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A Itália teve que virar o jogo com a Checoslováquia para ganhar seu primeiro Mundial, em 1934

Colocar o primeiro título de Copa do Mundo da Itália totalmente na conta dos erros de arbitragem que favoreceram os azzurri e na influência política ou nas ameaças do regime fascista de Benito Mussolini seria reproduzir um discurso fácil e sem aderência à realidade. A Nazionale de 1934 era um time muito forte e, mesmo assim, teve grandes dificuldades para se impor sobre adversárias que também contavam com nomes históricos em seu elenco. Aquela competição foi duríssima e a final, contra a Checoslováquia, foi um retrato fiel dos percalços que os italianos tiveram de superar para levantarem a Taça Jules Rimet.

Anfitriã daquela Copa, a Itália teve facilidade apenas na estreia, quando encarou os Estados Unidos e goleou por 7 a 1. Na sequência, nas quartas, empatou com a Espanha e precisou de um jogo extra para seguir em frente. Ali começaram as decisões arbitrais que, mais tarde, seriam utilizadas como supostos indícios da sombra do fascismo sobre o resultado da competição – ainda que nenhuma prova tenha sido apresentada para mostrar por quais motivos os apitadores tenham sido mais caseiros do que geralmente eram em outras paragens naqueles tempos. Em seguida, a arbitragem da vitória da Nazionale sobre a forte seleção da Áustria, na semifinal, também foi contestada.

Nos tempos do fascismo, a Itália utilizava o fascio littorio no escudo e fazia a saudação romana: na final, diante de Mussolini, não foi diferente (LaPresse)

O fato é que os azzurri, liderados por Gianpiero Combi, Luis Monti, Giuseppe Meazza, Giovanni Ferrari e Angelo Schiavio, lutaram muito para chegarem à decisão, em Roma. Entre os dias 27 de maio e 3 de junho, da estreia até a semifinal, o elenco da Itália praticamente não descansou. Até porque precisava viajar de trem e passou por três cidades: a própria capital, nas oitavas; Florença, nas quartas; e Milão, na semi. Para a final, sim, houve repouso e preparação adequados. Tanto a Nazionale quanto a Checoslováquia, sua adversária, tiveram uma semana de trabalho para o jogo que definiria o segundo vencedor do Mundial e o primeiro europeu a levantar a taça – afinal, o Uruguai, que boicotou a Copa de 1934, foi campeão em casa, na primeira edição do torneio.

A Checoslováquia tinha vantagem física sobre a Itália. Afinal, além de ter realizado uma partida a menos, também perdeu menos tempo com viagens: estreou com um 2 a 1 sobre a Romênia, em Trieste; aplicou 3 a 2 sobre a Suíça, em Turim; e, já em Roma, fez 3 a 1 sobre a Alemanha, então sob o regime nazista. A imprensa especializada da época chamava os jogadores, liderados por Frantisek Planicka, Frantisek Svoboda e Antonín Puc, do Slavia Praga, e Oldrich Nejedly, do Sparta, de “maestros checoslovacos”.

Os goleiros e capitães Combi e Planicka no toss com o árbitro Eklind, que também apitou a semifinal entre Itália e Áustria (Guerin Sportivo)

Até aquele momento, o confronto entre Itália e Checoslováquia tinha histórico equilibrado, com três vitórias para cada seleção e quatro empates. Como fazia parte da escola danubiana de futebol, tal qual a Áustria, a adversária costumava dar trabalho à Nazionale por seu estilo de jogo calcado na habilidade individual dos atletas, no refinamento técnico e nas trocas de passes. Todo esse contexto não tirava o favoritismo dos anfitriões, mas deixava evidente que a final não seria um passeio no parque. Ou melhor, uma voltinha no estádio do Partido Nacional Fascista (PNF) – atual Flaminio.

O ditador Mussolini fez questão de fingir ser um homem simples e, num gesto populista, comprou o seu ingresso na bilheteria. O chefe de governo da Itália se sentaria na tribuna de honra ao lado das princesas Maria Francesca e Mafalda de Savóia. Esta última, aliás, era casada com o landegrave germânico Filipe de Hesse-Cassel, oficial da SA nazista e nomeado por Adolf Hitler como governador da província de Hesse-Nassau. Após a prisão do Duce, em 1943, o casal de nobres seria encarcerado em campos de concentração – no ano seguinte, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, a filha do rei Vittorio Emanuele II morreria em Buchenwald.

Casa cheia: cerca de 55 mil pessoas assistiram a final entre Itália e Checoslováquia, em Roma (Popperfoto/Getty)

Parênteses à parte, Mussolini também estava posicionado perto de Jules Rimet, francês que dirigia a Fifa àquela altura. Como destacou o jornalista Gianni Brera, o cartola garantiria posteriormente que o Duce não entendia nada do que acontecia com a bola rolando. Mas uma coisa certamente o político compreendia: a saudação romana, com a qual os jogadores italianos eram obrigados pelo regime a cumprimentar o público, em sinal de adoração ao império e a seu chefe de governo, presente nas arquibancadas. Naquele domingo, 55 mil pessoas compareceram ao estádio.

