O fim da década de 1940 e todos os anos 1950 foram terríveis para o futebol italiano. Em 1949, o desastre aéreo que vitimou o Grande Torino, um dos maiores times da história da modalidade, afetou diretamente a seleção da Itália, que perdeu alguns de seus maiores craques. Para a Nazionale, isso resultou na ausência na Copa do Mundo de 1958 e em campanhas ruins nas duas edições anteriores da competição. Uma das raríssimas alegrias desse período foi a goleada sobre a Bélgica, em 1954.
A Copa de 1954, disputada na Suíça, teve peculiaridades – que não agradaram e não foram repetidas em outros Mundiais. Segundo o regulamento, as duas seleções sorteadas como cabeças de chave dos seus grupos não se enfrentariam, e cada equipe faria apenas duas partidas nesta etapa da competição. Em caso de empate em pontos entre a segunda e a terceira colocada, seria disputado um jogo extra para definir qual delas avançaria para o mata-mata. Vale destacar ainda que havia prorrogação de 30 minutos se um confronto terminasse em igualdade, mesmo na primeira fase do torneio. Se o resultado persistisse até o fim dos 120, só aí um pontinho era dado a cada um dos times. Ou seja, não havia pênaltis.
Não bastasse este regulamento pitoresco, a Itália ainda teria azar no sorteio das chaves. Os azzurri caíram no Grupo 4, o único totalmente europeu, ao lado de Inglaterra, Bélgica e da anfitriã Suíça. Jogar com os donos da casa costuma ser desfavorável para os forasteiros e isso se confirmou na estreia da Nazionale, derrotada por 2 a 1 em Lausanne, numa polêmica arbitragem do brasileiro Mário Vianna, que chegou a apanhar de alguns atletas italianos. No outro jogo da primeira rodada, ingleses e belgas ficaram num curioso 4 a 4.
Como Itália e Inglaterra foram as cabeças de chave, não se enfrentariam. Para seguirem com chance de avançarem às quartas de final, os azzurri, portanto, teriam que vencer a Bélgica e ainda torcerem para um triunfo britânico sobre os helvéticos. Ao menos, a Nazionale teria um ambiente favorável: o jogo ocorreria em Lugano, cidade localizada no cantão de Ticino, o único de maioria italiana em toda a Suíça, e na fronteira com o próprio território itálico. Ou seja, seria como jogar em casa.
Não era só a Copa de 1954 que tinha suas peculiaridades. A Itália que disputava a competição, também. Para começar, era comandada por um técnico estrangeiro, o que raras vezes ocorreu na história – anteriormente, apenas na década de 1910, o suíço Hugo Rietmann e os ingleses William Garbutt e Harry Goodley integraram comissões técnicas dos azzurri, em tempos em que não havia um único treinador. Desde novembro de 1953, o responsável pela Nazionale era o húngaro Lajos Czeizler, auxiliado por Angelo Schiavio e Silvio Piola, campeões mundiais em 1934 e 1938, respectivamente.
A experiência com Czeizler não daria certo – e, por isso, nenhum estrangeiro voltou a comandar a Itália subsequentemente. Porém, o húngaro era um treinador gabaritado. Lajos teve experiências em times italianos nos anos 1920 e 1930, mas se destacaria na Suécia, ao longo de uma década de trabalho. Assim, tornou ao Belpaese acertado com o Milan e levando a tiracolo o trio formado por Gunnar Gren, Gunnar Nordahl e Nils Liedholm. Simplesmente os três atletas que, em 1951, deram fim a um jejum de scudetti vigente desde 1907 e elevaram os rossoneri, então modestos, ao patamar de gigantes. O professor tinha crédito de sobra e, por isso, foi escolhido pela FIGC para dirigir os azzurri.
Czeizler, porém, tinha de lidar com um vestiário dividido e atletas de personalidade forte. Seu estilo não era draconiano, como o de Vittorio Pozzo, técnico azzurro de 1929 a 1948 e bicampeão mundial no período. Ao contrário, o húngaro tentava ser diplomático, o que acabava desagradando um pouco a todos. E o técnico sofria pressão de todos os lados, incluindo de diretores da federação, que tentavam impor suas preferências.
