No esporte, a capacidade de dedicar intensamente costuma ser proporcional ao sucesso em qualquer modalidade. O empenho não necessariamente se traduz em títulos, mas certamente resulta numa carreira respeitável e, no caso do futebol, pode te aproximar de equipes vitoriosas se for aliada à qualidade técnica. Isso aconteceu com o incansável meio-campista Blaise Matuidi, peça-chave para conquistas de Paris Saint-Germain, seleção francesa e Juventus.
Uma parcela da dedicação de Matuidi vem dos esforços que seus familiares fizeram para sobreviver. Blaise é filho de um casal que fugiu da guerra civil que assolou Angola e, depois de breve estadia no antigo Zaire, atual República Democrática do Congo, se estabeleceu na França. De origem angolana por parte de pai e congolesa por parte de mãe, o volante nasceu em Toulouse e cresceu nos subúrbios de Paris. Se, por um lado, herdou mais referências culturais do país de sua linhagem materna, por outro, foi o pai que o colocou no caminho do esporte. Afinal, ninguém pode ser criado por alguém que se chama Rivelino e passar longe de uma bola de futebol.
Aos 13 anos, depois de passar por escolinhas de clubes amadores, Matuidi ingressou na academia de futebol de Clairefontaine, uma das mais importantes da França. Por lá, aprimorou os fundamentos básicos do esporte e foi revelando suas principais características: capacidade física, resistência, velocidade, qualidade para roubar bolas, articular jogadas e aparecer no ataque para concluí-las. Assim, foi notado pelo Créteil e deu um passo adiante em sua carreira como juvenil. Pouco antes de se profissionalizar, assinou com o Troyes e, em 2004, recebeu suas primeiras oportunidades ao time adulto do ESTAC.
Em 2004-05, o Troyes subiu para a Ligue 1 e, na elite francesa, Blaise se tornou um habitué do time azul. Volante titular do ESTAC, o franco-angolano teve dificuldades para controlar o número de faltas cometidas e recebeu muitos cartões amarelos no início de sua trajetória profissional. No entanto, a sua qualidade se sobressaía e lhe rendeu convocações para as equipes sub-19 e sub-21 dos Bleus.
Matuidi ajudou o Troyes a evitar o rebaixamento em sua primeira campanha na Ligue 1, mas não repetiu a dose em 2006-07. Com a queda do time para a segunda divisão, o meio-campista recebeu sondagens de clubes como Bordeaux, Lille e Monaco, mas acabou assinando com o Saint-Étienne.
Blaise vestiu a camisa verde por quatro temporadas, nas quais ajudou o Sainté a ser quinto colocado na Ligue 1, com direito a participação na Copa Uefa 2008-09, e a escapar do rebaixamento duas vezes. Durante sua militância no ASSE, Matuidi chegou a ser capitão do time e também começou a mostrar sua versatilidade: foi utilizado como volante, meia central, meia pelo flanco canhoto e lateral-esquerdo. Por conta de seu alto nível de atuações, ganhou espaço na seleção da França a partir de 2010 e, no ano seguinte, se tornou uma das primeiras aquisições da gestão catariana do Paris Saint-Germain.
O volante chegou à Cidade Luz para substituir Claude Makélélé, um dos grandes da posição, que havia se aposentado. E fez bonito, a ponto de receber vários apelidos lisonjeiros, que se juntaram a um que ganhara nos tempos de Saint-Étienne. Pelos verdes, Blaise era conhecido como Chewing Gum (“goma de mascar”), por grudar nos adversários como chiclete. Em Paris, virou “The Octopus”, por, como um polvo, espalhar seus tentáculos por todo o gramado e interceptar os adversários.
No entanto, o apelido com o qual o volante mais ficou conhecido foi Charo: a alcunha lhe acompanhou pelo restante da carreira e ainda lhe proporcionou uma comemoração personalizada. O termo é uma abreviação para “charognard” – que significa “abutre”, em francês – e lhe foi atribuído porque ele tinha o hábito de roubar bolas dos adversários e ficar som as sobras, tal qual a ave de rapina faz com a carne de animais mortos. Em 2015, o rapper franco-congolês Niska compôs a música “Matuidi Charo”, em sua homenagem, e ainda criou uma coreografia específica para a faixa. A partir de então, Blaise adotou a dança como celebração para cada gol de sua autoria.
