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Pela Lazio, Mark Fish foi o primeiro sul-africano a atuar na Serie A

Alguns dos integrantes da geração de ouro do futebol da África do Sul atuaram na Itália. Sem dúvidas, o mais famoso deles, Philemon Masinga, foi o que teve mais sucesso nessa empreitada. Entretanto, apenas um daqueles jogadores conseguiram vestir a camisa de uma equipe grande do Belpaese: o zagueiro Mark Fish, que defendeu a Lazio. O beque também foi o primeiro sul-africano a disputar uma partida de Serie A.

Nascido em 1974, na Cidade do Cabo, Fish cresceu na África do Sul do apartheid, regime de segregação racial que privilegiava a minoria branca de origem britânica e holandesa, impondo as mais brutais restrições de direitos à população negra local, das tribos nativas do território – e também a outros grupos étnicos, como indianos, indonésios e chineses. Com pele clara e olhos azuis, era de se imaginar que Mark e sua família, proveniente da Inglaterra, viviam no lado abastado da dividida sociedade sul-africana, mas não era bem assim. A sua juventude foi pobre e complicada, com parentes envolvidos em questões judiciais.

Na África do Sul do apartheid, os brancos jogavam rugby. Fish era corpulento – tinha 1,87 m e 81 kg – e tinha um físico apropriado para a modalidade, mas preferia o futebol, como os negros. Assim, atravessou o país e se fixou em Pretória, a 1500 km da Cidade do Cabo, para se juntar à base do Arcadia Shepherds. Mark se profissionalizou em 1991, ano em que, após muita pressão interna e externa, foi abolida a maior parte da legislação que permitia a segregação racial no território sul-africano, ao ser notado pelo Jomo Cosmos, time de Joanesburgo, de propriedade do lendário Jomo Sono, que fora colega de Pelé, Carlos Alberto, Franz Beckenbauer e Giorgio Chinaglia no New York Cosmos.

Fish se profissionalizou como atacante, mas logo foi recuado para a lateral esquerda e, depois, para o centro da zaga. Mark gostava de atuar como líbero, porque era um defensor eficaz no posicionamento e nas antecipações – além de usufruir de sua estatura para brilhar pelo alto. Na função, fez bons campeonatos sul-africanos pelo Jomo Cosmos e chegou à seleção nacional, estreando pelos Bafana Bafana em 1993, pouco após a federação ser readmitida em competições internacionais. Devido ao apartheid, a África do Sul passou décadas banida pela Confederação Africana de Futebol – CAF e pela Fifa, o que levou ao isolamento do país no esporte.

Cabia à geração de Fish, a primeira em que brancos e negros se integravam no esporte e, obrigatoriamente, na sociedade sul-africana, iniciar a história internacional da seleção. A África do Sul se revigorava desde a libertação de Nelson Mandela após 27 anos de prisão, por sua luta contra o apartheid, e se reerguia após a eleição do ativista à presidência, com dois terços dos votos válidos, em 1994.

Nesse sentido, as competições esportivas tiveram um papel fundamental para a união das etnias em convívio na África do Sul pós-apartheid. A começar pelo título que a equipe nacional de rugby – conhecida como Springboks, em referência a um pequeno antílope comum nas suas savanas – obteve em casa, na disputa de seu primeiro mundial da modalidade, sobre a poderosa Nova Zelândia, em 1995. A taça entregue por Mandela, um presidente negro, a Francois Pienaar, o branco africâner que capitaneava a seleção, se tornou um dos maiores símbolos do novo momento que o país vivia.

E Fish? Ele também representava, inserido num contexto afim, a nova era da África do Sul. Após o rebaixamento do Jomo Cosmos, o zagueiro fechou com o Orlando Pirates, de Soweto, uma das localidades que abrigaram um dos grandes focos de resistência ao apartheid, e faturou o título nacional em 1994. No ano seguinte, ajudou os bucaneiros a se tornarem os primeiros sul-africanos a faturarem a Copa Africana de Campeões, atual Liga dos Campeões da CAF. Nesse período, se consolidou na seleção e também faria história pelos Bafana Bafana.

A África do Sul era treinada pelo técnico Clive Barker – aquele que, em 1997, num amistoso contra o Brasil, comemoraria um gol com direito a aviãozinho. Um branco de origem inglesa, tal qual Fish. E o beque de pele clara era um dos pilares do time comandado pelo treinador, fazendo dupla de zaga com Lucas Radebe, um preto retinto. Ambos eram apoiadores de Mandela e tinham enorme entrosamento, o que representava a conciliação da nação – até por isso, ganhariam o apelido de Madiba’s Boys. O dueto foi fundamental para que os Bafana Bafana conquistassem a Copa Africana de Nações de 1996, a primeira do país. Na competição, Mark anotou um gol nas quartas, contra a Argélia, e, por ter desfrutado de um sólido desempenho, integraria o seu onze ideal.

