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O veneno de Benito Lorenzi, artilheiro beato e pecador contumaz

O domingo é um dia muito importante para os estados anímico e social do Ocidente. Foi neste dia da semana que, segundo a doutrina cristã, Jesus Cristo teria ressuscitado. A Páscoa é uma das datas mais importantes de sua teologia e, por causa dela, missas (para os católicos) e cultos (para os protestantes) de domingo são os mais solenes da liturgia.

Desde o século XX, uma nova “religião” também elegeu o “dia do Senhor” como o seu momento venerável: o futebol. Para quem professa dois desses credos, conciliá-los pode ser ser complicado. Não para Benito Lorenzi, atacante que fez sucesso nos anos 1940 e 1950. Além de comparecer às redes religiosamente, o ex-jogador afirmava que só havia perdido uma missa ao longo de sua carreira. Isso porque a cidadezinha siciliana em que se encontrava não tinha igreja e muito menos padre.

Embora se definisse como um carola, Lorenzi nunca foi casto ou passou perto da nobreza em termos comportamentais. Quando garoto, era uma verdadeira peste e deixava um rastro de destruição, como veneno numa lavoura – daí o apelido Veleno, que lhe foi dado pela mãe, dona Ida, e o acompanhou por toda a carreira como jogador.

Esta não foi a única controvérsia de sua vida anterior aos campos. Nascido no ano de 1925, em Borgo a Buggiano, na Toscana, o ex-atacante se chamava Benito por causa de Mussolini. Homenagem? Nada disso. De forma insólita, o avô de Lorenzi escolheu o nome do neto para ironizar o “bendito” ditador, cujo regime ordenou o fechamento de sua padaria – que funcionava havia mais de sete décadas. Estranhamente, mesmo que não comungasse do nefasto ideário fascista e soubesse da origem de seu nome, Lorenzi se alistou voluntariamente na marinha da República de Saló, aos 18 anos, e combateu na II Guerra Mundial. Em janeiro de 1945, o fuzileiro foi ferido na Batalha de Tarnova, vencida pela Iugoslávia, e foi para a reserva.

Com o fim da guerra, Lorenzi iniciou sua carreira no futebol. Seus primeiros passos foram em 1946, no amador Borgo a Buggiano, time de sua cidade. Meses depois, o Empoli notou seu talento e o adquiriu por apenas 100 mil velhas liras. Na época, os azzurri haviam acabado de subir para a Serie B e o faro de gol do jovem foi mais do que bem-vindo.

Veleno fez uma dupla perigosa de ataque com Egisto Pandolfini e ajudou os toscanos a ficarem na terceira colocação de seu grupo na competição – naquela edição, a segundona teve três chaves regionalizadas, com 60 participantes no total. Lorenzi, com 15 gols, foi o artilheiro da equipe, seguido pelo seu parceiro, autor de 12 tentos.

O sueco Skoglund foi grande amigo de Lorenzi e seu parceiro por oito anos (Arquivo/Inter)

As atuações de Benito Lorenzi pela Serie B fizeram com que seu passe ficasse muito valorizado e que fosse observado pelos maiores times do país. Assim, o atacante foi contratado pela Inter do presidente Carlo Masseroni, que gastou 12 milhões de liras para ter o seu futebol. Veleno chegava com o aval de uma lenda do clube: Giuseppe Meazza, então treinador nerazzurro.

Embora fosse muito promissor, o atacante precisou de um período de adaptação à nova realidade. Lorenzi ainda era um talento muito bruto, que conseguiu a proeza de ser expulso em sua estreia pela Inter. Na quinta rodada da Serie A 1947-48, porém, Veleno foi letal: marcou uma doppietta e abriu o caminho para a Inter bater a Juventus por 4-2 no Derby d’Italia. Na sétima jornada, duas semanas depois, anotou quatro vezes nos 30 primeiros minutos de jogo e foi o grande nome no 6 a 0 ante a Lucchese. Lorenzi marcou 14 gols em seu ano de estreia pela Beneamata, mas os nerazzurri não fizeram uma boa campanha no returno e despencaram da terceira para a 12ª posição.