Pelo PSG, Matuidi se tornou um dos principais volantes do futebol mundial e passou a ser comparado a Jean Tigana, um dos melhores meias centrais da história da França. Blaise disputou seis temporadas inteiras pelo clube parisiense e, apesar das decepções pelos vice-campeonatos da Ligue 1 em 2012 e 2017, anos em que Montpellier e Monaco foram campeões, pode levantar a taça nacional nas quatro outras campanhas. Durante sua militância em Paris, o jogador ainda faturou sete títulos de copas e cinco de Supercopas. Obteve 16 canecos, no total.
Nos anos em que defendeu o Paris Saint-Germain, Charo foi escolhido para o time ideal da Ligue 1 em 2013 e 2016 e, em 2015, ganhou o prêmio de Jogador Francês do Ano, conferido pela revista France Football. Naturalmente, se consolidou na seleção do país e, ainda que fosse reserva na equipe de Laurent Blanc, foi peça-chave no trabalho de Didier Deschamps. Matuidi participou das Euros 2012 e 2016, obtendo um vice-campeonato na última, quando já era titular absoluto dos Bleus, e também disputou a Copa do Mundo de 2014.
Matuidi começou a temporada 2017-18 em Paris e chegou a fazer três partidas pelos Rouge-et-Bleu antes de, no fim da janela de transferências do verão europeu, acertar com a Juventus por 20 milhões de euros – mais bônus que poderiam fazer o valor total do negócio chegara 30,5 mi. Aos 30 anos, o experiente volante aportava em Turim como um reforço de peso para as ambições dos bianconeri, que não estavam mais satisfeitos apenas com a hegemonia em solo italiano. Após o hexacampeonato consecutivo da Serie A e o tri da Coppa Italia, o objetivo da diretoria era o título da Champions League, que escapara nas finais de 2015 e 2017. Naquela mesma sessão de mercado, a Velha Senhora buscou Wojciech Szczesny, Mattia De Scigio, Rodrigo Bentancur, Douglas Costa e Federico Bernardeschi.
Recém-chegado a Turim, Charo estreou pela Juventus no dia seguinte à confirmação de sua contratação: entrou no fim da partida vencida por 3 a 0 sobre o Cagliari, na abertura da Serie A. De imediato, o volante tomou conta do meio-campo bianconero e se tornou uma peça importantíssima para o esquema de Massimiliano Allegri.
Além de marcar bastante e distribuir o jogo, Matuidi também balançava as redes de vez em quando: foram quatro gols anotados, sendo que o mais importante deles foi contra o Real Madrid, nas quartas de final da Champions League. O tento do francês foi o terceiro da Juventus e levaria o duelo disputado no Santiago Bernabéu para a prorrogação, até que, a 15 segundos do fim, o árbitro Michael Oliver assinalou uma penalidade controversa para os merengues, o que revoltou os visitantes. Cristiano Ronaldo, que já havia feito uma doppietta – com direito a bicicleta – no Allianz Stadium, converteu e eliminou os italianos.
Um dos outros gols de Matuidi naquela temporada também ocorreu num dia em que ele também deixou o campo indignado. Em duelo realizado no Marcantonio Bentegodi, o francês aproveitou o rebote de um chute de Gonzalo Higuaín e anotou um dos tentos da vitória da Juve por 3 a 1. No entanto, foi vítima de ofensas raciais por parte de ultras do Verona durante o confronto. No sábado seguinte, diante do Cagliari, voltou a ser alvo da intolerância dos racistas. Blaise se declarou estupefato pela repetição dos atos e pela inércia das autoridades. Na campanha subsequente, em uma segunda visita à Sardenha, a torcida dos isolani direcionou coros discriminatórios a Moise Kean e o volante chegou a discutir com o árbitro Piero Giacomelli pela sua falta de atitude em relação aos acontecimentos. Segundo diretriz da Federação Italiana de Futebol – FIGC, a partida deve ser interrompida em caso de incidentes do gênero.
No primeiro ano em Turim, Blaise teve importância significativa na campanha do heptacampeonato da Juventus, conquistado numa disputa acirrada com o Napoli de Maurizio Sarri, que somou 91 pontos. O aproveitamento azzurro foi de campeão, mas ainda assim foi inferior ao da Velha Senhora, que colecionou incríveis 95.
