Jogos históricos

Em 1985, Juventus e Verona fizeram o primeiro duelo entre italianos por torneios Uefa

Confrontos entre times de um mesmo país em competições europeias não são incomuns, mas também não são habituais. A não ser quando falamos da Itália: até março de 2023, somente 18 embates de equipes da Velha Bota foram registrados em torneios continentais. Na Copa Uefa, tivemos as finais entre Juventus e Fiorentina (1990), Inter e Roma (1991), Parma e Juventus (1995) e Inter e Lazio (1998); na Liga dos Campeões, Milan e Inter fizeram semifinal (2003) e quartas (2005), enquanto Juve e Milan foram protagonistas da decisão de 2003. Curiosamente, essa história começou apenas em 1985, quando a Velha Senhora e o Verona mediram forças na Copa dos Campeões, antecessora da Champions League. E, na época, as expectativas de um embate memorável se concretizaram por vias polêmicas.

Àquela altura, o Verona havia faturado o primeiro scudetto de sua história. O conto de fadas do Hellas só foi possível graças a um planejamento de médio a longo prazo para competir na prateleira mais alta do futebol italiano. Visto como um clube de província, os gialloblù trilharam a mudança de patamar em 1981-82, após o técnico Osvaldo Bagnoli chegar para reanimar uma equipe mortificada não só pela incapacidade de retornar à Serie A como também por uma custosa salvação na segundona, graças a um pontinho de vantagem sobre o rival Vicenza.

Ao longo desses anos, os mastini montaram uma base formada de excelentes jogadores e chegaram a ser vice-campeões da Coppa Italia duas vezes seguidas. Na temporada do título nacional, o número de talentos à disposição de Bagnoli só fez aumentar: o meia-atacante alemão Hans-Peter Briegel, o ala Franco Turchetta e o goleador dinamarquês Preben Elkjaer Larsen chegaram para reforçar um time que tinha o goleiro Claudio Garella, os zagueiros Roberto Tricella e Silvano Fontolan, os meias Pietro Fanna e Antonio Di Gennaro e o atacante Giuseppe Galderisi.

De forma geral, o presidente Ferdinando Chiampan, que sucedeu Celestino Guidotti logo após o scudetto, não teve sucesso na manutenção do elenco campeão italiano. As transferências do lateral-esquerdo Luciano Marangon e de Fanna para a Inter, além da saída de Garella rumo ao Napoli, deixaram lacunas que não foram preenchidas de forma tão satisfatória. Uma das revelações do campeonato anterior pelo Como, o arqueiro Giuliano Giuliani viveu altos e baixos até se estabelecer no clube e ganhar confiança dos torcedores. Vinicio Verza, substituto de Fanna, não se adaptaria às exigências de Bagnoli para contribuir da melhor maneira. Na ala esquerda, nenhuma reposição. Em vez disso, foi repatriado o meia Beniamino Vignola, prata da casa gialloblù, que perdera espaço para Michel Platini na Juventus.

Bagnoli não escondeu a preocupação e falou abertamente sobre o novo momento. “O jogo do Verona terá que mudar, se adaptar às características dos novos jogadores”, afirmou. Chegar ao topo é difícil, mas mais difícil ainda é se manter lá. Um dos obstáculos disso seria o super esquadrão da Juventus, orquestrado por Giovanni Trapattoni, fora de campo, e tendo maestros como Platini, Gaetano Scirea, Antonio Cabrini e Michael Laudrup dentro das quatro linhas. A Velha Senhora disputava a Copa dos Campeões por ter sido a vencedora da edição anterior do torneio, em 1984-85.

Como alento para o Verona, o prognóstico recente lhe era favorável. Os gialloblù venceram a corrida pelo scudetto e também não foram derrotados em nenhum dos encontros na temporada anterior – uma vitória e um empate. Os bianconeri, por outro lado, ostentavam o título da Copa dos Campeões em cima do Liverpool, embora aquela edição seja marcada pela tragédia de Heysel. Entre entradas e saídas, vale ressaltar que a Velha Senhora decidira vender Paolo Rossi para o Milan, Marco Tardelli para a Inter e Zbigniew Boniek para a Roma. Em troca, renovavam o elenco com Laudrup, que havia sido contratado em 1983 e passara dois anos emprestado à Lazio, e Aldo Serena, artilheiro da Inter.

Ao contrário do que acontece na atual Champions League, apenas os vencedores dos respectivos campeonatos nacionais eram admitidos à Copa dos Campeões, juntamente ao vencedor do troféu continental na edição anterior. Outra diferença em relação à fórmula que ficou consagrada entre as décadas de 1990 e 2020 era a ausência de grupos: os times eram pareados por sorteio e seguia em frente o vencedor da disputa em partidas de ida e volta.

