O início da década de 1990 marcou o fim de duas eras. Na geopolítica internacional, a dissolução da União Soviética foi um dos fatos definidores daquele período histórico; no futebol, a saída de Diego Armando Maradona do Napoli também foi um acontecimento que abalou estruturas. Curiosamente, as trajetórias de ocaso do país e do jogador se cruzaram naqueles anos.
A temporada 1990-91 havia começado com altos e baixos para o Napoli, detentor do scudetto. O time azzurro faturou o título da Supercopa Italiana com goleada sobre a Juventus e largou bem na Coppa Italia, com triunfos consistentes sobre o Cosenza. No entanto, teve um início tímido na Serie A, com apenas uma vitória nos primeiros seis jogos. Na Copa dos Campeões, os napolitanos estrearam com traulitada sobre os húngaros do Újpesti: placar agregado de 5 a 0.
Depois do empate por 1 a 1 com o Milan no campeonato, em 24 de outubro de 1990 chegava a vez de os napolitanos enfrentarem, pelo torneio continental, o Spartak Moscou. Então campeão soviético, o time moscovita havia eliminado o Sparta Praga por um placar agregado de 4 a 0.
O jogo teria um clima de reencontro para alguns, já que a Argentina havia jogado contra a União Soviética na Copa do Mundo em pleno estádio San Paolo, com vitória albiceleste por 2 a 0 e outra “Mano de Dios” de Maradona – o craque utilizara o braço para evitar um tento dos vermelhos. Além de Diego, quem também esteve presente naquela partida foi o meia Igor Shalimov, que mais tarde se tornaria o primeiro russo da Serie A italiana, com passagens por Foggia, Inter, Udinese, Bologna e Napoli.
A estratégia para parar Maradona
O contexto do jogo entre napolitanos e moscovitas era bem diferente do construído no duelo que colocou Argentina e União Soviética frente a frente, e o treinador do Spartak, Oleg Romantsev, sabia disso. Adepto do futebol ofensivo, o técnico russo se rendeu à marcação individual, e colocou Vasili Kulkov para perseguir Maradona. Afinal, ainda que visivelmente fora de forma, Diego era sempre Diego.
A ideia de marcação individual por Kulkov foi premeditada. “Não escolhi Vasya Kulkov como marcador de Maradona por acaso”, disse Romantsev em sua autobiografia, The Truth About Me and Spartak. “Ele também tinha uma velocidade de arranque frenética, era ágil e rápido. Então eu, de fato, não considerei outras opções”, completou o treinador.
A escolha de Romantsev acabou sendo bem vista pela imprensa da Itália. Embora o Corriere dello Sport admitisse, após a partida, que o argentino não estava em sua melhor forma, também prestou homenagem ao jogador do Spartak. “Kulkov literalmente perseguiu Maradona por todo o campo”, publicou o jornal. Esta foi, de fato, a tônica do confronto de ida no estádio San Paolo.
O Napoli obrigou o Spartak Moscou a ficar no campo de defesa. O campeão soviético de 1989 se fechou na sua metade do gramado, deixando o atacante Valeri Shmarov na frente, e contou com uma grande partida do goleiro Stanislav Cherchesov. O bigodudo foi apontado pela imprensa russa como um dos nomes do jogo.
Além disso, os partenopei colocaram três bolas na trave naquela noite. Primeiro, com Giuseppe Incocciati, numa tentativa de encobrir Cherchesov; depois, com cabeçadas de Giovanni Francini e Marco Baroni. Na reta final do jogo, foi a vez de os russos também carimbarem o poste duas vezes, com Alexander Mostovoi e Gennady Perepadenko. Gianpaolo Ormezzano, colunista do jornal La Stampa, chegou até a dizer que San Gennaro salvou os napolitanos naquele fim de partida.
Os dois lados ficaram com sentimento de frustração pelo resultado. “Atacamos muito diretamente, os jogadores não viram o campo”, disse o técnico do Napoli, Alberto Bigon, em entrevista coletiva após o confronto. “Foi especialmente perceptível no primeiro tempo. Na segunda metade da partida, conseguimos mudar um pouco o padrão do jogo devido a ações nas laterais. Mas a sorte se afastou da equipe”, completou o comandante. Numa leve contradição, o treinador celebrou as chances desperdiçadas pelos russos e também prometeu mais solidez tática para o duelo de Moscou.
