Apesar de não ser um dos nomes mais lembrados em listas dos grandes zagueiros da década de 2010, Medhi Benatia se colocou no grupo dos principais beques que passaram pela Itália no período. Aliando excelente estatura (1,90m) e boa velocidade, se destacava por conta do jogo aéreo, fosse defendendo ou atacando, e também por aplicar carrinhos e buscar antecipações precisas. Construiu sólida carreira e vestiu algumas camisas pesadas nos 15 anos que teve como atleta profissional, destacando-se quando atuou em solo italiano.
O princípio na França
Benatia nasceu em 1987, na cidade de Courcouronnes, sul da França, e é filho de um marroquino e de uma francesa descendente de argelinos. Como outros tantos, interessou-se precocemente pelo futebol e teve sua primeira experiência no INF, o centro de treinamentos de Clairefontaine. A academia é uma das 13 principais da modalidade na França e revelou muitos jogadores, como Thierry Henry, Nicolas Anelka e, mais recentemente, Kylian Mbappé.
A instituição possuía uma diretriz extremamente rigorosa e fornecia estudos a fim de capacitar seus alunos não apenas dentro de campo, mas também sob o aspecto intelectual. Com dificuldades para se adequar às normas e ao rigor acadêmico, Benatia foi expulso, por falta de interesse, no segundo dos três anos que deveria cursar por lá; segundo o próprio, se tratava de um “aluno turbulento”. Vendo a decepção estampada no rosto dos pais, decidiu que precisava mudar de atitude para alcançar seu maior objetivo: ser jogador profissional de futebol.
Para muitos, ser expulso da INF significava ter tal sonho arruinado. Mas não para Benatia, que viu uma nova oportunidade surgir nas categorias de base do Guingamp, onde permaneceria durante um ano até ir para o clube que o lançaria profissionalmente, o Olympique Marseille. Acabou não recebendo chances no OM e acreditou que estava sofrendo algum tipo de boicote.
Foi emprestado para o Tours, ganhou oportunidades e, em nível individual, foi bem. Coletivamente, a equipe foi rebaixada à terceira divisão. No ano seguinte, com 20 anos, foi cedido ao Lorient, mas rompeu os ligamentos do joelho e foi desfalque pela temporada inteira. Em 2008, deixou o Marseille e foi jogar a Ligue 2 pelo Clermont. Neste mesmo período, por conta de suas raízes, optou por representar a seleção marroquina. Foram três anos fundamentais para a lapidação do zagueiro, que entrou no radar de outros times e escolheu rumar à Itália para defender as cores da Udinese, treinada por Francesco Guidolin.
O desabrochar na Itália
Em seu primeiro ano no novo clube (2010-11), Medhi ratificou o quão bom é o trabalho de captação de talentos da Udinese: ajudou os friulanos, embalados pelos 28 gols do artilheiro Antonio Di Natale, a terminarem a Serie A na quarta colocação, que lhes garantia o direito de disputar os playoffs para a fase de grupos da Liga dos Campeões. Naquela temporada, Benatia balançou as redes três vezes, foi o terceiro jogador de linha mais utilizado no campeonato e fez uma forte zaga com Cristián Zapata e Maurizio Domizzi, protegendo a meta de Samir Handanovic. Os bianconeri tiveram a sexta defesa menos vazada, com 43 tentos sofridos.
Em 2011-12, a Udinese teve azar no sorteio da Champions League e teve de enfrentar o Arsenal nos playoffs. Os Gunners venceram os dois confrontos – pelo placar mínimo, na Inglaterra, e, em Údine, de virada por 2 a 1. Com isso, os friulanos foram para a Europa League, onde, depois de eliminarem o PAOK, da Grécia, foram mandados para casa após dois disputados duelos contra o AZ Alkmaar, da Holanda. Ainda como titular absoluto, Benatia atuou menos vezes, já que sofreu uma lesão muscular e também se ausentou em janeiro de 2012, para representar Marrocos na Copa Africana de Nações.
Um terceiro lugar na Serie A garantiu à Udinese o direito de disputar novamente os playoffs da Liga dos Campeões, mas o roteiro se repetiu e o sonho da classificação à fase de grupos não se concretizou: os bianconeri foram eliminados para o Braga, de Portugal, na decisão por pênaltis, devido a um erro inacreditável do brasileiro Maicosuel. Na Europa League, as zebras terminaram na lanterna de um grupo que tinha Liverpool, Anzhi e Young Boys. Já no certame nacional, o time friulano fez outra boa campanha, que culminou na quinta colocação. Vale ressaltar que a utilização de Benatia nesta temporada foi menor em comparação às anteriores por conta dos mesmos problemas físicos no músculo adutor e de outra participação na CAN.
