O ítalo-argentino Humberto Maschio conseguiu marcar seu nome no futebol sul-americano e europeu de maneira rara, atuando tanto por clubes quanto por seleções diferentes. Conhecido como um dos Caras Sujas da seleção argentina campeã da Copa América em 1957, jogou nove temporadas na Itália, tendo a melhor fase na Atalanta e vencendo seu título mais importante na Inter. Na sua cidade natal, representando o Racing, foi campeão da Libertadores e da Copa Intercontinental. Meia de boa chegada, fazedor de gols e cobrador de faltas, chegou a disputar uma Copa do Mundo pela Squadra Azzurra, da qual não guarda boas recordações.
Nascido em Avellaneda, no dia 10 de fevereiro de 1933, o pequeno Humberto era torcedor do River Plate na infância. Durante a juventude, sua mãe o obrigava a usar um corte praticamente raspado, o que resultou em um dos seus apelidos: El Bocha, apelido atribuído a pessoas carecas. A intenção do “penteado” era fazer com que os cabelos tivessem um crescimento mais forte, mas o efeito acabou sendo o contrário. Com 26 anos, segundo ele próprio, a calvície começou a se mostrar presente e o apelido seguiu pelo resto de sua carreira.
Sua primeira experiência como jogador foi na Argentina, no extinto Arsenal de Llavallol. Em 1953, com 20 anos, foi para a segunda divisão nacional contratado pelo Quilmes, onde passou a chamar atenção de grandes clubes do país. Apesar de ter marcado 23 gols na sua única temporada por lá, não conseguiu levar os cerveceros ao acesso, mas garantiu a sua própria ascensão futebolística, chegando ao Racing.
Ainda jovem, Maschio já tinha virado a casaca. Influenciado por familiares, largou a torcida pelo River Plate e passou a ser torcedor dos albicelestes de Avellaneda. Na época, convivendo com o serviço militar obrigatório, viveu um dos episódios mais tensos da sua vida. Em 16 de junho de 1955, em meio ao seu segundo ano no clube, sentiu um prédio tremer durante um fim de expediente como cadete. Era o terrível bombardeio na Praça de Maio, atentado que marcava o começo de um fracassado golpe de estado que vitimou mais de 300 pessoas. Após o incidente, Humberto renunciou ao serviço e não retornou mais.
Até o momento da tragédia, o meia já havia marcado oito gols no ano, terminando a temporada com 18, todos pelo Campeonato Argentino. O Racing ficou em segundo lugar, sete pontos atrás do campeão River Plate, e El Bocha empatou na artilharia da competição com Francisco Loiácono – que viria a atuar no futebol italiano, onde defenderia clubes como Roma e Fiorentina.
Em 1956, Maschio fez o seu debute pela Argentina, mas foi em 1957 que sua carreira ganhou os primeiros contornos internacionais. Na Copa América do Peru, a seleção albiceleste composta por jovens talentos venceu o torneio sul-americano em formato de pontos corridos de forma avassaladora. Foram cinco vitórias em seis jogos, e a derrota veio quando o título já estava garantido. E mais do que vencer, foram muitos gols marcados: 25, uma média de quase cinco por partida.
Os responsáveis por balançar as redes tantas vezes foram cinco jogadores que formavam um quinteto conhecido como Los Carasucias, uma gíria para algo como “moleques”, em português, e que se traduz literalmente como uma aglutinação. A primeira parte é simples: “caras” é uma alusão aos rostos. “Sujas”, por sua vez, se refere, no sentido denotativo, às espinhas e à falta de receio de se melarem de lama e, no conotativo, às travessuras feitas por pessoas com essa idade.
Também chamados de Los Carasucias de Lima, em referência à capital peruana, Maschio, Orestes Corbatta, Osvaldo Cruz, Omar Sívori e Antonio Angelillo proporcionaram atuações mágicas, mas que acabaram não sendo registradas no audiovisual. El Bocha terminou a competição como artilheiro, empatado com o uruguaio Javier Ambrois: nove gols para cada.
A origem do apelido “cara suja” tem algumas divergências. A ESPN argentina segue a linha de que a alcunha foi atribuída devido à jovialidade e à irreverência dos três principais pilares do grupo: Maschio, Sívori e Angelillo. O epíteto era, também, inspirado no nome do filme “Anjos de cara suja”, um drama policial de 1938, estrelado por Humphrey Bogart. Após a Copa América, os destaques deixaram o país e foram para a Itália, onde jogaram por Bologna, Juventus e Inter, respectivamente.