O bom nível mostrado por Lorenzi no ano de debute na elite lhe permitiu dar continuidade à sua carreira em Milão, tendo a regularidade como marca registrada. Em sua segunda temporada, Veleno formou um trio de frente poderoso, ao lado de Amedeo Amadei e de István Nyers.

O ataque era tão forte que, com 85 gols, superou os 79 do Grande Torino, que desapareceu na Tragédia de Superga, mas foi campeão com cinco pontos de vantagem. Nyers e Amadei foram, respectivamente, goleador e vice-artilheiro da Serie A, com 26 e 22 tentos, enquanto Lorenzi foi o terceiro melhor marcador nerazzurro, com 14. Em março de 1949, Benito recebeu sua primeira oportunidade na seleção italiana.

Sua estreia pela Squadra Azzurra se deu em um amistoso contra a Espanha, em Madrid. Lorenzi teve atuação positiva, marcando um dos gols da Itália, que venceu por 3 a 1. O atacante continuava em boa fase pela Inter – anotou 15 vezes em 1949-50 –, mas passou quatro partidas seguidas sem encontrar as redes pela Nazionale. Dessa forma, foi para a Copa de 1950 apenas como reserva e não entrou em campo. Por precaução, devido ao acidente aéreo que matou o Torino, a Itália veio ao Brasil de navio. A delegação retornou à Europa de avião, mas Lorenzi e Riccardo Carapellese optaram por um novo percurso marítimo.

A temporada mais prolífica de Veleno pela Inter foi a de 1950-51, na qual formou um trio infernal com Nyers e o holandês Faas Wilkes, que substituíra Amadei. Mais atrás, armando todas as jogadas, estava Lennart Skoglund, que também se tornaria ídolo da torcida. Lorenzi novamente foi o terceiro principal goleador do time, mas dessa vez foi às redes 21 vezes – contra 23 de Wilkes e 31 de Nyers.

Lorenzi, bandeira da Inter, cumprimenta Giacomo Losi, capitão romanista (Arquivo/AS Roma)

O conjunto interista criou muito e teve um dos melhores ataques do campeonato, com 107 gols marcados – como o Milan. A Juve, com 103, vinha logo atrás. Para se ter uma ideia do abismo que o trio de gigantes criou ante os demais, basta saber que a Lazio, equipe com o quarto ataque mais positivo, balançou as redes “apenas” 64 vezes. Na ponta da tabela, os nerazzurri disputaram o scudetto cabeça a cabeça com os milanistas e o título acabou sendo decidido após uma derrota da Beneamata dentro de casa, frente ao Torino. Com um ponto a mais, o time de Gunnar Gren, Gunnar Nordahl e Nils Liedholm acabou se sagrando campeão.

A temporada perfeita não foi coroada com o scudetto e, dali para frente, Lorenzi teve uma queda de produção ofensiva, influenciada por um maior afastamento do gol: foram 15 gols em 1951-52 e 12 tanto em 1952-53 quanto em 1953-54. Ao mesmo tempo, o jogador vivia um dos melhores momentos de sua carreira e foi peça fundamental do bicampeonato italiano da Inter de Alfredo Foni, em 1953 e 1954 – na primeira conquista, anotou uma tripletta contra o Napoli e fez gols decisivos contra Milan e Juve. Estes seriam os únicos títulos da trajetória do atacante toscano.

Em 1954, Lorenzi foi convocado novamente para a Copa do Mundo. A Itália não fez uma grande competição e acabou eliminada ainda na primeira fase, com apenas uma vitória, mas Benito conseguiu marcar seu gol no triunfo sobre a Bélgica. Antes disso, porém, mostrou o caráter intempestivo que lhe acompanharia na carreira.