As questões musculares não impediram que a Roma contratasse o defensor no verão de 2013-14: por 17 milhões de euros, Benatia se tornou mais uma das boas vendas da Udinese, depois de realizar apenas 97 partidas pela agremiação. Na equipe capitolina, então treinada pelo francês Rudi Garcia, o marroquino compôs a zaga ao lado de Leandro Castán e também fez parceria com outros dois brasileiros, Maicon e Dodô.
Na Cidade Eterna, Medhi logo acabou se transformando um inesperado protagonista. Não por sua qualidade, já que era um dos principais zagueiros africanos em circulação, mas pelo aporte que conferiu a uma equipe que ainda tinha nomes como Miralem Pjanic, Daniele De Rossi e Francesco Totti. Imperioso nas jogadas aéreas, agressivo e veloz para repelir investidas pelo solo, se tornou um pilar dos giallorossi. Benatia viu a Roma enfileirar 10 vitórias em sequência no início do campeonato, com apenas um gol sofrido.
A Roma fechou a Serie A com 85 pontos, pontuação que, dependendo do ano, seria suficiente para um time se sagrar campeão. Mas a histórica campanha da Juventus, que venceu 33 das 38 partidas e somou incríveis 102 pontos, não deu chances à equipe romana, que também teve a segunda melhor defesa da competição, com 25 gols sofridos. Principal nome da retaguarda giallorossa, o marroquino só foi desfalque em cinco ocasiões e, no ataque, contribuiu com cinco tentos – sucedidos por sua tradicional comemoração como pistoleiro. Não à toa, foi incluído na seleção oficial do campeonato daquela temporada.
Um capítulo na Baviera
Quando se é o destaque de um time, é natural que você desperte a cobiça por parte de outros clubes. Foi o caso de Benatia após a estupenda temporada pelos giallorossi: dentre algumas das sondagens que surgiam, o marroquino se interessou pela proposta formalizada pelo Bayern, que procurava atentamente por um substituto para Javi Martínez, vítima de grave lesão no joelho sofrida durante a final da Supercopa da Alemanha.
O zagueiro aceitou a proposta, mas a sua saída da Roma foi um tanto quanto turbulenta. O clube alegava que a saída era desejo do atleta, mas o mesmo se defendeu dizendo que tudo o que ele queria era uma valorização contratual e que, caso não tivesse o pedido atendido, buscaria outro destino.
James Pallotta, presidente giallorosso, contestou a declaração do marroquino. “Benatia continua a construir seu próprio castelo de invenções nos últimos dois meses. Em julho, em Boston [pré-temporada], concordamos com uma prorrogação e um aumento salarial. Depois de dizer várias vezes que queríamos que ele ficasse conosco, ele me disse que estava muito feliz. Durante o mês de agosto, ele mentiu para Rudi Garcia sobre seu desejo de ficar e sobre os valores do nosso acordo. Ele envenenou o vestiário. Sua saída não foi uma questão de dinheiro, mas uma questão de personalidade para o nosso vestiário. Como torcedor da Roma, estou profundamente desapontado que um de nossos jogadores tenha se comportado assim”, afirmou o cartola.
Com tudo resolvido, Benatia rumou para a Alemanha por 30 milhões de euros e passou dois anos no clube bávaro. Treinado por Pep Guardiola, teve dificuldade de se adaptar ao estilo do treinador e a Munique, de modo que nunca jogou com regularidade – no biênio pelos Roten, somou praticamente a mesma quantidade de minutos que em uma temporada em Roma.
Nos tempos de Bayern, o marroquino foi eleito pela terceira vez para o time do ano da CAF, a Confederação Africana de Futebol, e também conquistou duas taças da Bundesliga e da Copa da Alemanha. Ao todo, disputou 46 partidas pelo Bayern e anotou três gols. Nessa etapa de sua carreira, Benatia também se viu envolvido em um assunto familiar delicado. Seu pai lhe acusou de ter abandonado a família após ter atingido a fama e fechado com o clube alemão. A mãe do zagueiro o defendeu: “Medhi não mudou absolutamente em nada depois de sua transferência para o Bayern. Ele é um muçulmano praticante que conhece a importância da família. Também sabemos das várias doações que ele faz para Marrocos, incluindo mesquitas e tudo”.