Em Turim, Elkjaer e Brio discutem: duelo entre Verona e Juventus, o primeiro entre italianos por torneios organizados pela Uefa, foi quente (L’Arena)

Pré-jogo

O Verona teve uma largada decepcionante para um defensor do título italiano: os comandados de Bagnoli venceram três vezes nas 12 primeiras rodadas da Serie A. A Juventus, por sua vez, emendou uma sequência impressionante de oito vitórias, até ser batida pelo Napoli de Diego Armando Maradona.

A superioridade técnica deixou os campeões europeus à vontade na primeira fase da Copa dos Campeões. A propósito, a Velha Senhora teria direito de começar a competição já nas oitavas, mas abdicou disso para poder descontar logo parte da punição de duas partidas com portões fechados devido aos acontecimentos em Heysel – assim, teria o apoio de sua torcida em um eventual duelo de quartas de final, além da renda pela venda de ingressos. O modesto Jeunesse Esch, de Luxemburgo, foi sua primeira vítima: com uma goleada de 5 a 0, os italianos encaminharam a classificação fora de casa e, mesmo que o jogo de volta tivesse caráter protocolar, não tiraram o pé, aplicando 4 a 1 no adversário. Serena marcou quatro dos nove gols anotados pela Juve.

A má fase do Verona na Serie A não atrapalhou os planos do sonho europeu. Na verdade, houve alívio quando o sorteio da Copa dos Campeões revelou o PAOK como seu adversário na estreia. Em suma, poderia ter sido pior, visto que o Hellas não foi cabeça de chave e poderia encontrar equipes do calibre de Barcelona, ​​Porto, Bayern Munique e Steaua Bucareste, que conquistaria o troféu em cima dos catalães.

Contra o PAOK, os gialloblù superaram as adversidades e, nos últimos minutos, evitaram o empate em casa. Elkjaer, aos 85, e Domenico Volpati, aos 87, fizeram 3 a 1 e abriram uma vantagem confortável para a decisão, na Grécia. No jogo de volta, os donos da casa marcaram cedo, aos 3. O confronto estava aberto, mas Elkjaer, sempre ele, acalmou os ânimos: o dinamarquês igualou o placar, aos 29, e, aos 72, sentenciou a eliminação dos helênicos.

O jogo de ida

Em outro sorteio, o destino quis o embate entre as duas únicas forças italianas já na segunda fase do certame. Na Itália, houve muita expectativa em torno do ineditismo de um cruzamento local na maior competição continental – e em toda a história dos torneios europeus. A Europa inteira também estava curiosa para conferir o campeão da Serie A, em sua época de ouro, contra os detentores da orelhuda. No final das contas, apesar do simbolismo, tratava-se de um duelo de Davi contra Golias, considerando a tradição, o momento e a qualidade dos times.

Desmobilizado na luta pelo bicampeonato nacional, o Verona concentrava as esperanças na Copa dos Campeões. O desejo de redenção era grande, independentemente do largo favoritismo dos juventinos. Para o embate marcado para o estádio Marcantonio Bentegodi, naquela noite de fim de outubro, Bagnoli montou uma estrutura compacta, ciente da qualificação do oponente – em contrapartida, a construção das jogadas ofensivas seria aos trancos e barrancos, praticamente restrita aos arremates de longa distância. A leitura do jogo estava óbvia desde o apito do árbitro: a Juve nas trincheiras e o Hellas pronto para beliscar uma brecha imperceptível.

Aos 5 minutos, Volpati chutou por cima do travessão, logo após a tentativa de Briegel, que também errou o arremate. Aos 20, os bianconeri enfim se aproximaram com perigo, em cabeceio de Serena. A vontade de vencer do Verona se dissolveu aos poucos, perante a solidez da Juventus. Com os times pouco inspirados, a expectativa de um gol se limitava a uma jogada individual ou a alguma bola perdida. Antes do intervalo, Cabrini deixou o campo nocauteado por uma colisão involuntária com Tricella e Stefano Pioli entrou em seu lugar.

A etapa complementar tem início com o Verona ainda mais determinado. Nos primeiros dez minutos, a Juventus vacilou sucessivamente na marcação diante dos golpes dos mandantes. Stefano Tacconi defendeu um belo arremate de Di Gennaro e depois, após um chute certeiro de Gianluigi Galbagini, a retaguarda bianconera salvou o gol certo.

