Para a tristeza da torcida da Juventus, que já tinha visto Alessandro Del Piero, seu maior ídolo, se aposentar longe de Turim, Gianluigi Buffon, 40 anos, também escolheu encerrar a carreira longe de casa. Gigi, o Superman italiano, fez sua última partida com a camisa da Juve no dia 19 de maio e optou por jogar na França. O goleiro já estava decidido a atuar pelo Paris Saint-Germain, mas somente no início de julho houve a confirmação de que ele tentará um último voo em busca do único título que não conquistou nesses 23 anos de carreira: a Liga dos Campeões.
A avaliação é de que o atual time da Juve já foi até onde dava no maior torneio continental (dois vice-campeonatos em três anos) e de que a taça da Champions no currículo convenceria até os mais céticos do que já é certo para muita gente: Buffon é o maior goleiro de todos os tempos.
Existem postulantes à honraria no passado (Lev Yashin, Gordon Banks, Dino Zoff, Ricardo Zamora, František Plánicka) e em tempos mais atuais (Iker Casillas, Edwin van der Sar, Oliver Kahn, Manuel Neuer), mas nenhum sustentou durante tanto tempo a regularidade de Buffon, que o faz ser desejado pelos maiores times do planeta mesmo aos 40 anos de idade. Além do PSG, Real Madrid e Manchester United teriam mostrado interesse em contar com o goleiro italiano na próxima temporada.
Desde quando surgiu no Parma, em 1995, até hoje, Gigi encabeçou listas e mais listas de melhor goleiro da temporada. Na avaliação da Fifa, ele foi o melhor do mundo em cinco oportunidades (2003, 2004, 2006, 2007 e 2017) e ficou ao menos no top-5 em 17 de 19 listas da entidade desde 1999. De lá para cá, só em 2000 e em 2010 Buffon não apareceu entre os cinco melhores do planeta. No top-10, tem 100% de aproveitamento no período e é o recordista absoluto de presenças. Veja as listas aqui.
Só o espanhol Iker Casillas tem tantos prêmios da Fifa quanto Buffon, mas com uma diferença: Casillas teve seus cinco prêmios seguidos, em um auge bem marcado entre 2008 e 2012, enquanto Buffon dividiu suas cinco conquistas ao longo de 15 anos, sendo a última delas em 2017, já aos 39 anos.
Ascensão meteórica
Nascido em Carrara, na Toscana, em 1978, Buffon pegou o gosto pelo esporte logo cedo, ao ver parentes próximos sempre competindo em alto nível. Seus pais, Maria e Adriano, eram campeões nacionais e integrantes da seleção italiana de arremesso de peso e lançamento de disco; suas irmãs, Guendalina e Veronica, jogaram handebol profissionalmente; e Lorenzo Buffon, primo de seu pai, foi goleiro da seleção italiana de futebol, com passagens por Milan, Inter, Fiorentina e Genoa.
Assim, não foi surpresa (e nem empecilho) para a família quando a habilidade do pequeno Buffon chamou a atenção do Parma e fez o clube desembolsar 15 milhões de liras, ato que não era muito comum na época, para garantir que ele passasse seus anos no futebol de base na Emília-Romanha, cerca de 200 quilômetros distante da cidade natal Carrara. Detalhe: Gigi foi contratado como meio-campista.
A boa noção tática, a firmeza na marcação e o bom passe, porém, não foram suficientes para segurá-lo no meio de campo e não demorou para que percebessem seu potencial debaixo das metas. Aos 14 anos, ele virou oficialmente goleiro do plantel júnior do Parma e dali só saiu nove anos depois, vendido para a Juventus por 52 milhões de euros, na maior quantia já paga por um goleiro até hoje.
Sua estreia no time principal dos crociati foi em novembro de 1995, aos 17 anos, quando o titular Luca Bucci se machucou. Contra o Milan, Buffon saiu como um dos melhores em campo ao segurar o 0 a 0 diante do ataque que tinha Roberto Baggio e George Weah. Na temporada seguinte, ele já era titular absoluto e, em 1998, ganhou o apelido de Superman, após defender um pênalti do então Bola de Ouro Ronaldo, da Inter, e, na comemoração, exibir uma camisa do herói da DC Comics, que vestia por baixo do uniforme.
Suas defesas heroicas e plásticas levaram o Parma ao protagonismo no futebol italiano e o clube passou por um dos melhores momentos de sua história, com um título da Copa Uefa (atual Liga Europa), um da Coppa Italia e um da Supercopa Italiana. As grandes atuações levaram Buffon para a Copa do Mundo na França, em 1998, como reserva de Gianluca Pagliuca, e chamaram a atenção dos maiores clubes da Europa. Em 3 de julho de 2001, então, a Juventus fez a contratação mais cara de sua história – em recorde que permaneceu até 2016, quando a equipe bianconera pagou 90 milhões de euros por Gonzalo Higuaín. Gigi chegava para o lugar de Edwin van der Sar, que não se firmara em Turim e encaminhava sua saída para o Fulham.
A identificação com a torcida bianconera foi imediata e não era pra menos: Buffon acumulava grandes partidas e mostrava liderança atípica para um jogador tão jovem. Logo nas duas primeiras temporadas na Juve, levantou duas Serie A e duas Supercopas Italianas, além de um vice-campeonato da Liga dos Campeões.