Novamente bianconero
No verão europeu de 2016, o Bayern de Munique fechou a contratação de Mats Hummels e optou por negociar Benatia. Assim, o marroquino acertou a sua volta ao futebol italiano, numa operação de empréstimo com opção de compra por parte da Juventus.
A ida para Turim fez bem ao zagueiro, que viveu uma primeira temporada para lá de vitoriosa como jogador bianconero: foram dois títulos, o da Serie A e o da Coppa Italia, além dos vices da Supercopa Italiana e da Liga dos Campeões. No torneio europeu, os piemonteses passaram por Porto, Barcelona e Monaco até avançarem à final, disputada contra o Real Madrid, que buscava o bicampeonato consecutivo. Os espanhóis abriram o marcador com Cristiano Ronaldo e Mario Mandzukic, em um golaço antológico, deixou tudo igual, dando a impressão de que o duelo pudesse ser disputado. No entanto, os merengues acabariam vencendo por 4 a 1 – Juan Cuadrado ainda foi expulso, nos minutos finais. Benatia, reserva imediato do trio formado por Giorgio Chiellini, Leonardo Bonucci e Andrea Barzagli, não entrou em campo naquele dia.
Poucos dias antes da decisão europeia, mais precisamente em maio de 2017, Benatia concedeu uma entrevista ao programa Calcio Champagne, da Rai e, ao ouvir um insulto racista proferido contra ele, parou tudo o que estava fazendo e exigiu saber quem havia dito aquilo. A ofensa não foi ouvida pelos telespectadores, mas o zagueiro escutou “O que você está falando, seu marroquino de merda?” em seu ponto eletrônico. A empresa televisiva pediu desculpas e prometeu investigar o episódio.
Para o ano seguinte, a Juventus teve uma mudança em seu elenco que foi particularmente benéfica para Benatia. Bonucci fechou com o Milan e, com isso, deixou uma importante lacuna a ser preenchida na zaga bianconera. Se antes ele havia disputado 21 partidas, desta vez, com um papel de maior protagonismo, entrou em campo 32 vezes. Na Liga dos Campeões, os piemonteses tiveram o reencontro com o Real Madrid na fase de quartas de final, e o enfrentamento deu o que falar. No primeiro jogo, em Turim, tudo deu errado para os anfitriões, que viram Cristiano Ronaldo abrir o placar no terceiro minuto e aumentar aos 19 da segunda etapa. Pouco depois, perderam Paulo Dybala, expulso, e sofreram o terceiro gol, anotado pelo brasileiro Marcelo.
Na volta, os bianconeri pareciam estar próximos de conseguir algo praticamente impossível: em pleno Santiago Bernabéu, com uma doppietta de Mandzukic e um gol de Blaise Matuidi, tudo se encaminhava para a prorrogação, mas, aos 46 minutos do segundo tempo, o árbitro britânico Michael Oliver marcou pênalti de Benatia em cima de Lucas Vásquez. A reclamação por parte do lado da Juventus foi tão grande que Gianluigi Buffon acabou sendo expulso e não teve a chance de tentar defender o pênalti cobrado por Cristiano Ronaldo. O português superou Wojciech Szczesny e garantiu a polêmica classificação merengue às semifinais.
Não houve tempo para a Velha Senhora lamentar a eliminação. Isso porque a corrida pelo título da Serie A, protagonizada por Juventus e Napoli, pegava fogo. Doze dias após o fatídico jogo em Madrid, pela 34ª rodada do campeonato nacional, os dois se enfrentaram no Allianz Stadium. O empate persistiu até o penúltimo minuto da etapa complementar, quando os visitantes tiveram um escanteio. José Callejón cobrou na cabeça de Kalidou Koulibaly, que se antecipou a Benatia para testar com força para o fundo das redes de Buffon e garantir os três pontos aos partenopei, que ficaram a apenas um ponto dos bianconeri restando quatro rodadas para o término do certame.
Na rodada seguinte, a Juventus, se recuperou vencendo a Inter fora de casa, por 3 a 2, enquanto o Napoli decepcionou e não viu a cor da bola na derrota por 3 a 0, também longe de seus domínios, para a Fiorentina. Tal tropeço desestabilizou os vice-líderes, que desperdiçaram mais pontos no jogo seguinte, contra o Torino (2 a 2), facilitando a vida dos bianconeri, cuja vantagem na liderança aumentou após terem batido o Bologna por 3 a 1.