A Copa Africana de Nações serviu de cartaz para Fish, que chamou a atenção de grandes clubes da Europa. O Manchester United manifestou interesse, tal qual o Glasgow Rangers. Mas a Lazio foi mais decidida e, por 2,6 bilhões de velhas liras (uma bagatela para a época) levou o zagueiro de 22 anos para o futebol italiano, o mais competitivo daqueles tempos.

Fish chegou à Lazio com muito cartaz, mas não conseguiu demonstrar o seu melhor futebol na Cidade Eterna (Archivio Farabola)

A primeira transação direta entre um clube da Itália e um da África do Sul teve seu charme. O agente Vincenzo D’Ippolito estava acompanhando a Copa Africana de Nações, em busca de talentos para oferecer a equipes necessitadas de reforços e sabia que a Lazio procurava um zagueiro. Assim, entrou em contato com Nello Governato, diretor esportivo biancoceleste, e o alertou para assistir à final da CAN e prestar atenção em Fish. Ao fim da decisão, o cartola deu o aval para a operação e o procurador fechou o negócio com o presidente do Orlando Pirates em meio às roletas de um cassino de Joanesburgo.

Fish não foi muito bem recepcionado na Cidade Eterna. Com seu jeito sempre sincero, o técnico Zdenek Zeman disse que “não sabia quem era” o reforço. Em sua apresentação, porém, o sul-africano deixou a modéstia de lado: “me inspiro em [Franco] Baresi e meu estilo se assemelha ao de [Marcel] Desailly“. A ousadia de se comparar a multicampeões faria com que as expectativas sobre Mark se elevassem exponencialmente e, ao mesmo tempo, que ele tivesse que lidar com cobranças por um rendimento similar ao dos craques do Milan.

O primeiro desafio para Fish foi ser notado por Zeman, conhecido por comandar uma preparação física extenuante, baseada em diversos exercícios realizados com degraus, para intensificar o fortalecimento do quadríceps e a capacidade cardiorrespiratória dos atletas. No fim das contas, Mark convenceu o checo e foi escalado como titular na estreia da Lazio na temporada 1996-97, contra o Avellino, pela Coppa Italia. Ao lado de Alessandro Nesta, garantiu a vitória por 1 a 0.

Quando entrou em campo no estádio Partenio, no sul da Itália, Fish se tornou o primeiro sul-africano a atuar num torneio do Belpaese. E foi por pouco. Afinal, alguns minutos depois, o meia Eric Tinkler – também branco e também integrante da geração campeã da CAN, em 1996 – saiu do banco de reservas do Cagliari em duelo com o Verona, também pela Coppa. Mark também foi o pioneiro de seu país na Serie A, alguns dias depois, ao ser titular na derrota dos aquilotti para o Bologna, pela rodada inaugural do certame.

Fish sofreu para se adaptar à intensidade dos métodos preparatórios de Zeman, mas foi utilizado frequentemente pelo treinador, que o colocou em campo em 10 das 17 rodadas do primeiro turno da Serie A. Mark até chegou a marcar um gol num empate por 1 a 1 com o Verona e a ter algumas boas atuações, como no 3 a 0 sobre o Milan, mas o estilo ofensivo do técnico não lhe era favorável.

A defesa celeste ficava exposta a contra-ataques e, em campo aberto, os adversários superavam o sul-africano com facilidade, já que o arranque não era o seu forte – suas qualidades no jogo aéreo e nas antecipações eram pouco exploradas, já que a Lazio não costumava se fechar para segurar resultados. Assim, o desempenho de Fish era irregular.

O aproveitamento da Lazio, a bem da verdade, também não era dos melhores. Zeman, que fora vice-campeão nacional e obtivera um terceiro lugar nos dois anos anteriores de seu trabalho no lado biancoceleste da capital, já não parecia capaz de encontrar as saídas necessárias para fazer a equipe funcionar.

Assim, após uma nova derrota para o Bologna, na rodada de abertura do returno, Sergio Cragnotti – proprietário da Lazio – decidiu demitir o treinador checo. Àquela altura, os celestes ocupavam a 13ª posição da Serie A e, para solucionar a questão, o magnata tomou uma medida drástica: empossou Dino Zoff, que comandara os aquilotti entre 1990 e 1994, mas era presidente da agremiação naquele momento. O detalhe é que o ex-goleiro acumularia as funções de cartola e técnico.

Para Fish, a mudança até pareceu positiva à primeira vista, visto que Zoff já havia elogiado o seu futebol anteriormente. Entretanto, não foi bem assim: o novo treinador o utilizaria apenas em quatro oportunidades, chegando a deixá-lo de fora da equipe por oito rodadas. Uma das partidas em que Mark atuou – mais especificamente, a penúltima delas – foi o dérbi contra a Roma, quando ficou no mano a mano com Abel Balbo e perdeu na corrida, permitindo que o argentino marcasse. Quer dizer, o sul-africano até se recuperou e fez o corte em cima da linha, mas a arbitragem confirmou o gol que abriu o placar – mais tarde, no apagar das luzes, Igor Protti deixou tudo igual.