Sívori, tido como o grande nome argentino antes da era Maradona, e Angelillo, artilheiro nos seus tempos de Inter, se estabeleceram rapidamente na Bota enquanto El Bocha não teve vida tão fácil. Em seu biênio no Bologna, 1957-58 e 1958-59, apenas mostrou lampejos do craque que era, atuando fora de posição. Ele voltaria a ressurgir na Atalanta de Ferruccio Valcareggi, onde jogou por três anos e foi convocado pela primeira vez para sua segunda seleção: a italiana.
Assim como seus companheiros Sívori e Angelillo, Humberto Dionisio Maschio possuía na sua família laços que possibilitaram sua naturalização. Em seus dois sobrenomes também existem duas histórias distintas. Sete meses antes do nascimento do jogador, o irmão de sua mãe, Dionisio, foi assassinado pelo melhor amigo, em um crime sem motivações claras. Como homenagem, a mãe deu o nome ao seu filho.
Maschio, por sua vez, vem do lado paterno. Seu avô era italiano, originário da Lombardia, e decidiu morar na Argentina com seus filhos mais velhos, deixando suas filhas para trás. O pai de Maschio, jogador de futebol, fez carreira na Itália e deixou a cargo de seu irmão, tio de Humberto, levar as irmãs para o país sul-americano. Foi nesse episódio que mais uma tragédia aconteceu na família: o navio Principessa Mafalda, que levava os parentes do atleta, naufragou. As duas mulheres conseguiram sobreviver, mas o tio não teve a mesma sorte. El Bocha chegou a dizer que seu pai se salvou graças à profissão, já que ele traria as irmãs se não tivesse os compromissos futebolísticos.
A convocação do meia-atacante para a Squadra Azzurra só veio algum tempo depois da Copa do Mundo de 1958, na qual a Argentina teve um desempenho pavoroso sem seu trio. Na época, não eram convocados jogadores que atuavam fora do futebol argentino, o que foi uma das principais razões para as naturalizações dos três Carasucias.
Jogando na Atalanta de 1959 até 1962, Maschio levou a Dea, que retornara à elite no fim da década, após um ano na segundona, a um incrível sexto lugar na sua última temporada em Bérgamo. No time nerazzurro, voltou a ser utilizado mais recuado, como trequartista, função em que podia aproveitar melhor suas características – diferentemente da época de Bologna, quando atuava como centroavante. Seu bom desempenho pelos orobici o levou a disputar o Mundial de 1962 pela Itália mesmo sem ter realizado nenhuma partida na campanha da Nazionale nas Eliminatórias.
Na Copa, a seleção só foi lembrada por maus motivos. Eliminada na fase de grupos, a Itália teve o seu grande momento de destaque (negativo) no confronto contra o Chile, o anfitrião, no qual saiu derrotada por 2 a 0. O placar, nesta ocasião, ficou em segundo plano. A partida conhecida como Batalha de Santiago é tida como a mais violenta da história dos Mundiais e foi determinante para a invenção dos cartões, ferramenta importante para coibir as agressões no esporte. Mesmo assim, houve duas expulsões – ambas do lado europeu –, e Maschio relatou que saiu de lá com um nariz quebrado. No único jogo que fez no torneio, ganhou uma lembrancinha de Leonel Sánchez: um soco.
Em julho de 1962, o meia-atacante não retornou para Bérgamo. Contratado pela Inter, Humberto ficou somente uma temporada em Milão e ganhou seu primeiro título em solo europeu: o Campeonato Italiano, sob o comando de Helenio Herrera. Numa época em que ainda não eram permitidas substituições, fez 15 jogos na liga e marcou quatro gols, inaugurando a contagem em uma memorável vitória contra o Napoli de Bruno Pesaola.
Enfrentando uma forte defesa montada pelo treinador dos partenopei, a Inter contou com uma ajuda instantânea de seu anjo da cara suja para conseguir vencer. Aos 79 minutos, Maschio recebeu bola açucarada de Mario Corso e garantiu a vitória nerazzurra. Na partida seguinte, contra o Milan, marcou novamente em cobrança de falta, em jogo que terminou empatado em 1 a 1. No fim do campeonato, a Beneamata terminou a competição com 19 vitórias, 11 empates e apenas quatro derrotas, se sagrando campeã.
Sem se firmar na Beneamata, Maschio deixou a agremiação e atribuiu à relação com o treinador como uma das razões. De acordo com seu relato, Herrera tinha “ciúmes” dos argentinos, e por isso fez questão de se desfazer tanto dele quanto, anteriormente, do companheiro Angelillo, o mesmo que fazia parte do grupo Los Carasucias na Copa América de 1957 e que não teve vida facilitada com a chegada do técnico, em 1960.