Ao fim da temporada, o volante embarcou para a Rússia juntamente com a delegação da França que disputaria a Copa do Mundo de 2018. Vale lembrar que os Bleus garantiram a vaga no torneio graças ao gol de Matuidi em vitória sobre a Bulgária, mesma adversária que havia tirado dos franceses a chance de ter representação na edição de 1994 do certame. No extremo leste da Europa, a seleção comandada por Deschamps se sagrou bicampeã mundial e Blaise foi titular absoluto, não atuando apenas em dois jogos: foi poupado no último compromisso da fase de grupos, contra a Dinamarca, e cumpriu suspensão nas quartas de final, ante o Uruguai.
De volta à Itália para iniciar a sua segunda temporada pela Juventus, Matuidi passou a ter Cristiano Ronaldo, ex-carrasco bianconero, como parceiro de vestiário, e continuou a fazer a sua parte. Operário num time de estrelas, Charo contribuiu para a conquista da Supercopa Italiana e de mais um título da Serie A – dessa vez com folga sobre os azzurri, então treinados por Carlo Ancelotti. Contudo, a eliminação da Velha Senhora nas quartas de final da Champions League, perante o Ajax, provocaria abalos em Turim.
A eliminação no torneio europeu, considerada precoce, levou a uma revolução no banco de reservas: o pragmático Allegri deu lugar ao fantasioso Sarri. Para Matuidi, a troca representou uma queda no nível de suas atuações e abriu espaço para que o recém-contratado Adrien Rabiot, seu ex-colega de PSG, ganhasse mais espaço. Blaise até terminou a temporada como um dos jogadores do elenco com maior número de partidas disputadas na Serie A, repetindo o feito obtido no ano anterior, mas a sua minutagem caiu. Na Champions League, Charo também foi menos utilizado.
Para a Velha Senhora, a temporada 2019-20 foi de altos e baixos. Atritos entre Sarri, Ronaldo e a diretoria foram sentidos em campo e o futebol da equipe passou longe de agradar. O título da Serie A foi conquistado a duras penas – Inter, Lazio e Atalanta lutaram com os bianconeri até o final – e terminou sendo o único da campanha. A Juve foi vice na Supercopa Italiana e também na Coppa Italia, além de ter sido eliminada pelo Lyon nas oitavas da Champions League. Foi o fim de linha para o técnico e também para o meia francês.
Em agosto de 2020, poucas semanas após o fim daquela atípica Serie A, que teve reta final disputada durante alguns dos meses mais agudos da pandemia de covid-19, Matuidi e a Juventus rescindiram consensualmente o contrato que os ligava. Em três anos pela equipe de Turim, Charo marcou oito gols, conquistou cinco taças e ganhou o irrestrito carinho da torcida, que sempre apreciou a disposição mostrada por ele nas 133 partidas em que vestiu a camisa bianconera.
No dia seguinte à rescisão contratual, Matuidi, então com 33 anos, foi anunciado como reforço do Inter Miami, clube de propriedade de David Beckham na Major League Soccer. O francês passou duas temporadas nos Estados Unidos, onde chegou a fazer uma improvável dupla de volantes com Gregore, ex-Bahia. Porém, no período em que defendeu o time da Flórida, colecionou apenas duas campanhas de meio de tabela na Conferência Leste e na tabela global da MLS.
Em paralelo a seu último ano no Inter Miami, Matuidi passou a desempenhar o cargo de diretor de futebol do Miami City, clube da USL League Two, correspondente à quarta divisão do sistema norte-americano. Em janeiro de 2022, Blaise encerrou o seu vínculo como jogador das garças, mas só em dezembro do mesmo ano anunciou a sua aposentadoria dos gramados – ainda que tenha prosseguido na gestão esportiva dos azuis. Desde então, o ex-volante da Juventus segue levando a sua vida na Flórida, onde ainda atua como empresário e modelo.
Blaise Matuidi
Nascimento: 9 de abril de 1987, em Toulouse, França
Posição: volante
Clubes: Troyes (2004-07), Saint-Étienne (2007-11), Paris Saint-Germain (2011-17), Juventus (2017-20) e Inter Miami (2020-22)
Títulos: Ligue 1 (2013, 2014, 2015 e 2016), Supercopa da França (2013, 2014, 2015, 2016 e 2017), Copa da Liga Francesa (2014, 2015, 2016 e 2017), Copa da França (2015, 2016 e 2017), Serie A (2018, 2019 e 2020), Coppa Italia (2018), Copa do Mundo (2018) e Supercopa Italiana (2018)
Seleção francesa: 84 jogos e 9 gols