Maradona, por sua vez, se chateou com o resultado. “É difícil manter o bom humor, pois tínhamos que vencer. Fizemos tudo para isso, mas não tivemos sorte. Não gosto de prever o futuro, especialmente porque um empate sem gols em casa não pode ser visto como um passo para a próxima rodada. No entanto, posso garantir que o Napoli fará todos os esforços para não ser eliminado nesta fase. O principal é não perder a esperança. Você sabe o que eu vou te dizer? Vamos vencer em Moscou”, disparou.
A turma de Moscou também tinha um gosto amargo na boca, mas por outros motivos. Romantsev criticou a atuação de sua equipe, ainda que ter conseguido um empate na casa do campeão italiano não fosse um desfecho de se jogar fora. “Não seguramos a bola e toda a carga recaiu sobre a defesa”, reclamou, ao salientar a pressão napolitana.
Mais tarde, em entrevista ao site russo Championat, o ponta Perepadenko deixou transparecer que a frustração dos moscovitas se dava pelo fato de o time não ter conseguido capitalizar as chances que teve e surpreender os que acreditavam que o Spartak estava “enterrado” devido à dificuldade que o sorteio lhe proporcionou. “Ninguém poderia imaginar que passaríamos pelo Napoli. Ficou claro para todos: o adversário era de classe superior. Portanto, não havia emoção, nem pressão antes da partida”, declarou.
Para Perepadenko, a partida foi muito interessante. O jogador também acredita que a sorte inicial do Spartak Moscou, com as bolas que carimbaram suas traves, acabou impulsionando o time a contragolpear, mais seguro de suas forças. “A Internet não existia, a televisão esportiva , na verdade, também não. Não analisamos detalhadamente o adversário, como fazem agora. Tudo estava acontecendo como de costume. Na escalação, se discutia quem estava marcando quem e quais zonas estariam fechadas”, lembrou.
Uma viagem atribulada a Moscou
Depois do empate pela Copa dos Campeões, o Napoli conseguiu uma vitória contra a Fiorentina, na Serie A. Era um bom prenúncio para o duelo de volta contra o Spartak, na União Soviética. Apesar disso, as horas que antecederam a partida foram tensas, já que Maradona não quis viajar para Moscou: tomara a decisão de confiar a classificação a seus companheiros de equipe. Naquela ocasião, o diretor esportivo Luciano Moggi suspeitou que o craque estava planejando passar alguns dias se “destruindo” e, só depois, ir para a república russa, em um voo fretado.
“Quem não for com a gente, não joga”, anunciou Moggi, depois corrigindo a frase para “Quem não for com a gente, não joga, pois não estará [com a delegação]”. Um grupo de companheiros de equipe chegou a ir até a casa do craque no bairro de Posillipo, em Nápoles, para pedir pessoalmente que Maradona embarcasse no mesmo voo dos partenopei para Moscou. A decolagem estava prevista para a manhã de uma segunda-feira.
A princípio, os companheiros foram informados por Marcos Franchi, empresário de Maradona, que o craque não poderia recebê-los, já que estava dormindo profundamente após uma noite regada a cocaína. Mais tarde, Ciro Ferrara, em entrevista ao jornal Il Mattino, revelou que naquele dia, Diego lhes confidenciara algo: “Só quando estou com vocês, posso ficar longe das drogas e dos meus problemas”, teria dito o argentino. Naquela época, El Diez já estava afundado no vício. A derrota albiceleste na final da Copa do Mundo de 1990 funcionou como o gatilho para uma vida sem freios.
No fim das contas, a delegação do Napoli partiu e Diego ficou na Itália. A diretoria estava furiosa com o craque, que chegou a mudar de ideia no dia seguinte: afirmou que viajaria a Moscou para torcer para o time, numa afronta aos comentários anteriores de Moggi. Assim, Maradona contratou um voo particular para chegar à capital soviética na noite de terça-feira, ao lado de sua esposa Claudia Villafañe e de seu agente. Os três foram recebidos friamente por Moggi e Bigon, de modo que o argentino logo optou por fazer um passeio turístico ao invés de rumar para a concentração.