Perto de se despedir da Lazio, Fish passou por um episódio curioso num clássico contra a Roma (EMPICS/Getty)

A gestão Zoff levou a Lazio a uma excelente campanha de recuperação e, ao fim da temporada, os capitolinos ficaram com a quarta posição da Serie A e uma vaga na Copa Uefa. Fish, que somou 17 partidas com a camisa celeste, acabou ficando fora dos planos da equipe para a época seguinte, na qual seria comandada por Sven-Göran Eriksson, e chegou a ser liberado para fazer a preparação para 1997-98 com o Bologna. Entretanto, o acerto econômico entre os clubes não se concretizava e, após alguns amistosos, o técnico Renzo Ulivieri entendeu que Mark não se adaptaria a seu esquema, por não ter velocidade. Dessa forma, deu o aval para que a diretoria rossoblù o devolvesse à agremiação da Cidade Eterna antes de firmar o contrato.

Apesar de não ser benquisto na Itália, Fish ainda rendia pela seleção sul-africana – com ela, foi eleito para o time ideal da Copa das Confederações de 1997. E a memória pelo ótimo desempenho na CAN ainda era vívida na Inglaterra. Dessa forma, o Bolton ofereceu à Lazio quase o dobro do que os biancocelesti haviam pago ao Orlando Pirates para contratar o o zagueiro e o levou para a Premier League, que já tinha seis rodadas disputadas àquela altura.

Na Grã-Bretanha, Mark encontrou melhores momentos, embora o Bolton fosse um ioiô e terminasse 1997-98 rebaixado à segundona. Em 1998, Fish ajudou a África do Sul em mais uma Copa Africana de Nações – os Bafana Bafana foram vice-campeões e, mais uma vez, ele foi eleito para o time ideal do torneio – e também foi titular na primeira participação da equipe nacional num Mundial. Na ocasião, a seleção foi sorteada no grupo da anfitriã França e, após a derrota na estreia, para os donos da casa, foi eliminada após empatar as duas partidas restantes.

Fish se tornou um dos xodós da torcida do Bolton durante três anos e meio, sendo que 30 desses meses foram vividos na segunda divisão. Em novembro de 2000, Mark tornou à Premier League ao acertar com o Charlton, onde reencontrou o compatriota Shaun Bartlett, também adquirido na mesma janela de transferências.

O zagueirão foi titular durante quatro das cinco temporadas em que defendeu o Charlton, então treinado por Alan Curbishley. O técnico fez o time sobreviver heroicamente à Premier League, sempre com campanhas de meio de tabela, e Fish teve papel central nesse glorioso período da história dos Addicks. Por outro lado, Mark perdeu espaço na seleção após a queda nas semifinais da CAN, em 2000, e chegada de Carlos Queiroz ao comando. O beque ficou de fora da Copa do Mundo de 2002 e fez suas últimas partidas pelos Bafana Bafana em 2004.

Em 2005, o sul-africano foi informado de que perderia a titularidade no Charlton e topou ser emprestado ao Ipswich para jogar mais. Só que uma lesão nos ligamentos cruzados do joelho limitou sua passagem pelos Blues a uma partida. Fish anunciou a sua aposentadoria após a séria contusão e passou a se dedicar ao futebol de areia. Ele até tentou voltar aos gramados pelo Jomo Cosmos, em 2007, mas não fez nenhum jogo oficial pelo clube de seu país. Aos 33 anos, pendurava – de fato – as chuteiras.

Aposentado, Fish se tornou uma figura bastante falada por muitos motivos diferentes. Por ter participado do comitê de organização da Copa de 2010, realizada na África do Sul, e por ter feito parte do estafe da seleção? Sim, claro. Mas também por ter sido vítima de um assalto violento em seu país, pouco tempo após o mesmo ter-lhe acontecido na Inglaterra. Ou pelo ataque cardíaco sofrido, pela invenção de um boato de sua morte precoce, por dois divórcios e pelas acusações de uma ex-esposa numa autobiografia – abuso no consumo de cocaína, vício em strippers e muitos casos de adultério. Tudo negado pelo ex-zagueiro, que ostenta uma tatuagem com a face de Che Guevara no antebraço direito e utiliza suas redes sociais para espalhar mensagens cristãs.

No fim das contas, Fish também fala sobre seus tempos de Itália nos seus perfis de redes sociais. Por exemplo, do prazer de ter dividido os vestiários por poucos dias com Roberto Baggio, no Bologna, ou de como os perrengues na Lazio lhe ensinaram a ser um jogador melhor. Ser um peixe fora d’água pode ter sido de alguma serventia para o sul-africano, portanto.

Mark Anthony Fish
Nascimento: 14 de março de 1974, na Cidade do Cabo, África do Sul
Posição: zagueiro
Clubes: Jomo Cosmos (1991-93 e 2007), Orlando Pirates (1993-96), Lazio (1996-97), Bolton (1997-2000), Charlton (2000-05) e Ipswich (2005)
Títulos: Campeonato Sul-Africano (1994), Liga dos Campeões da CAF (1995), Copa da África do Sul (1996), Supercopa da CAF (1996) e Copa Africana de Nações (1996)
Seleção sul-africana: 62 jogos e 2 gols

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