bota na temporada 1993-94 com certa facilidade. O time das Marcas asfixiava os dorianos na pressão, mas, num lance de felicidade, a Samp daria início ao festival de gols. Uma falta rasteira batida por Gullit, na entrada da área, desviou em Vecchiola e não deu chances para o goleiro Nista.
Oito minutos depois do tento de Gullit, Lombardo fez o 2 a 0 numa jogada oportuna. Não demoraria muito para o terceiro, marcado numa cabeçada de Vierchowod. Houve um esboço de reação dos dorici, aos 72, com um gol de cabeça de Fabio Lupo, mas…. os dorianos estavam sedentos. Em contragolpe fulminante, Gullit passou para Lombardo, que efetuou um belo drible em Nista e anotou, de novo. Haveria tempo ainda para Bertarelli e Evani balançarem as redes, de pênalti.
Quando os sonhos se acabam
O placar final marcava 6 a 1 e os blucerchiati festejavam no Marassi, ao mesmo tempo em que prestavam as devidas homenagens a Paolo Mantovani. Era o primeiro título obtido sem que os olhos do magnata, nas arquibancadas, fitassem seriamente os jogadores no campo, sem o êxtase que era causado quando ele comemorava a taça com os atletas, sem o bicho que ele pagava depois de cada conquista. Também o último da história da Samp, que não ganhou mais nada desde então.
Já para o Ancona, o tempo foi mais cruel. Até 2000, o time alternou entre as séries C e B. Na temporada 2002-03, o “rei dos acessos” Luigi Simoni levou a equipe à elite, mas os dorici fizeram uma das piores campanhas da história do campeonato e, além do rebaixamento, encararam a falência. Uma segunda bancarrota ocorreria em 2010 e uma terceira em 2017. Em mais um processo de reviver o clube, os novos donos adquiriram o Matelica e o transformaram em Ancona-Matelica, que participa da terceirona.
Ancona 0-0 Sampdoria
Ancona: Armellini; Sogliano; Glonek, Scanio, Mazzarano, Centofanti; De Angelis, Bruniera (Caccia), Lupo; Vecchiola, Agostini. Técnico: Vincenzo Guerini.
Sampdoria: Pagliuca; Dall’Igna, Vierchowod, Sacchetti, Serena; Lombardo, Gullit, Evani, Jugovic (Invernizzi); Mancini, Platt. Técnico: Sven-Göran Eriksson.
Árbitro: Alfredo Trentlange (Itália)
Local e data: Estádio Del Conero, Ancona (Itália), em 6 de abril de 1994
Sampdoria 6-1 Ancona
Sampdoria: Pagliuca; Invernizzi, Vierchowod, Sacchetti (Mannini), Serena; Lombardo, Gullit, Evani, Jugovic; Bertarelli (Salsano), Platt. Técnico: Sven-Göran Eriksson.
Ancona: Nista; Sogliano; Glonek, Fontana, Pecoraro, Mazzarano; De Angelis, Gadda (Caccia), Lupo (Bruniera); Vecchiola, Agostini. Técnico: Vincenzo Guerini.
Gols: Vecchiola (contra; 50′), Lombardo (58′ e 75′), Vierchowod (65′), Bertarelli (pênalti; 80′) e Evani (pênalti; 85′); Lupo (72′).
Árbitro: Luciano Luci (Itália)
Local e data: Estádio Luigi Ferraris, Gênova (Itália), em 20 de abril de 1994