Em 1963, Maschio rumou para Fiorentina a pedido de Valcareggi, comandante da Viola na época: para El Bocha, Ferruccio foi o melhor técnico que teve na Itália, principalmente pela simplicidade com que encarava o esporte. Na Toscana, deu seus últimos passos no futebol europeu. Nas duas primeiras temporadas, ajudou a equipe violeta a alcançar, consecutivamente, o quarto lugar na Serie A.
Em 1965-66, pediu para o clube deixá-lo sair em março. Queria encerrar a carreira no time do coração, o Racing. Foi feito então um combinado: se a Viola chegasse à final da Coppa Italia, ele seria liberado – e foi exatamente o que aconteceu. A Fiorentina foi campeã, mas o argentino certamente não se arrependeu da decisão, pois viveu o sonho de sua vida em Avellaneda.
Com o Campeonato Argentino tendo início justamente em março de 1966, o Racing engatou uma sequência de 39 jogos sem perder na temporada, se sagrando campeão nacional. O recorde só foi batido em 1999, quando o Boca Juniors de Carlos Bianchi passou dos 40 confrontos sem derrotas. Maschio estreou na competição na sexta rodada. Apesar da idade avançada (33 anos) e atuando mais longe do gol, como articulador, o meia foi peça importante em toda a campanha. Na época seguinte, ajudou na conquista da maior glória da Academia – cujo apelido foi cunhado justamente nessa década, devido à qualidade do futebol praticado pelo time de Juan José Pizzuti.
Em 1967, o Racing foi campeão da Libertadores, com uma campanha longa de 20 jogos. Ao todo, somou 14 vitórias, quatro empates e apenas duas derrotas. De quebra, ainda teve seu ponta esquerda, Norberto Raffo, como artilheiro do torneio. Representando o futebol sul-americano, o clube superou o Celtic na Copa Intercontinental e se tornou o primeiro time argentino a ser campeão do mundo. Maschio ainda jogaria sua última temporada profissionalmente em 1968, quando decidiu pendurar as chuteiras e dar início à sua carreira como treinador.
Logo de cara, o primeiro trabalho foi em uma desorganizada seleção argentina. Assumindo o posto em 1969, não permaneceu por muito tempo e foi demitido no mesmo ano. Em 1971, ganhou a chance de trabalhar no seu clube do coração, mas também não obteve sucesso. Sua glória à beira do gramado viria, justamente, no comando do arquirrival.
Assumindo o Independiente em 1973 e acumulando juntamente a função de preparador físico, Maschio venceu a Libertadores e se tornou, assim, o primeiro a conseguir ganhar esse título como técnico e jogador. Na conquista do Mundial do Rey de Copas ao final do ano, Humberto já havia deixado o comando por desavenças com os cartolas do clube.
Sua carreira como treinador seguiu, mas sem muito sucesso, com trabalhos discretos e várias passagens como preparador físico em clubes da Argentina e de outros países sul-americanos. Seu último suspiro dentro do futebol foi justamente no Racing, como diretor. Chegou em 1995, passou por períodos difíceis, mas pôde sair em alta com um título nacional em 2001, após um impressionante jejum de 35 anos sem conquistas. Em 2007, El Bocha retornou à Itália para participar dos festejos pelo centenário da Atalanta e foi saudado pelos torcedores, principalmente os de mais idade. O último remanescente dos Carasucias – após as mortes de Sívori, em 2005, e de Angelillo, em 2018 – faleceria em 2024, aos 91.
Humberto Dionisio Maschio Bonassi
Nascimento: 10 de fevereiro de 1933, em Avellaneda, Argentina
Morte: 20 de agosto de 2024, em Avellaneda, Argentina
Posição: meia-atacante
Clubes como jogador: Quilmes (1953), Racing (1954-57 e 1966-68), Bologna (1957-59), Atalanta (1959-62), Inter (1962-63) e Fiorentina (1963-66)
Títulos: Copa América (1957), Serie A (1963), Coppa Italia (1966), Campeonato Argentino (1966), Libertadores (1967) e Copa Intercontinental (1967)
Carreira como treinador: Argentina (1969), Racing (1971 e 1999-2000), Costa Rica (1972) e Independiente (1973)
Títulos como treinador: Copa Libertadores (1973)
Seleção argentina: 18 jogos e 18 gols
Seleção italiana: 2 jogos