Maradona vestia um pesado casaco de peles, peça até hoje recordada quando se fala de sua passagem por Moscou. Com sua indumentária extravagante, El Diez tentou visitar a famosa Praça Vermelha, mas se deparou com uma área isolada, cercada por policiais que proibiam a entrada de transeuntes. O local estava interditado por conta de uma data comemorativa muito importante. Afinal, 7 de novembro, dia do jogo, era o aniversário da Revolução de Outubro – a sucessão de acontecimentos que, em 1917, levou a Rússia a transitar definitivamente do czarismo ao regime comunista soviético. Após alguma conversa, os oficiais, em troca de fotos e autógrafos com o craque, conseguiram levá-lo para passear na zona restrita, segundo o Russia Beyond.
No passeio, Maradona tentou entrar no Mausoléu de Lênin, também localizado na Praça Vermelha. Ele queria ter acesso ao prédio, onde repousa o corpo embalsamado do líder soviético, mas não conseguiu. Diego e sua esposa retornaram para o hotel cerca de 90 minutos depois de terem saído. Eram 3 da manhã e faltavam 12 horas para a partida contra o Spartak.
Quem estava presente no salão do luxuoso Hotel Savoy de Moscou se lembra das reações dos dirigentes napolitanos, do técnico Bigon e dos jogadores da equipe àquela situação problemática. Era como se todos tentassem se adaptar, de forma masoquista, às idiossincrasias do seu grande craque.
O Spartak, por sua vez, recebia os acontecimentos com surpresa – especialmente pelo fato de Maradona ter fretado um avião. “Você pode imaginar, naquela época, que nos contaram, que vivíamos em um sistema comunista, que havia um jogador que viajava de avião particular , quando às vezes não tínhamos nem boas luvas para goleiros. Quando nos explicaram, perguntei o que era aquilo de aeronave privada, simplesmente não consegui entender”, declarou Mostovoi à revista espanhola Jot Down, em 2018.
O fato é que o Napoli tinha um dilema para resolver antes do jogo. Maradona seria punido por descumprir os códigos de conduta do clube ou jogaria, por ser um duelo decisivo? Moggi e o presidente Corrado Ferlaino e optaram pela primeira opção, e o treinador acatou. Assim, Diego foi relegado ao banco de reservas e, numa raríssima ocasião, não vestiria a camisa 10 – em toda a passagem do argentino pela Itália, isso aconteceu somente 10 vezes.
Enquanto Maradona estava sentado no banco, com o número 16, Gianfranco Zola foi o dono da 10 numa noite fria no estádio Central Lênin – atual Luzhniki. Apesar de cair uma fina chuva congelada, a arena estava abarrotada: cerca de 86 mil pessoas empurravam o Spartak Moscou, que pressionava às custas de um Napoli que tinha dificuldade de chegar ao gol adversário. O goleiro Giovanni Galli resistia às investidas e ainda teve sorte: se livrou da expulsão ao fazer uma defesa com as mãos, fora da área, para evitar o tento por cobertura de Shmarov.
Com a entrada de Maradona, no minuto 60, as coisas melhoraram. O Napoli passou a pressionar, mas, por outro lado, o gol não saía. Houve, também, outra bola na trave, em chance perdida de Incocciati. A partida foi para a prorrogação e, sem bolas nas redes, a disputa passou para os pênaltis.
Todos converteram as cinco cobranças iniciais. Pelo Spartak Moscou, Valeri Karpin, Shalimov e Shmarov balançaram as redes; pelo Napoli, Ferrara e Massimo Mauro responderam. O primeiro a desperdiçar foi Baroni, que finalizou para fora. Justamente ele, que meses antes fora o herói do scudetto, por conta do gol do título diante da Lazio, se tornou vilão.
Na sequência, Kulkov e Maradona também marcaram, e a vaga dos soviéticos ficou nos pés do habilidoso Mostovoi. Anos mais tarde, o meia declarou, na entrevista à Jot Down, que não queria bater nenhuma penalidade e, por isso, tinha pedido para ser o último cobrador. Ironicamente, fez o gol decisivo, garantindo o 5 a 3 naquela decisão.