Em pênalti polêmico, Platini abriu o placar para a Juventus no jogo de volta, num Comunale vazio (L’Arena)

A imposição dos gialloblù foi soberana em quase todo o segundo tempo. Aos 60, Di Gennaro tentou novamente, mas Tacconi voltou a ser imbatível. Logo após essa chance, foi registrado o primeiro chute certeiro de Elkjaer. Perto dos 90, a sensação era a de que nem a força do desespero conseguiria superar a defesa da Juventus. As esperanças do Verona terminaram com um arremate de Luciano Bruni, que passou ao lado da baliza, já nos acréscimos. Estava tudo adiado para Turim, onde não haveria público.

O jogo de volta

Depois do empate amargo para os veroneses, e conveniente na perspectiva dos bianconeri, os dois lados precisavam ajustar seus comportamentos no Comunale de Turim. Enquanto o Verona tinha que endireitar o pé antes de pensar em probabilidade de classificação, era o momento de a Juventus se impor como a atual campeã europeia, mesmo com as arquibancadas vazias. Bagnoli promoveu uma modificação, colocando Vignola no lugar de Bruni, e atribuiu a Volpati a missão de conter Platini. Trapattoni não fez alterações em relação ao jogo de ida.

O Verona já chegou ao jogo muito pouco satisfeito com a Uefa. A razão era a escolha da arbitragem, confiada a Robert Wurtz – francês como Platini, o maior craque adversário. A nacionalidade do juiz era uma motivação para as reclamações, mas o seu próprio estilo era extremamente questionável: ainda que tivesse o respaldo internacional por ter apitado a decisão da Copa dos Campeões de 1977, entre Liverpool e Mönchengladbach, o veterano era excêntrico, performático e amava aparecer no gramado, o que irritava os jogadores. Por seu jeito espetaculoso, foi apelidado de “o Nijinsky do apito”, numa referência a Vaslav Nijinsky, ícone do balé russo.

Gostasse ou não da escalação do árbitro, o Verona viajou ao Piemonte na expectativa de vencer – e começou jogando melhor do que a Juventus no Comunale, num duelo que ocorreu durante a tarde. Até que, aos 18 minutos, o roteiro da partida ganhou um ingrediente polêmico. Em cruzamento a meia altura de Massimo Mauro, Serena efetuou uma finta de corpo e a bola que adentrou a área, supostamente, resvalou no braço direito de Briegel.

Wurtz, porém, não teve dúvidas e apitou o pênalti para a Juventus. “O episódio é duvidoso e a câmera lenta, ao invés de confirmar o braço na bola ou absolver o francês, até hoje não consegue dar uma resposta clara”, descreve o site Hellastory, mantido por torcedores do Verona. O jogador alemão se desesperou pela marcação e até hoje garante que não cometeu qualquer infração. De qualquer forma, Platini fez o que se esperava dele e abriu a vantagem para os donos da casa.

Ainda faltava muito tempo, mas os gialloblù sabiam da dificuldade de reverter um placar contra a poderosa Juventus, ainda que não tivesse torcida contrária. Porém, os jogadores do Hellas viam crescer, minuto a minuto, a sensação de que a arbitragem era um obstáculo extra: frequentemente reclamavam das muitas faltas marcadas por Wurtz e pelas expressões debochadas que ele fazia a cada vez que era questionado.

Depois do gol, a partida ganhou contornos semelhantes à da ida, no Vêneto. Apesar de manter a retaguarda da Juventus em constante apreensão, o Verona não conseguiu furar o bloqueio e escorou a concretização de oportunidades no acaso das cobranças de escanteios. Além disso, o Hellas perdeu Galbagini, lesionado, e, ao recompor a defesa com Fabio Marangon, teve de queimar uma substituição – na época, só duas trocas eram permitidas.

O segundo tempo começou com mais uma grande defesa de Tacconi, desta vez em um chute de Di Gennaro. O Verona estava vivo e disposta a seguir incomodando a Juventus. Mas, novamente, Wurtz apareceu para roubar a cena. Aos 49, Serena tentou se antecipar a Fontolan após levantamento na área e, de maneira explícita, colocou a mão direita na bola. Estupefatos, os jogadores do Hellas não acreditavam que o árbitro ignorou a infração cristalina e marcou uma falta técnica, punindo Tricella por reclamação excessiva. Até mesmo alguns juventinos, incluindo o próprio Trapattoni, admitiram, após o jogo, que houve pênalti.

Principal nome do Verona, Elkjaer protagonizou cena histórica ao questionar a arbitragem do jogo de volta contra a Juventus (Ansa)

Enquanto metade do time gialloblù argumentava com a arbitragem, os bianconeri sacramentaram a classificação no lance seguinte. Mauro ganhou a disputa de Marangon, talvez utilizando o braço para afastá-lo – tipo de falta que Wurtz já havia dado antes –, e efetuou o cruzamento para Serena, que aproveitou a saída equivocada de Giuliani para fazer o segundo.

