Cartolas

Sergio Cragnotti: ápice e derrocada no comando da Lazio

Em época de SAFs no Brasil e mudanças de propriedade no Chelsea e Milan, com outras à vista no futebol italiano, depois da confirmação definitiva que nenhuma sociedade poderá ser controladora de mais de um time na primeira divisão nacional, efervescem memórias de dirigentes que causaram burburinho por bons e/ou maus motivos. Como, por exemplo, Sergio Cragnotti, da Lazio.

É inegável que ao final da década de 1990 e o início dos anos 2000, o futebol italiano era o maior do mundo. Tinha os melhores jogadores, suas equipes ganhavam vários títulos continentais e o campeonato, além de muito competitivo, tinha uma visibilidade mundial maior do que qualquer outro. Nessa época, a Parmalat de Calisto Tanzi foi uma investidora fortíssima no Parma: montou times históricos e deu títulos inéditos aos emilianos. Isso até a revelação da gigantesca fraude orquestrada pelo dono da sociedade, o que obviamente ocasionou o comprometimento da sustentabilidade do clube e o corte repentino de investimentos na agremiação – e até no Palmeiras, parceiro da multinacional.

No mesmo período em que ocorreu a decolagem do Parma, a Lazio também ascendeu – de forma muito semelhante. A equipe da capital já tinha tradição, mas não contava com tantos resultados expressivos em sua história. Na década de 1990, os biancocelesti montaram times extremamente fortes, com jogadores de alto nível mundial em seu elenco, e ganharam títulos nacionais e internacionais. Por trás disso tudo estava Cragnotti, um dos empresários mais polêmicos da Itália do pós-guerra.

Nascido em Roma, no ano de 1940, Cragnotti começou a trabalhar no setor de contabilidade de uma empresa de cimento e calcário, até quando resolveu emigrar para o Brasil, para trabalhar para a Cimento Santa Rita, de São Paulo. Sergio fez a companhia crescer de tal modo que o Ferruzzi, um dos maiores grupos italianos do ramo a adquiriu. Depois de pouco tempo, o romano se tornou o responsável por toda a atividade do conglomerado em território brasileiro.

Cragnotti, que virou “Serginho” no Brasil, voltou para a Itália alguns anos depois, já com fortuna feita e grande posição na companhia. O romano havia enveredado mais para o setor financeiro do que o de simples gestão de empresas, e depois de fundar um banco de investimentos, comprou a Bombril e firmas grandes no Canadá, de modo a subir cada vez mais degraus na escada da sociedade e aumentar sua própria riqueza. Sergio chegou a adquirir a Polenghi, uma das marcas de laticínios mais célebres da velha Bota.

Em 1992, Cragnotti decidiu entrar no mundo do esporte: depois de apenas um mês de negociações, pagou 36 bilhões de velhas liras a Gianmarco Calleri e Renato Bocchi para se tornar presidente e acionista controlador da Lazio, em março daquele ano. No primeiro mercado de verão, adquiriu jogadores de calibre, como Paul Gascoigne, Aron Winter e Giuseppe Signori, e continuou a investir fortemente na equipe nas temporadas subsequentes.

Na gestão de Cragnotti, a Lazio teve elencos recheados de craques e levantou oito taças (Allsport)

Além do trio supracitado, a Lazio contratou, de 1992 a 2003, nomes como Luca Marchegiani, Pierluigi Casiraghi, Pavel Nedved, Roberto Mancini, Matías Almeyda, Vladimir Jugovic, Alen Boksic, Christian Vieri, Marcelo Salas, Sinisa Mihajlovic, Fernando Couto, Sérgio Conceição, Dejan Stankovic, Juan Sebastián Verón, Diego Simeone, Simone Inzaghi, Claudio López, Hernán Crespo, Angelo Peruzzi e Jaap Stam. Uma constelação que formou times históricos, em suma.

Entre os treinadores do período, Sven-Göran Eriksson foi o mais badalado, além de mais longevo e mais vitorioso. O sueco comandou o time biancoceleste por três anos e meio, sendo capaz de faturar um scudetto e dois vice-campeonatos nacionais, além de duas edições da Coppa Italia e da Supercopa Italiana, uma Recopa Uefa, a Supercopa Europeia e um vice da Copa Uefa. Resultados muito expressivos, considerando que a Lazio tinha, até a sua chegada, apenas uma Serie A, uma Coppa Italia e uma Copa dos Alpes.