Com a eliminação azzurra, era cada vez mais evidente o declínio daquele time, que havia encantado os seus torcedores nos anos anteriores. Ao mesmo tempo, o insucesso sinalizava para a decadência de Maradona, que jamais voltaria a disputar uma partida de competição continental na Europa. Portanto, El Diez se despediu dos torneios da Uefa com o número 16 às costas.
O Napoli continuaria a viver uma temporada turbulenta. O ápice da agitação ocorreria em março, quando Maradona testou positivo para cocaína em exame antidoping posterior à partida com o Bari, e foi suspenso. Ironicamente, o time estabeleceu uma trajetória de recuperação a partir da ausência do craque e terminou a Serie A na oitava posição, a um ponto das copas europeias, além de ter caído nas semifinais da Coppa Italia, frente à Sampdoria. Ao fim da época, os partenopei rescindiram com Diego, que voltou a atuar apenas em 1992-93, pelo Sevilla.
O Spartak Moscou, por sua vez, fez uma campanha europeia inesquecível, com direito a vitória sobre o Real Madrid, e parou nas semifinais. Alguns jogadores daquele time tiveram boas carreiras internacionais, como Shalimov, no futebol italiano; Kulkov, de passagens por Benfica e Porto; Karpin e Mostovoi, que fizeram história em La Liga; além do goleiro Cherchesov, que jogou na Alemanha e na Áustria antes de ser treinador da seleção russa.
No fim de 2020, quando aqueles jogos completavam três décadas, a vida foi traiçoeira e fez alguns dos principais personagens dos confrontos nos deixarem. Kulkov, grande marcador daquela eliminatória, morreu, por complicações de um câncer no esôfago e da covid-19, em 10 de outubro, aos 54 anos. Exatamente 45 dias depois, foi a vez de o homem marcado implacavelmente naquelas noites, Diego Armando Maradona, nos deixar, em 25 de novembro.
Napoli 0-0 Spartak Moscou
Napoli: Galli; Ferrara, Baroni, Francini; Venturin, Alemão, De Napoli, Crippa (Mauro); Maradona; Incocciati (Zola), Silenzi. Técnico: Alberto Bigon.
Spartak Moscou: Cherchesov; Popov, Pozdnyakov, Gradilenko, Bazulev; Kulkov; Perepadenko, Karpin, Shalimov, Mostovoi; Shmarov. Técnico: Oleg Romantsev.
Árbitro: Aron Schmidhuber (Alemanha)
Local e data: estádio San Paolo, Nápoles (Itália), em 24 de outubro de 1990
Spartak Moscou 0-0 Napoli (5-3 nos pênaltis)
Spartak Moscou: Cherchesov; Popov, Pozdnyakov, Gradilenko, Bazulev; Kulkov; Perepadenko, Karpin, Shalimov, Mostovoi; Shmarov. Técnico: Oleg Romantsev.
Napoli: Galli; Baroni; Ferrara, Corradini, Francini; Mauro, Alemão, De Napoli, Crippa; Zola (Maradona), Incocciati. Técnico: Cesare Maldini.
Pênaltis convertidos: Karpin, Shalimov, Shmarov, Kulkov e Mostovoi; Ferrara, Mauro e Maradona
Pênaltis perdido: Baroni
Árbitro: Michel Girard (França)
Local e data: estádio Central Lênin, Moscou (União Soviética), em 7 de novembro de 1990
Essa Champions de 1990-1991 foi bem diferente. Mas é porque eram outros tempos, em que o dinheiro não tinha tanta interferência assim e sheiks muitbilionários não usavam do futebol para lavar… cahan… investir o dinheiro deles.
Uma Champions em que um quadrifinalista foi o Napoli, um semifinalista foi o Spartak, que tirou o Real Madrid na fase anterior, e a final foi entre o Olympique de Marselha e o Estrela Vermelha, com o Estrela Vermelha sendo o campeão, mostra que, definitivamente, eram outros tempos.