Àquela altura, a desvantagem do Verona não se resumia ao placar, mas também abarcava o aspecto emocional: em segundos, a partida passava de um possível 1 a 1 para uma vantagem de dois gols da Juventus. O restante da peleja transcorreu sem incidentes, sem brigas ou provocações, e o Hellas buscou pelo menos o tento de honra, que não saiu nem mesmo após a entrada de Galderisi ou o chute venenoso de Vignola.

Ao apito final, no silêncio do Comunale vazio, não foram testemunhadas vaias ou percebidos efusivos gritos de comemoração. Mas Elkjaer tomou a iniciativa de ir andando para os vestiários ao lado de Wurtz, enquanto simulava uma assinatura de cheque, dando a entender que o árbitro era corrupto e havia sido pago para prejudicar o time gialloblù.

Já veterano, Wurtz só dirigiu mais uma partida em nível internacional – o duelo entre Partizan e Mönchengladbach, pela primeira fase da Copa Uefa 1986-87 – e se aposentou em 1990. Depois de pendurar o apito, o árbitro realizou um sonho e entrou de vez no mundo do espetáculo ao se tornar juiz do Intervilles, um game show televisivo popular na França. Curiosamente, a competição entre equipes de diferentes cidades era inspirada no programa italiano Campanile Sera, apresentado por Mike Bongiorno, ícone do showbiz da Velha Bota.

Vale salientar que Wurtz não relatou nada de anormal na súmula e sequer comentou o gesto de Elkjaer – que não foi punido. Os jogadores do Verona não explodiram em campo, mas a exasperação tomou os vestiários: uma vidraça foi quebrada e Di Gennaro deixaria o Comunale com o braço enfaixado. O tumulto chamou a atenção da polícia, que bateu à porta do recinto para averiguar o que estava acontecendo. Bagnoli os recebeu e proferiu uma frase que entraria para os anais da crônica esportiva italiana: “se procuram os ladrões, eles estão para lá”, disse, apontando para o cômodo em que a delegação da Juventus confraternizava.

Ao saber das queixas do Verona e das acusações de compra do árbitro, o poderoso Gianni Agnelli, acionista majoritário da Juventus, abandonou o seu habitual tom polido e político e disparou: “reclamar de arbitragem é coisa de equipe provinciana”. A questão é que o Hellas, de fato, é um time sediado na província – ou seja, numa cidade que não é capital de uma das regiões da Itália. Com essa frase, o magnata deixava subentendido que o clube gialloblù era diminuto e não deixara de sê-lo nem após a conquista do scudetto, em 1985.

A resposta de Agnelli não foi bem digerida pela torcida do Verona, ao passo que a indignação pelo que ocorreu nas oitavas de final do torneio europeu foi acolhida pelos demais rivais da Juventus – em vão. A Velha Senhora seguiu na Copa dos Campeões, mas caiu logo nas quartas, para o Barcelona, na soma dos placares. Assim, os bianconeri tiveram de se contentar com o título mundial, sobre o Argentinos Juniors, e o da Serie A, no encerramento do decênio de Trapattoni em Turim. Já os gialloblù se recuperaram no campeonato, após a virada do ano, e terminaram o certame no meio da tabela.

Verona 0-0 Juventus

Verona: Giuliani; Galbagini (Turchetta), Tricella, Fontolan; Ferroni, Volpati, Sacchetti, Bruni, Briegel; Di Gennaro; Elkjaer. Técnico: Osvaldo Bagnoli.
Juventus: Tacconi; Favero, Brio, Scirea, Cabrini (Pioli); Mauro (Pin), Manfredonia, Bonini, Laudrup; Platini; Serena. Técnico: Giovanni Trapattoni.
Árbitro: Robert Bonar Valentine (Áustria)
Local e data: estádio Marcantonio Bentegodi, Verona (Itália), em 23 de outubro de 1985

Juventus 2-0 Verona

Juventus: Tacconi; Favero, Brio, Scirea, Cabrini; Mauro (Pioli), Manfredonia, Bonini, Laudrup; Platini (Pin); Serena. Técnico: Giovanni Trapattoni.
Verona: Giuliani; Galbagini (F. Marangon, Galderisi), Tricella, Fontolan; Ferroni, Volpati, Sacchetti, Briegel; Vignola, Di Gennaro; Elkjaer. Técnico: Osvaldo Bagnoli.
Gols: Platini (19’) e Serena (50’)
Árbitro: Robert Wurtz (França)
Local e data: estádio Comunale, Turim (Itália), em 6 de novembro de 1985

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