Na partida inaugural, ante a Suíça, dona da casa, o brasileiro Mario Vianna fez uma arbitragem caseira, permitiu a violência dos helvéticos e anulou um gol legal de Lorenzi. Veleno, furioso, liderou a revolta italiana e deu um encontrão no árbitro, que foi parar dentro do gol. O carioca era alto e usou o corpanzil para se safar, mas não expulsou ninguém. Como a Itália perdeu por 2 a 1, foi perseguido pelos azzurri e teve de se refugiar nos vestiários após o apito final. A derrota foi crucial para a eliminação da Nazionale, que Benito não voltou a defender depois da competição.

Depois do episódio na Suíça, Lorenzi fixou-se no imaginário italiano como um jogador que era capaz de colocar as asinhas de fora com frequência – o que ele já fazia, na verdade. Afinal, como citamos anteriormente, Benito não tinha o apelido de Veleno à toa. Ele simplesmente nunca foi uma flor que se cheirasse.

Certa feita, na preparação da seleção da Itália para uma partida no final dos anos 1940, Lorenzi mostrara quão ferina era a sua língua. Na ocasião, os jogadores estavam nus no vestiário e Benito avistou Giampiero Boniperti, da Juventus – loirinho, magro, imberbe e quase sem pelos no resto do corpo; simplesmente um garoto recém-saído da adolescência. “Você tem o corpo da Marisinha”, zombou o interista, atribuindo ao companheiro de ataque um dos nomes femininos mais populares da Itália daqueles anos. Boniperti ficou furioso e, evidentemente, o apelido pegou. O juventino passou a ser chamado de Marisa pelo resto da carreira.

Lorenzi, ao fundo, era conhecido por provocar os adversários da Inter, principalmente nos clássicos (LaPresse)

Em campo, Lorenzi também era conhecido pela língua grande – e pelos frequentes xingamentos a adversários e colegas. Um caso famoso aconteceu num dérbi contra a Juventus. Visando provocar John Charles, Veleno usou palavras indecorosas para se referir a Elizabeth II. “Ei! Puta! Sua rainha é uma puta!”, gritava. O tiro saiu pela culatra: Charles era galês e não reconhecia a monarca do Reino Unido como chefe de estado do País de Gales.

As peripécias venenosas de Lorenzi não se resumiam às palavras. Benito, por exemplo, costumava apertar os testículos de seus marcadores para tirá-los das jogadas. Até mesmo os companheiros de equipe sofriam com o jeito rude de Veleno. Certa vez, quando Nyers perdeu um gol diante da Fiorentina, Lorenzi lhe deu um tapa. Depois, o húngaro balançou as redes e correu atrás do colega para revidar.

O caso mais famoso envolvendo Lorenzi, porém, ocorreu em 1957-58, sua última temporada na Inter. Na quinta rodada da Serie A, a Beneamata vencia o dérbi contra o Milan por 1 a 0 quando os rossoneri tiveram um pênalti a seu favor. Enquanto seus companheiros protestavam junto ao árbitro Concetto Lo Bello, Veleno foi se hidratar no banco de reservas e também recebeu uma fatia de limão para repor energias. Ele pensou rápido e imaginou que aquela fruta poderia ser útil.

Os ânimos ainda não haviam se acalmado no gramado do San Siro, mas o argentino Ernesto Cucchiaroni já estava preparado para bater o pênalti para o Milan. Ou melhor, nem tanto: Tito olhava para Lo Bello, esperando a autorização para a cobrança, e Lorenzi aproveitou. Num átimo de segundo, sem que os rossoneri percebessem, posicionou a metade do limão na marca da cal, entre a bola e o gol nerazzurro.