Os oito títulos só puderam ser conquistados por conta do aporte de capital de Cragnotti, que, em 1994, pouco tempo depois de se tornar dono da Lazio, protagonizou uma complexa operação financeira para adquirir a Cirio. Era uma iniciativa muito ambiciosa, visto que a empresa do ramo alimentar, com quase 140 anos de existência naquela época, era – e ainda é – uma gigante no mercado italiano, europeu e também no brasileiro. Ao se tornar proprietário de várias companhias, que operavam em setores e países diferentes, Sergio escancarava a sua intenção de criar um império.

Durante o período em que Cragnotti tentou se consolidar no futebol e nos negócios de forma extremamente expansiva, a Lazio começou a ter ações vendidas na bolsa de valores, sendo a primeira equipe italiana a fazê-lo. Em paralelo, o grupo Cirio teve uma exposição financeira alarmante. A companhia passou de uma razão endividamento/faturamento de 20%, em 1994, para 160%, em 2002, ainda que as receitas tenham quadruplicado nos quatro anos finais do período analisado. O problema era derivado de um clássico erro do mundo dos negócios: investimentos com retornos em futuro distante, mas contratos de dívidas de curto prazo.

Em 2000, o grupo Cirio criou um título de dívida para tentar se financiar, mas sem nenhum prospecto informativo. Simplificando bastante, este mecanismo é uma explicação de como a empresa irá utilizar a verba e investir num setor, esperando crescimento numa certa porcentagem e informando taxas e retorno pretendido, por exemplo. Pelas leis vigentes, todo título de dívida que não tivesse prospecto só poderia ser vendido via solicitação explícita do cliente. Além disso, as agências de crédito deram notas discrepantes para este ativo financeiro, o que deveria ter acendido o sinal de alerta nas autoridades reguladoras – que, como no Caso Parmalat, nada fizeram.

No início dos anos 2000, negociatas de Cragnotti foram reveladas e o presidente acabou nos tribunais, o que afetou a Lazio (Ansa)

Ao final de 2002, o mercado declarou que a Cirio não era mais capaz de cumprir suas obrigações. Em agosto de 2003, foi decretada a falência da holding de Cragnotti, que passou seis meses preso, entre fevereiro e agosto de 2004. O empresário foi considerado culpado pelo crime de bancarrota fraudulenta, mas absolvido em instância superior, posteriormente. Num caso paralelo, relativo à quebra da Bombril, o romano foi condenado a cinco anos e três meses de detenção.

A Lazio, obviamente, foi afetada pela situação econômica do conglomerado do seu presidente e pelos seus entreveros judiciais. Os investimentos diminuíram na fase final da gestão de Cragnotti, que deixou o cargo em janeiro de 2003, e nomes como Crespo e Alessandro Nesta tiveram de ser cedidos para que a agremiação mantivesse algum capital de giro. Em 2004, por pouco o clube não faliu: Claudio Lotito, numa compra parcelada, o salvou de um triste destino. Já a Cirio, como era uma empresa com problemas de governança, mas desempenhava uma atividade bastante sólida, foi rapidamente vendida e continuou a ocupar o posto de gigante de seu setor.

Curiosamente, existem muitos paralelos entre o Caso Parmalat e o Caso Cirio. Para começar, ambas as empresas estabeleceram laços profundos com o Brasil – não só através da presença nas prateleiras dos supermercados, mas pelo patrocínio a Palmeiras e Juventude, no caso da companhia de Parma, e São Paulo, por parte do conglomerado de origem piemontesa.

Além disso, Tanzi e Cragnotti, seus donos, investiram fortemente no futebol e acabaram, por má gestão e fraude, dando prejuízo a milhares de pequenos investidores, o que forçou o governo italiano a intervir, na mesma época, depois de muita inação e vista grossa. Inclusive, os dois empresários fizeram uma manobra conjunta: em janeiro de 1999, Sergio fundou a Eurolat, que ficou responsável pelo setor de laticínios da Cirio, e a vendeu à Parmalat em julho do mesmo ano. Segundo o Ministério Público da Velha Bota, numa operação fraudulenta.

A verdade é que investimentos de mecenas no futebol sempre deverão ser vistos com cuidado pelos torcedores, mesmo que as estrelas do esporte e os resultados ofusquem o julgamento. Um negócio alimentar mal gerido pode arruinar o futuro do seu time, que, sem poder se isolar das outras empresas de seu dono, fica dependente do bom funcionamento de estruturas alheias ao clube. O desfecho da gestão Cragnotti até que não foi dos piores para a Lazio, dadas as circunstâncias. Mas mesmo assim, a equipe só voltou a transitar pelo alto escalão da Serie A com frequência mais de uma década depois.

Compartilhe!

Deixe um comentário