Nessa campanha europeia, aliás, Gigi foi eleito o melhor jogador da competição, mesmo com a derrota para o Milan na final, e se tornou o primeiro goleiro da história a receber esse reconhecimento, que historicamente é dado a jogadores de linha, principalmente de ataque. As defesas em pênaltis de Luís Figo, na semi contra o Real Madrid, e de Pippo Inzaghi, Clarence Seedorf e Kakha Kaladze, na final contra o Milan, estão entre as mais lembradas pelos torcedores e pelo próprio goleiro, como ele conta em sua autobiografia Numero 1, lançada em 2008.
Ocaso bianconero e auge na Azzurra
Nos anos seguintes, Gigi ganharia ainda mais duas Serie A, em 2004-05 e 2005-06, mas viveria o momento mais delicado de sua carreira com a deflagração do escândalo Calciopoli, que revogou os títulos da Velha Senhora e a rebaixou para a Serie B italiana, por conta de manipulação de resultados. O episódio agitou o mercado europeu e alguns dos melhores jogadores da Juve deixaram o time para não jogar a segunda divisão local.
Fabio Cannavaro foi um deles. Capitão do seleção campeã mundial na Alemanha em 2006, o zagueiro foi eleito o melhor jogador do mundo ao fim daquele ano, mas nunca foi muito popular entre os torcedores da Velha Senhora porque escolheu ir para o Real em um dos momentos mais delicados da história da Velha Senhora. Buffon não. O goleiro decidiu ficar, aumentou seu status de ídolo e adicionou ao currículo o título da Serie B 2006-07.
Isso logo após entrar para a história da seleção italiana com a taça da Copa do Mundo, contra a França de Zinédine Zidane, e eleito o melhor goleiro do torneio. Gigi levou apenas dois gols em todo o torneio (um contra de Cristian Zaccardo, contra os EUA, e outro de pênalti, na final) e ficou em segundo lugar na lista da Bola de Ouro da France Football.
Nova Era
De volta ao clube, o melhor goleiro do planeta enfrentou uma Serie B e alguns anos de seca. Isso porque, apesar de todo o poderio financeiro, a Juve demorou a se reencontrar na elite nacional. A rival Inter de Milão dominava a Bota e conseguia importantes resultados também no âmbito europeu, enquanto a equipe de Turim revezava campanhas irregulares com alguns momentos de menos brilho. Durante este período, o próprio Gigi conviveu com alguns problemas físicos e teve um curto momento de baixa, talvez o pior de sua carreira.
A Velha Senhora chegou a ficar duas temporadas seguidas sem disputar a Liga dos Campeões, em 2010-11 e 2011-12, mas conseguiu sua retomada exatamente dessa última vez que não disputou a maior competição europeia. Fora da Champions, o então técnico Antonio Conte focou no Campeonato Italiano e conseguiu vencê-lo pela primeira vez depois do Calciopoli em 2012, apostando em Buffon como um de seus líderes dentro de campo.
Competitivo como o treinador, Buffon contaminou seus companheiros e fez daquela Juve uma equipe muito aguerrida e obediente taticamente. Ele considera aquele o título mais importante de sua carreira, após a Copa de 2006.
Daí começou uma era vencedora da Juve que o futebol italiano jamais havia visto. Além dos sete scudetti seguidos e as duas finais de Liga dos Campeões já citadas, a equipe ainda ganhou mais quatro Copas da Itália (2014-15, 2015-16, 2016-17 e 2017-18), torneio que o time não vencia desde 1995. Nesse tempo, Gigi acumulou inúmeros recordes e gravou de vez seu nome na história do futebol mundial.
Recordes
Ele deixou a Juve com a impressionante marca de 656 partidas disputadas, atrás apenas de Ale Del Piero e muitos outros recordes: primeiro goleiro a conquistar o prêmio de melhor jogador da Serie A (2017) e o Golden Foot Awards (2016), prêmios usualmente dados a jogadores de linha; único a ser considerado o melhor goleiro da temporada em 12 ocasiões; primeiro a ficar mais de 10 jogos sem tomar gols; e recordista em minutos sem ser vazado (974 minutos, na temporada 2015-16).
Na Azzurra, dominou a meta de forma ininterrupta entre 2000 e 2017 – e ainda dominará, caso decida não se aposentar depois de não conseguir a classificação para a Copa do Mundo na Rússia. Gigi acumulou 176 jogos, sendo o atleta que mais vezes vestiu a camisa da seleção italiana na história, com 40 presenças a mais do que Fabio Cannavaro, o segundo da lista.
O Mundial na Rússia, aliás, seria o sexto de sua carreira, o que o tornaria o recordista isolado de participações no torneio – atualmente, ele divide a honraria com o alemão Lothar Matthäus e os mexicanos Antonio Carbajal e Rafa Márquez. Gigi também ficou (ou está?) muito perto de se tornar o jogador que mais vezes defendeu uma seleção na história do futebol. Ele perde apenas para o egípcio Ahmed Hassan (184 jogos), o saudita Mohamed Al-Deayea (178) e o mexicano Claudio Suárez (177).
Por essas e por outras, a frase “Se Buffon não tem Liga dos Campeões, azar o dela” e suas variáveis foram repetidas dezenas de vezes nos últimos anos. Nenhuma dessas vezes, porém, Gigi parece ter se convencido. Sua reação após a desclassificação dessa temporada (em marcação muito polêmica do juiz, ao dar pênalti para o Real Madrid no último minuto de jogo após a Juve reverter um 3 a 0 no placar agregado) deixa isso claro. Só gravar o nome na história não é suficiente para o Superman italiano. Ele quer gravar na história e em todas as taças possíveis.