Com seis jogadores, a Inter, bicampeã italiana em 1953 e 1954, compunha a base da Itália. A seleção tinha também o craque Giampiero Boniperti e mais quatro peças da Juventus, vice por duas vezes seguidas, e quatro da Fiorentina, terceira colocada na Serie A recém-concluída. Por bairrismo, parte da imprensa de Milão pressionava pela supremacia nerazzurra; os jornais de Turim pediam pelos bianconeri e, por fim, os de Florença reclamavam espaço para os violetas. Internamente, os atletas ecoavam aquelas intrigas e os diretores tentavam sufocá-los, ao mesmo tempo em que buscavam interferir no trabalho de Czeizler.
A Itália chegou a Lugano muito nervosa pelos eventos da estreia, provocados pela contestada arbitragem de Vianna, e desfocada. Muitos diretores tratavam de assuntos pessoais e os jogadores não contribuíam, se envolvendo em picuinhas do dia a dia. Czeizler ainda teria de lidar com uma lesão do capitão Boniperti, que machucou o tornozelo e não voltaria a atuar no Mundial. Assim, reformulou a equipe, sacando Ermes Muccinelli (Juventus) e Guido Vincenzi (Inter) para dar espaço a Ardico Magnini (Fiorentina) e Amleto Frignani (Milan). Gino Cappello, do Bologna, ganhou o posto de Boniperti.
Todos os problemas, entretanto, não impediram uma atuação soberana sobre a Bélgica – que, apesar do empate heroico com a Inglaterra, não tinha um grande time. No final de um primeiro tempo de domínio azzurro, o zagueiro Marcel Dries derrubou Frignani na área e o romanista Egisto Pandolfini, que assumiu a braçadeira de capitão de Boniperti, cobrou o pênalti com perfeição: deslocou o goleiro Léopold Gernaey e abriu o placar, aos 41 minutos.
A Itália foi para o intervalo com a vantagem e, tão logo começou a segunda etapa, ampliou a sua tranquilidade. Aos 48 minutos, o interista Benito Lorenzi, o mais talentoso dentre os jogadores em campo, tabelou com Frignani, confundiu os marcadores e cruzou na medida para o romanista Carlo Galli, conhecido como “cabecinha de ouro”, emendar um belo peixinho para as redes.
Tendo o domínio da partida e uma boa vantagem no placar, a Itália poderia se poupar, mas decidir amassar a Bélgica. Pandolfini chegou a fazer uma boa tabela e, ao se infiltrar na área, disparou um belo chute no travessão. Aos 58 minutos, o terceiro gol caiu do céu: o arqueiro Gernaey falhou feio ao tentar agasalhar uma bola recuada e a soltou nos pés de Frignani, que só a rebateu para as redes.
Aproveitando as inconsistências do goleiro Gernaey, a Itália seguiu pressionando e marcou o seu quarto gol aos 78 minutos. Após cobrança de escanteio, Galli escorou de cabeça e Lorenzi completou para as redes. Na casa dos 81, quase de imediato, Léopold Anoul descontou para a Bélgica com um chute cruzado. E ficou assim: após o 4 a 1, a torcida italiana invadiu o gramado do Cornaredo para comemorar com os atletas.
Com a vitória, Czeizler e seus comandados teriam a chance da revanche com a Suíça, que foi derrotada por 2 a 0 para a Inglaterra. O empate de pontos entre italianos e helvéticos, então, levaria ao jogo extra previsto em regulamento. Para a Itália, na verdade, isto serviria apenas para prolongar o seu suplício. Afinal, os anfitriões aplicariam 4 a 1 sobre a Nazionale e selariam a sua eliminação na Copa de 1954.
Itália 4-1 Bélgica
Itália: Ghezzi; Magnini, Giacomazzi; Tognon, Nesti, Neri; Pandolfini, Frignani; Cappello, Lorenzi, Galli. Técnico: Lajos Czeizler.
Bélgica: Gernaey; Dries, Van Brandt, Huysmans; Carré, Mees; Mermans, Anoul, Coppens, H. Van den Bosch, P. Van den Bosch. Técnico: Dug Livingstone.
Gols: Pandolfini (41′), Galli (48′), Frignani (58′) e Lorenzi (78′); Anoul (81′)
Árbitro: Carl Erich Steiner (Áustria)
Local e data: estádio Cornaredo, Lugano (Suíça), em 20 de junho de 1954