Parte da torcida viu o ocorrido e gritou para Cucchiaroni, tentando alertá-lo, mas os esforços foram em vão. O atacante estava concentrado, não ouviu nada e sua finalização acabou passando longe do gol defendido por Giorgio Ghezzi. Ao comemorar o erro do adversário com o goleiro, Veleno dissimulou e afastou a fruta com um chutinho para a linha de fundo. No final da partida, quando os jogadores e o estafe técnico dos milanistas foram avisados do que sucedera e partiram para cima do árbitro, Lorenzi saiu de fininho para os vestiários.

O atacante, porém, era daqueles que confessava seus pecados. O do dérbi, por exemplo, foi assumido – segundo o próprio Benito – a um padre interista, que se pôs a rir. Numa conversa com Carlo Maria Martini, cardeal e arcebispo-emérito de Milão, Lorenzi se justificou de forma bastante autoindulgente: “era o corpo que pecava, meu espírito católico ficava nos vestiários”.

Lorenzi, a marca da cal e o Derby della Madonnina: soma desses elementos entrou para os anais do futebol italiano (Arquivo/Inter)

Sem dúvidas, Lorenzi era um indivíduo imprevisível e sui generis, mas não era apenas um sujeito folclórico. Veleno se transformou em ídolo da Inter por suas anedotas, mas também pelo desempenho que teve em campo ao longo das 11 temporadas em que vestiu o manto nerazzurro. Benito se despediu com 314 partidas e 143 gols marcados (138 deles na Serie A), entrando para a história como o sexto maior artilheiro da história do clube e seu terceiro principal goleador em campeonatos italianos. É o segundo mais prolífico da era profissional, que vem desde 1929, quando o modelo de competição atual foi estabelecido.

Os números de Lorenzi pela Inter poderiam ser ainda maiores se, em 1955-56, ele não tivesse sofrido uma grave lesão ao se chocar com as traves numa partida contra a Pro Patria. No acidente, o toscano fraturou a fíbula e ganhou 13 pontos na perna e 15 na cabeça. As marcas de Veleno também poderiam ser mais ricas se, durante o auge de sua carreira, a Coppa Italia e os torneios continentais já fossem disputados – eles só surgiram em seus últimos anos como profissional.

Em 1958, com 32 anos, Benito Lorenzi deixou a Inter e acertou com o Alessandria, tradicional clube do Piemonte que disputava a Serie A. Nos grigi, Veleno atuou ao lado de um jovem Gianni Rivera, do argentino Juan Carlos Tacchi e do suíço Roger Vonlanthen. Por lá, fez 27 partidas e anotou cinco gols, contribuindo para a salvezza da equipe.

Longe do melhor momento como jogador, Lorenzi passou seus últimos momentos como profissional nas divisões inferiores, atuando por clubes da Lombardia: em 1959-60 defendeu o Brescia, na Serie B, e encerrou a carreira após uma curta passagem pelo Varese, da terceirona. Após se aposentar, com 34 anos, Benito tentou ser técnico, mas logo deixou essa ideia de lado. Nesta profissão, treinou apenas o Empoli, na Serie C, e o Parma, na D.

Depois dessas experiências, Lorenzi retornou à Inter, que era a sua casa. O ex-jogador se dedicou a descobrir novos talentos nas categorias de base e, volta e meia, era visto em Appiano Gentile com uma grande pasta debaixo do braço. Nela, estavam contidos recortes de jornal e esboços de histórias que, dizia, contaria num livro. A ideia nunca saiu do papel: Veleno faleceu aos 81 anos, num hospital de Milão.

Benito Lorenzi
Nascimento: 20 de dezembro de 1925, em Borgo a Buggiano, Itália
Morte: 3 de março de 2007, em Milão, Itália
Posição: atacante
Clubes como jogador: Borgo a Buggiano (1946), Empoli (1946-47), Inter (1947-58), Alessandria (1958-59), Brescia (1959-60) e Varese (1960)
Títulos: Serie A (1953 e 1954)
Clubes como treinador: Empoli (1966-67) e Parma (1968-69)
Seleção italiana: 14 jogos e 4 gols

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