Com seis pontos de vantagem restando duas partidas, a definição do título veio na penúltima rodada, quando os azzurri venceram a Sampdoria (2 a 0), mas viram a Juve empatar, sem gols, contra a Roma, o que garantiu uma vantagem de quatro pontos a uma rodada do fim e, portanto, mais um scudetto na galeria de troféus dos bianconeri. Depois da falha cometida contra o Napoli, Benatia não entrou mais em campo na Serie A.
Durante essa mesma reta final de temporada, Juventus e Milan se encararam na decisão da Coppa Italia, realizada em Roma, no Olímpico. E o melhor estava reservado para Benatia e para a equipe de Turim. Dentro de campo, após um primeiro tempo em que a rede não balançou (e com leve predomínio rossonero), o que se viu nos últimos 45 minutos foi um passeio dos comandados de Massimiliano Allegri, que inauguraram o marcador através de Medhi, aproveitando escanteio cobrado por Pjanic.
Cinco minutos depois, Gianluigi Donnarumma tentou segurar finalização de fora da área de Douglas Costa, mas a bola morreu dentro da sua própria meta. E para piorar ainda mais a jornada do goleiro do Milan, uma trapalhada sua permitiu que Benatia garantisse sua doppietta: Gigio se enrolou em cabeçada de Mandzukic e deixou a bola morrer nos pés do camisa 4, que só teve o trabalho de mandar a bola para dentro. A goleada foi sacramentada quando Nikola Kalinic desviou contra o próprio gol. Com extrema autoridade, a Juventus sagrou-se campeã da Coppa Italia. E, pela quarta vez na carreira, Medhi integrou a seleção da CAF.
Fim de ciclos
A temporada 2018-19 marcou o fim da passagem de Benatia na Juventus e no futebol italiano. O marroquino acabou se sentindo desprestigiado quando Bonucci, de volta a Turim após uma estranha passagem pelo Milan, tomou seu lugar na fila de zagueiros. Relegado ao banco, Medhi fez apenas seis partidas antes de, em janeiro de 2019, acertar sua ida para o Al-Duhail, do Catar. Por ter feito parte do elenco piemontês na primeira metade da época, adicionou novas conquistas ao currículo: mais um scudetto, o que simbolizou sua quinta taça nacional consecutiva (duas na Alemanha e três na Itália), e o título da Supercopa Italiana, contra o Milan – vencida com gol marcado por Cristiano Ronaldo, em sua primeira campanha como atleta bianconero.
Os altos salários geralmente são, por si só, um atrativo suficiente para fazer jogadores se mudarem para o Oriente Médio. No entanto, a ida de Benatia, cujos vencimentos passaram a ser 5 milhões de dólares por ano, foi motivada por outro fator: fazer com que seus filhos crescessem em um ambiente islâmico.
Àquela altura, Benatia estava no final de sua trajetória pela seleção de Marrocos. Medhi foi capitão da equipe nacional de 2015 a 2019 e também foi um dos heróis da classificação à Copa do Mundo da Rússia, ao marcar um dos dois gols do triunfo por 2 a 0 diante da Costa do Marfim. A última vez que os marroquinos tinham ido ao Mundial havia sido em 1998, na França, e em ambas as ocasiões eles foram eliminados na fase de grupos. Já em 2019, disputou sua quarta (e derradeira) edição da Copa Africana de Nações, realizada no Egito. Após os Leões do Atlas caírem nas oitavas de final para o Benim, o zagueiro pendurou a camisa verderrubra.
Passadas duas temporadas e meia no Catar, o beque foi atuar no Fatih Karagümrük, da Turquia, mas se tornou vítima de seguidas lesões e só entrou em campo seis vezes. Com o Campeonato Turco em andamento, anunciou a despedida dos gramados, após perder a batalha para o próprio corpo. Um desfecho precoce para o tremendo zagueiro que foi Medhi Benatia.
Medhi Amine El Mouttaqi Benatia
Nascimento: 17 de abril de 1987, em Courcouronnes, França
Posição: zagueiro
Clubes: Marseille (2005-06), Tours (2006-07), Lorient (2007-08), Clermont (2008-10), Udinese (2010-13), Roma (2013-14), Bayern de Munique (2014-16), Juventus (2016-19), Al-Duhail (2019-21) e Fatih Karagümrük (2021)
Títulos: Copa Intertoto (2005), Bundesliga (2015 e 2016), Copa da Alemanha (2016), Serie A (2017, 2018 e 2019), Coppa Italia (2017 e 2018), Supercopa Italiana (2018), Copa do Emir (2019) e Qatar Stars League (2020)
Seleção marroquina: 66 jogos e 2 gols