Às 15h30, no horário local, fazia um enorme calor: ainda não era verão, mas uma frente de ar quente tinha avançado sobre o território da Itália e provocava temperaturas que beiravam os 40 graus. Era neste cenário que teria início a partida dirigida pelo árbitro sueco Ivan Eklind, que também apitara a semifinal entre a Nazionale e a Áustria, e foi acusado de simpatizar com os fascistas – segundo alguns críticos, este teria sido o motivo de a Fifa tê-lo designado para a decisão. De qualquer forma, após o seu primeiro apito, pouca coisa ocorreu até o intervalo. Ao menos para o gosto de Vittorio Pozzo, técnico italiano. Na coluna que mantinha no jornal La Stampa, de Turim, o treinador escreveu que, por conta da importância do jogo, “as equipes estavam emocionadas demais para atuarem bem”.

Exigido, Combi fez defesas importantes em todo o Mundial (Guerin Sportivo)

O que Pozzo não escreveu é que parte disso se devia a um dos nomes mais importantes da Itália na competição: o centromédio – ou volante, atualizando para os dias atuais – Monti, que se tornou, ao entrar em campo, o primeiro, e até hoje único, atleta a disputar finais de Copa do Mundo por dois países. Presente na decisão de 1930 pela Argentina, sua nação de nascimento, o filho de italianos naturais da Emília-Romanha utilizava a dureza na marcação para diminuir o poder de fogo dos adversários. E, com entradas ríspidas no tornozelo do atacante Svoboda, deixou-lhe manco por quase toda a partida.

Ao contrário de Svoboda, o jogo foi caminhando normalmente, sem as polêmicas que marcaram a campanha italiana. Os checoslovacos jogavam melhor e chegaram a acertar a trave duas vezes, com Puc e Jiri Sobotka. A Itália respondeu com finalizações de Meazza e Schiavio, mas Planicka defendeu com segurança.

Assim como nas quartas, contra a Espanha, a Itália sofreu o primeiro gol da partida na decisão (Keystone/Getty)

No segundo tempo, a rede foi balançada pela primeira vez aos 71 minutos, e pelos checoslovacos. Puc experimentou um chute rasteiro de fora da área e Combi saltou atrasado, não chegando no cantinho. Após o gol, a equipe danubiana ainda viu Sobotka desperdiçar uma oportunidade com a meta desguarnecida e Svoboda acertou a trave pela terceira vez.

Tudo parecia perdido e o estádio ficou num silêncio sepulcral. Até que, aos 81, o ítalo-argentino Raimundo Orsi, um dos tantos oriundi daquele elenco, tirou um coelho da cartola. Com vários de marcadores o seguindo, ele fingiu que iria chutar com a perna esquerda e, de repente, finalizou com a direita, no canto superior da meta defendida por Planicka. O goleiro checoslovaco se esticou todo e raspou na bola com a ponta dos dedos, mas não conseguiu espalmá-la.

Antes da prorrogação, a comissão técnica italiana passou instruções aos atletas e os azzurri obtiveram resultado imediato (Fox Photos/Getty)

Com o empate, os ânimos se reaqueceram e a Itália levou o jogo para a prorrogação. Os azzurri não foram para os vestiários, o que era praxe naqueles tempos, e permaneceram no campo por ideia de Pozzo, que queria que os jogadores continuassem a sentir o calor proveniente das tribunas.

O treinador teve outra ideia: orientou a Schiavio e a Enrique Guaita que ficassem trocando de posição para confundirem a marcação adversária e abrirem espaços. Era um modo também de driblar o cansaço. Para melhorar a comunicação com os atletas, o técnico ainda se posicionou ao lado da baliza checoslovaca – na época, ainda não existia qualquer limitação territorial para os comandantes.

Schiavio, atacante do Bologna, decidiu a final com seu quarto gol naquela Copa do Mundo (Popperfoto/Getty)

Dali, Pozzo viu de perto a sua estratégia funcionar na segunda tentativa, aos 95 minutos, no início do tempo extra. Guaita ajeitou para Schiavio, que avançou com a bola, arrematou em diagonal, superou Planicka e desmaiou após o gol marcado. O atacante do Bologna precisou ser reanimado pelo técnico e por Meazza, que lhe deram tapas na cara. Angiolino, porém, não acordaria de um delírio ou de um sonho: era tudo real. Ele anotara o tento que daria o primeiro título mundial à Itália.

O forte calor na Cidade Eterna castigava os dois times, que já estavam exaustos. Assim, a Checoslováquia não teve mais forças para reagir e a Itália pode comemorar o título de campeã mundial pela primeira vez. Para os detratores, uma conquista injusta e repleta de ajudinhas fora e dentro dos gramados, muito influenciada pelo fato de os azzurri terem sido anfitriões do torneio. Mas não era bem assim: a Nazionale repetiria a dose em 1938, num ambiente muito hostil em solo francês, e provaria que era uma seleção que não precisava de auxílio algum para levantar taças.

Itália 2-1 Checoslováquia

Itália: Combi; Monzeglio, Allemandi; Ferraris, Monti, Bertolini; Meazza, Ferrari; Guaita, Schiavio, Orsi. Técnico: Vittorio Pozzo.
Checoslováquia: Planicka; Ctyroky, Zenisek; Krcil, Cambal, Kostálek; Puc, Nejdely, Sobotka, Svoboda, Junek. Técnico: Karel Petru.
Gols: Orsi (81′) e Schiavio (95′); Puc (71′)
Árbitro: Ivan Eklind (Suécia)
Local e data: estádio do Partido Nacional Fascista, Roma (Itália), em 10 de junho de 1934

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